Em primeiro lugar, é preciso ter em conta que existe uma distinção marcante entre a “identificação psicológica” e a “identificação semiótica”. No artigo “Revealing Traces: A New Theory of Graphic Enunciation” (in The Language of Comics: Words and Image, 2007), Jan Baetens torna essa distinção claríssima, destrinçando, para mais, os processos de identificação primária e secundária de cada campo. Correndo o risco de simplificar em demasia através de termos sucintos, eis o que se poderia resumir dessa argumentação: 1. na psicanálise, a identificação primária é o reconhecimento do si enquanto uma entidade autónoma, e a secundária relaciona-se com a topografia do complexo de Édipo, a tripartição id-ego-superego e a identificação no famoso psico-drama (independentemente das constantes e resolutas críticas a esses sistema, e mesmo tendo em conta as transformações que se operaram nos próprios escritos de Freud, esse edifício mantém-se nas suas linhas gerais); 2, na semiótica, a identificação primária é a assunção do ponto de vista omnisciente do aparato que dá a ver o mundo ficcional (se no cinema se pode indicar a câmara, na banda desenhada, poder-se-á apontar o meganarrador ou focalizador), e a secundária é a proximidade maior a uma personagem em detrimento de outra (as mais das vezes, claro, essa identificação é feita em relação aos protagonistas, uma vez que aparecem mais vezes, as acções relacionam-se sobretudo com eles, é deles que partem as principais decisões diegéticas, etc.).
Portanto, em termos psicológicos, isto é, numa acepção restrita a esse campo, a identificação é entendida como a assimilação de aspectos de um outro sujeito, o que, de resto, é parte intrínseca do processo de constituição da própria personalidade. Se existe um seu sentido semântico transitivo, de “identificar algo”, como ocorre, para Freud, no trabalho do sonho – quando se identifica um objecto como representando uma categoria ou classe de objectos – existe essoutro, reflexivo, mais vincado, que tem a ver com a identificação do si com um outro, o que pode envolver outros conceitos, da empatia à incorporação e projecção, por exemplo, mas com os quais não se confunde, antes permitindo uma distinção mais específica, na construção teórica da psicanálise. Isto ainda se complexifica com o desdobramento desse processo na identificação do si com o outro, ou do outro com o si, o que é diferente. Este processo pode ou não incluir – e é muito difícil numa sociedade como a nossa que não o faça – personalidades fictícias. Seja como for, são esses processos que podem levar a que imitemos outras pessoas em aspectos que nem notamos ou a passar a interpretar as outras pessoas de acordo com ideias que temos delas.
Numa outra perspectiva, um outro artigo de Jonathan Cohen, intitulado “Defining Identification: A Theoretical Look at the Identification of Audiences With Media Characters” (Mass Communication & Society, 4.3, 2001), no qual, apesar do que se depreende, o autor parte de ambas as esferas disciplinares – a semiótica e a psicanálise – , Cohen providencia instrumentos muito específicos. Para além de partir do mesmo pressuposto de que o processo de identificação psicológica faz parte do desenvolvimento natural das pessoas, Cohen baseia-se em Bruno Bettelheim para entender esse fenómeno, acima de tudo, como a partilha de uma perspectiva do outro, internalizando a sua visão do mundo, ou, nas palavras do articulista, “a oportunidade para uma experiência empática [vicarious]”. Isso leva à tal distinção entre as identificações semiótica e psicanalítica, que no artigo de Baetens é muito clara. Cohen tenta estipular as suas ideias, afirmando que a “identificação é uma resposta à comunicação de outros que é marcada pela internalização de uma perspectiva, em vez que de um processo de projecção da nossa própria identidade noutra pessoa ou noutro objecto.” Não é bem a mesma coisa que no caso de Baetens. Se o teórico belga faz mesmo uma destrinça clara entre a assunção psicológica de características do outro em nós mesmos e a distribuição da atenção actancial por uma personagem na economia de uma narrativa, Cohen pretende antes apontar para o exercício cognitivo em que como suspendemos a nossa própria personalidade para partilhar algumas das emoções dos protagonistas dos textos que seguimos.
Cohen distingue a identificação de outros processos psicológicos tais como a interacção parassocial, a afinidade ou a imitação. Os elementos que definem a identificação podem ser apresentados do seguinte modo sumário: o seu processo é de natureza emocional e cognitiva, alterando o estado de consciência; a sua base é a compreensão e a empatia; trata-se de um posicionamento (nosso) enquanto personagem (e, mais importante, durante o acto de recepção do texto); implica uma absorção e uma libertação emocional no texto. O autor deste estudo deixa em aberto os caminhos que ainda são necessários estudar, mas admite que o estudo da tecnologia, da produção textual, do contexto de recepção e até mesmo os perfis do público particular, uma vez que todas essas dimensões interagem nesta reacção com as personagens. Não é estranho compreendermos que o tipo de imersão no cinema é de uma intensidade muito particular em relação à banda desenhada e/ou à literatura (haverá sempre quem dirá que a sua entrega é maior nas letras do que cinema, mas o próprio aparato tecnológico desta segunda forma de arte fala a um número maior de sentidos físicos do que no caso dos livros, e a relação manipulatória do tempo de fruição é também menos controlável pelo espectador, ceteris paribus).
Então, o que devemos entender quando dizemos que “nos identificamos com uma personagem” (o que é bem diferente de nos identificarmos com uma pessoal real, com a qual interagimos de modos bem diversos e mais imersivos)? Possivelmente, estaremos a querer dar a entender que uma determinada personagem se torna imaginativamente mais interessante do que outra, independentemente do seu papel actancial numa narrativa – isto é, o “tempo” que ocupa na economia da narrativa, o número de relações que estabelece com as restantes personagens, a importância das suas acções e atitudes para com a causalidade da diegese, etc. As mais das vezes, essa identificação recairá no ou na protagonista, claro está, mas pode haver casos muito distintos, que se prenderão com o contexto sociocultural do receptor, as circunstâncias históricas da sua leitura ou até mesmo a predisposição psicológica de cada um (daí que se possa achar Darth Vader ou Skeletor muito mais sedutor do que Luke Skywalker ou He-Man, por hipótese, e se imitem/assumam os papéis dos “vilões” nas brincadeiras infantis, e não dos “heróis”). Esse interesse conduzirá então a uma sujeição, por assim dizer, da consciência da própria identidade para que se experiencie o mundo (ficcional) através da perspectiva de outro (a personagem). Logo, a identificação mais rapidamente será com Mortimer do que com Septimus ou Ahmed em Blake & Mortimer e com John Constantine do que com Astra ou Chas ou Kit em Hellblazer.
E é essa identificação, essa escolha, que nos faz decidir que uma dada personagem é “mal” representada nas mãos de um (novo) autor… Sobre isso será o próximo post. Parte 3.
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