Este livro, publicado por aquela editora que, discutivelmente, tem construído o mais consequente edifício daquilo a que chamámos “a banda desenhada por vir”, reúne toda uma série de trabalhos da autora sul-coreana, do qual já havíamos dado conta, em forma de nota, a propósito de um “episódio” publicado na Glomp 9. Desde logo, este vocabulário (“episódio”) ajudará a querer compreender este livro no interior de categorias familiares. Por um lado, poderá parecer que quereremos subsumir todo o livro a uma apresentação mimética, naturalizada, o que implicaria quase necessariamente uma perda da sua dimensão poética, tudo aquilo que deve permanecer no limiar da familiaridade e, por isso, mantendo a sua quota-parte de permanente mistério. Por outro, talvez possamos acreditar que mesmo tentando uma explicação aparentemente naturalizante, apenas estamos a identificar elementos específicos que nos permitem avançar numa possível análise, mas jamais a esgotará; mais, tornando-a possível (mesmo que num início somente), lançam-nos precisamente num movimento (quem sabe se perpétuo).
Na “história” principal, uma primeira fase de introdução, composta por vinhetas isoladas (duas por página), mostra-nos um homem a chegar a um local de autocarro e a descobrir, perto da sua paragem, um baloiço abandonado (e aparentemente suspenso no vazio). Seguem-se os capítulos divididos pelas duas personagens principais, o primeiro mostrando o gémeo - mas esta decisão pelo sexo é apenas por seguir a palavra - no interior da casa, com vinhetas marchetadas que aparentemente mostram alguém a carregar um corpo, e, sob um baloiço suspenso, a desaparecerem num tanque de água (imaginamos nós); o segundo, mostrando a gémea no exterior da casa apanhando galhos, e ao mesmo tempo revendo (?) a cena da captura do corpo pela personagem que havia chegado no primeiro trecho, e depois a prostrar-se no chão, mas possivelmente ou intermitentemente sobre uma baleia subterrânea. À beira da casa, um abismo circular na terra serve de leito a um dos gémeos…
Serão estes descritivos suficientes ou redutores? Iluminadores ou confrangedores? Em que medida ajudam a fruir da dimensão poética, que apenas na leitura total dos seus elementos pode funcionar? Que dirigem estas palavras no que diz respeito à possível interpretação da obra?
Em Origem do Drama Trágico Alemão, Walter Benjamin distingue o símbolo da alegoria através da categoria do tempo, ou da relação daqueles com este, escrevendo: “na alegoria o observador tem diante de si a facies hippocratica da história como paisagem primordial petrificada. A história, com tudo aquilo que desde o início tem em si de extemporâneo [ou “intempestivo”, Unzeitiges], de sofrimento e de malogro, ganha expressão na imagem de um rosto - melhor, de uma caveira” (trad. J. Barrento, pg. 180). As traduções em inglês traduzem aquele último termo por “death’s head”, sublinhando a que realidade se agrega. Recordemos ainda que o mesmo filósofo fala da caveira como espaço onde se opõem a sua “inexpressividade absoluta” dos olhos vazios e a “mais selvagem das expressões” do seu ricto (“Artigos de retroseiro”). A caveira é aquilo que obriga a um olhar para trás, para uma origem perdida (como o do Anjo da História), através da ruína que ela mesma é. A alegoria obriga, portanto, a um olhar histórico, ao contrário do símbolo, que se pretenderia sempiterno, idealizado, redentor, e desligado dos mecanismos da existência humana e do mundo
Se os rostos desenhados por Jung não são propriamente os da morte ou de mortos - as personagens agem, mesmo que essas acções sejam impenetráveis à compreensão -, elas estão imbuídas de um sentido mortal inelutável, de uma inexpressividade, corroborada pela textura permitida pelos lápis, que lhes dão o ar de pedra, de baixo-relevo, de esfinge. Se figurativamente, as figuras esquálidas, quando desenhadas em pormenor, revelando anatomias, texturas, músculos e tecidos da pele, recordam Egon Schiele, e quando mais longínquas se formam a partir de estratégias mais estilizadas e simples, quase de ilustração infantil, o uso da grafite pela autora irmana-a a uma comunidade artística contemporânea alargada mesmo no interior da banda desenhada, com Chihoi, Vähämäki, Manouach ou outros. De novo, regressando à mesma ideia central: a grafite enquanto (agora, aqui) símbolo de mortandade (cinzas) texturada onde pulsa a vida.
A história, aqui, será aquela circunscrita pelos factores de produção, de uma banda desenhada própria ao século XXI, finalmente mais próxima das tendências ou linguagens suas contemporâneas de outras áreas criativas, cada vez mais unidas por preocupações poiéticas (um fazer) do que temáticas ou de representação. E é pela aparente leitura negativa dos elementos narrativos - o não ter uma história, não ter um fito, não ter uma unidade espácio-temporal (precisamente aqueles aspectos que Fludernik e Richardson acham que devem ser lidos positivamente, inaugurando uma narratologia mais abrangente e atenta aos experimentalismos quer históricos quer pós-modernos) -, é pela sua aparente inexpressividade, que a petrificada facies hippocratica surge: uma espécie de doença que corrói, morde, fustiga, enfim, molda o rosto com os instrumentos intempestivos.
Mas alegoria de quê, então? Ao serem suspensas as necessárias redes de referências e ligações diegéticas que se esperariam quer da parte de um enquadramento narrativo realista quer de um qualquer género particular (que lançaria expectativas específicas), os rituais e movimentos de dança entre estes corpos e rostos criam uma noção aberta de relações e reflexos. Cria-se uma fenda, uma fractura de significados, no qual caberá ao leitor e espectador o esforço de sutura, angariando toda a matéria visual e textual (no seu sentido de relacionamento entre as imagens, as estruturas episódicas, espaciais, etc.) para as converter em algo reconhecível e depois (re)integrar num processo histórico. Mas não um julgamento. Aquele esforço, claro está, poderá não satisfazer de forma alguma a familiaridade, mas antes alimentar sempre a irredutível ambivalência, a inanalisabilidade que surge na estranheza de enfrentarmos gémeos falsos: corpos tão distintos e unidos por um fundo comum mas inidentificável nos seus traços presentes. E os quais possuem em si uma conflituosidade interna, uma relação a um só tempo de identificação e de rivalidade e oposição, a um só tempo de distinção absoluta e de confusão. Os gémeos, portanto, sendo cada um deles identificável com um dos sexos clássicos, e corroborados pelos “acontecimentos” e objectos do seu mundo diegético, jogam todo um conjunto de oposições ou binómios metafísicos, desde homem/mulher, exterior/interior, bom/mau, natural/artificial, a outros níveis como familiar/estranho, heimlich/unheimlich, ser/não-ser, vida/morte. E nunca necessariamente com os primeiros termos correspondendo aos segundos, mas criando um espaço de indeterminação, negociação ou correspondências móveis (cujos espaços de penetração são representados pelas vinhetas que surgem encaixadas, por dentro, sobrepostas, cada uma dessas palavras dando conta de uma perspectiva diferente do trabalho visual existente). Ou seja, ao mesmo tempo instituem os traços visíveis dessas dicotomias e negam-nos. E é aí que reside o não-julgamento do leitor: há um esforço em identificar tudo isto, mas não concluir nem fechar. Se o movimento tiver início, também tê-lo-á a poesia que ele encerra.
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