A reescrita dos contos ditos tradicionais não é de forma alguma uma abordagem nova, já que ao longo da existência humana temas, estruturas e mesmo contos com personagens específicas têm sido alvo de reinvenções sucessivas. Afinal de contas, é sabido como os contos ditos tradicionais, recolhidos por Perrault, os Grimm, Garrett, são eles mesmos como que corruptelas de mitos antigos através das roupagens dos seus pontos específicos localizados no tempo e no espaço. E os autores de literatura infantil têm encontrado pasto suficiente neles para procederem a transformações que deixam ao mesmo tempo ver a história antiga e uma nova direcção. O Capuchinho Vermelho, pela razão da sua estrutura simples (dizemos nós?), a sua moralidade directa, tem-se prestado particularmente a essas reinvenções, quer no próprio campo da literatura infantil, inclusive ou particularmente a ilustrada (e Richard Câmara, por exemplo, elege-a como obsessão), quer noutros, da literatura ao cinema, do bailado às artes visuais. Esta versão, do recentemente falecido A. Frisch e de uma já grande referência da ilustração, R. Innocenti, inscreve-se nessa produção infinita (entre nós, surgiu ainda uma outra versão, Capuz e o Lobo, por T. Salgueiro e J. M. Saraiva, de que esperamos falar em breve). (Mais)
Mas o que os autores procuram fazer não é tanto apresentar uma versão, que poderia mergulhar noutros géneros ou humores. O que eles pretendem é contar de novo esta história com o mesmo intuito encontrado nos tempos de Perrault e antes.
As versões mais antigas da Capuchinho Vermelho, no seu fito primitivo, são violentas e não se coíbem de referências à sexualidade: não nos esqueçamos do corpo e do sangue da avó transformados em carne assada e vinho oferecidos pelo lobo e ingeridos pela neta (e não seria estranho, na época, que a criança bebesse vinho), assim como todas as peças de roupa dela queimadas na lareira, e no término da história com a Capuchinho deitando-se, nua, na cama com o lobo, antes deste fechar as mandíbulas em torno dela. O “consumo” cobre todos os sentidos. Sem caçador, salvamento ou redenção. Foi apenas o trabalho subsequente dos vários autores, a alteração da sociedade, a “invenção” novecentista do conceito de criança, por oposição à miniatura de adulto, aos vários desenvolvimentos sociais e estéticos que levaram igualmente à emergência de produções “infantis” (compreendendo a literatura, a ilustração, o vestuário, os métodos educativos, os brinquedos, etc.) que foi afastando as crianças de uma realidade mais crua e cruel (até esbatermos no My Little Pony, por hipótese, mas que careceria de cuidada análise). Enfim, todas aquelas dimensões que a moralidade burguesa pós-século XIX quis instituir como único espaço do desenvolvimento das crianças (do mundo ocidental, pós-industrial, capitalista, etc.). É exactamente esse fito aquilo que sucede – em parte – com A menina de vermelho.

O modo como os autores enquadram a narrativa, partindo a voz de uma narradora - uma espécie de avó-boneca contadora de histórias - dirigida a um grupo preciso de ouvintes – um grupo de crianças muito diversas, possivelmente representando o público do livro de uma forma alargada e inclusiva, e que abandona todos os seus brinquedos diversos para um momento de concentração mútua – não só procuram mimar os mecanismos da performance da leitura do próprio livro, como ainda sublinham algumas das suas dimensões artificiais. E não há maior artificialidade que o seu “final feliz”, aposto quase à força e com a possibilidade de ser optativo: “Imaginem isto, se quiserem”. Todavia, isto dependerá dos leitores, claro, mas é possível que esta forma mine este final, e demonstre como ela não pode deixar nunca de ser postiço, e que só é possível nas histórias, já que no mundo, a crueldade tem mesmo um lugar garantido.

Esta colaboração de Frisch e Innocenti procura sublinhar o que possivelmente melhor pode surgir da tensão entre texto e imagem. Mesmo que haja um grau de incompletude, é possível ler o texto de forma independente das imagens, e o mesmo se pode dizer destas. É somente na sua conjunção que surgem os espaços intersticiais, as frinchas, por onde, a um só tempo, caem os leitores nas armadilhas preparadas e saem de lá os sentidos dúbios. Innocenti atulha as suas imagens com os mais díspares pormenores, e se em obras como A casa, The last resort, a sua versão de Pinóquio, e A história de Erika, mesmo tendo em conta os aspectos urbanos, tudo remetia a uma certa imagem do passado, onde todos os traços da passagem humana tinham ainda fortes indícios do natural, em A menina de vermelho a Natureza parece totalmente derrotada pelo domínio caótico, conspurcador e imundo dos seres humanos, ao passo mesmo que a humanidade se vê reduzida a uma quase mera sobrevivência ou mecanicidade da sua vida. Mais, o espaço de conjunção entre homens e animais é explorado de forma complexa, procurando-se sublinhar acima de tudo as facetas selvagens e abjectas dos primeiros.

Na verdade, bem pensado, o livro convida a uma leitura lenta, cuidada, com atenção a cada passo na floresta. Mesmo que o fim esteja já escrito.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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