Rugas elege como personagens principais um grupo de velhos (eufemismos como “séniores”, “anciãos” e “idosos” parecem querer fazer uma batota nas palavras e não na forma da percepção social e nas acções efectivas, um pouco como “invisuais” em vez de “cegos”) que vive num lar. O protagonista, Emílio, sofre os primeiros sintomas de Alzheimer, doença neurológica a qual, como se sabe, mina os fundamentos da memória humana e, por isso, a própria personalidade e redes de relacionamento histórico das pessoas com aqueles que os rodeiam. Dessa forma, podemos ver como este livro se inscreve, ao mesmo tempo, numa série de livros que têm doenças como ponto central e definidor das suas personagens ou história (The Spiral Cage, Cancer Vixen, Stitches, Comprimidos Azuis, etc.) e outros que colocam a memória humana como a metáfora matriz da sobrevivência humana.
De facto, se a memória - no seu mais básico sentido neurológico - é um dos pontos basilares da constituição da identidade, não será de todo difícil compreender a noção que o modo da sua construção ditará a da própria pessoa. O género da biografia, e sobretudo se contada na primeira pessoa (ficcional ou autobiográfica, ou todos os territórios pelo meio) não é alheio a que a memória seja o seu caminho principal. De Santo Agostinho a Rousseau e Proust, encontraremos monumentos a esse trajecto. A crise da memória não é tampouco inédita nesse edifício literário, e encontraremos em “Funes, o Memorioso”, de Jorge Luís Borges, A misteriosa chama da Rainha Loana, de Umberto Eco, Remainder, de Tom McCarthy, a literatura psicanalítica de Freud a Alexander Luria a Sacks, idênticos portentos. O projecto de Paco Roca, graças aos elementos paratextuais apresentados, permite-nos compreender que ele coligiu elementos provindos da sua experiência pessoal, da relação com os seus pais, de testemunhos de outras pessoas, para criar uma ficção, ou semi-ficção se preferirem, que institui um texto no centro dessa pesquisa: a memória enquanto viagem, a memória enquanto tessitura que se pode desfazer, em que medida a pessoa se perde com ela perdida…

Um dos obstáculos à excelência deste título é a forma como se isola Emílio e os seus companheiros do lar do resto do mundo. Apesar do acesso que temos às memórias pessoais das personagens, as suas reminiscências mais ou menos afastadas (no caso de Emílio, o seu trabalho no banco, o primeiro dia na escola, etc.), nada ficamos a saber profundamente da relação de Emílio com o filho. Este último, aliás, pelo tratamento inicial, fica reduzido simplesmente a um homem sem qualquer tipo de paciência ou sensibilidade ao sofrimento do pai, e parece querer “despachá-lo”. Enfim, parece aquilo que recebe o termo técnico de “besta-quadrada”. No entanto, isso parece-nos ligar-se àquela ideia muito generalizada e delicodoce de que todos os velhos são ou devem merecer algo do nosso respeito imediato e cego. Mas que sabemos nós da vida que foi construída em conjunto? Foi Emílio um bom pai? Atencioso, que ajudou o filho a ganhar confiança e amor-próprio? Terá sido um bom marido? Guardará o filho boa memória do pai? Ou bem pelo contrário, poderá ter sofrido sob o seu domínio, e encontra agora uma crise, que não deixando de ser terrível, finalmente lhe permite cortar as amarras a esses problemas do passado? Na ausência de uma verdadeira backstory, a construção e retórica de Roca em relação ao filho torna-o uma personagem breve, esvaziada, de uma nota só, que apenas contribui para a unilateral protecção de Emílio, enquanto vítima, abandonado e merecedor da simpatia do leitor. Isso torna a história em si, desde logo, muito pouco dimensionada. Isto ocorre também em relação a outras personagens, como o neto de Antónia ou a okupa do andar de cima.
Além disso, a exploração que se faz da vida dos velhos no lar parece por vezes querer fazer duas coisas ao mesmo tempo: por um lado, criar situações de um humor mais ou menos previsível, com todos aqueles clichés – os velhos surdos e a repetição a que obrigam, o rebarbado, as típicas confusões, os prazeres por coisas insignificantes (para nós) – e, por outro, negá-lo, demonstrando o sofrimento que isso significa, as reacções dos outros “corrigindo”, etc. Mais uma vez, uma construção unilateral. O autor não consegue construir um discurso textual que permita um maior grau de relação directa com estas personagens, elas ficam sempre a alguma distância, o bem-comportado “respeitinho”, e não uma mais profunda compreensão. O episódio da fuga de carro parece-nos, pura e simplesmente, tolo e totalmente fora mesmo das expectativas criadas (o argumento de que se baseia “num facto real”, por hipótese, só faria compreender o abismo que existe entre o caos aleatório da vida e a retórica necessária na criação de uma obra artística).


Um outro aspecto, que tem sido esgrimido no louvor a Rugas, é o facto de ter velhos como protagonistas (e não somente personagens secundárias, co-adjuvantes mentores, etc.), no sentido em que, no meio da banda desenhada, ao contrário de outros, mais latos nos seus contornos e dados à diversidade, isso seria raro. Não deixando de ser verdade num cômputo generalizado, ou pelo menos naquela linha imediata dos títulos mais famosos e comercialmente expostos, já a propósito do excelente Une plume pour Clovis, de Gébé, havíamos trazido a lume duas ou três ideias que poderiam ser chamadas de novo com este livro [até mesmo no que diz respeito às representações e articulações da memória]. Seria preciso olhar para a história da banda desenhada, e da cultura popular em geral (inclusive a literatura, de Sherlock Holmes a James Bond), para vermos que a tendência da “juvenilização” é geral às artes, se bem que na banda desenhada tenha tido uma franca centralidade. No entanto, uma leitura paralela entre os livros de Roca e de Gébé demonstrariam como o primeiro deixa-se preso, de certa forma, a ideias pré-concebidas da velhice, digamos “de fora”, sem se dar à lavra da criação de uma personagem, que é o que ocorre, mesmo que magicamente, em Gébé.
O livro, tendo sido premiado por quem de direito, e com prestígio, em Espanha, foi também alvo logo em 2011 de uma versão de cinema de animação, pelas mãos de Ignacio Ferreras, e que por sinal terá distribuição em breve por Portugal. As pequenas diferenças entre as versões não vêm trazer, a nosso ver, nenhuma dimensão crítica particular, e mesmo em termos de animação não estamos perante uma obra maior.
Tal como acontecera com El invierno del dibujante, Roca é detentor de um estilo legível e claro, sem fazer alarde da sua linguagem. Quer dizer, não procura qualquer grau de opacidade metalinguística, mas antes pelo contrário uma clareza de auto-apagamento do gesto que o institui, para que haja um (ilusório, mas necessário para a fluidez da ficção) acesso directo à diegese e às emoções que ela pretende despertar nos seus leitores. O autor tira partido das escalas cromáticas quer para dar conta de alterações de ambiente ou hora (cenas nocturnas) quer para as “visões internas” de certas personagens (a viagem pelo Expresso do Oriente de Rosário, o “regresso à escola” de Emílio), mas são técnicas relativamente convencionais e tranquilas.
Dito isto, on boucle la boucle para salientar que, não estando perante uma obra do calibre de Fun Home, de Arte de Volar, ou de The Spiral Cage, Rugas irmana-se a elas nas suas várias facetas e, acima de tudo, é um texto enxuto, adulto e alarga a pertinência da banda desenhada enquanto discurso apto à plenitude da existência humana.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
1 comentário:
Excelente reflexão.
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