Horror. Se podemos descrever o horror enquanto categoria que compreende vários meios (o cinema, a literatura, a banda desenhada, e até a música – escute-se o fim de Bucketheadland 2 no escuro) e sub-géneros, o que os unificará será menos um dado número de figuras, de imagens ou de estruturas narrativas, que se verificam ou não, do que um arranjo delas conducente a um efeito emocional determinado. A história, complexa, do (supra-)género é relativamente recente, sendo fruto de desenvolvimentos na modernidade, e encontra-se em Le Fanu, por exemplo, um dos mais importantes percursores para o horror moderno, a saber, a inscrição de acontecimentos sobrenaturais num mundo ordinário, onde personagens vulgares padecem, muitas vezes psicologicamente, dos acontecimentos que os enclausuram. O tratamento mais estruturado que conhecemos do tema é aquele proporcionado pelo filósofo norte-americano Noël Carroll em The Philosophy of Horror Or, Paradoxes of the Heart (Routledge 1990), que tenta pelo seu tratamento abarcar o máximo de textos que, pre-teoricamente, a maioria de nós incluiria nessa categoria (além do mais, o que Carroll tem a dizer sobre identificação é também muito útil; muito simplesmente, não existe “identificação” propriamente dita, mas uma assimilação parcial de ponto de vista, compreensão, simpatia, etc.). Apesar de se poder criticá-lo (e há quem o faça) por seguir por vezes, quase dogmaticamente, os princípios do senso comum, em vez de procurar outras intensidades, é a partir das suas lições, sobretudo, que estabeleceremos os nossos instrumentos. Independentemente das formas categóricas que Carroll constrói, ou de colocar demasiado a tónica na figura do “monstro” (que ele define de modo essencialista), há muito para aprender nos seus escritos. (Mais)
Os sentimentos do terror e do horror são aparentáveis, mesmo em termos teóricos, a outros tais como o sublime. Sebald, por exemplo, discute como o confronto com “edifícios ultradimensionais” provocam um espanto que é uma “forma antecipada do horror”, dado que essas construções “lançam já a sombra da sua destruição, concebidos que são desde a origem com vista a uma existência futura enquanto ruínas” (Austerlitz). O sublime, entre as diferenças de Burke a Kant, sublinham a pequenez do ser humano, e o seu conflito com algo que o poderia destruir sem esforço, mas à distância. Uma espécie de vertigem, a sedução de nos atirarmos ravina abaixo. Por seu lado, as diferenças entre terror e horror são discutidas de modos bem diversos, mas uma das distinções mais correntes (a própria Wikipedia parte daí) é que o primeiro se associa a um sentimento precedente do que vai acontecer e o horror é já uma revulsão em relação ao que se passa. O primeiro provoca ansiedade (aceleração cardíaca, respiração pesada, tremores, suores), o segundo um choque.
Mas “horror” é uma palavra que é empregue igualmente como descritora de um género literário (e, consequentemente, de outros meios), ao passo que terror se mantém na esfera do sentimento (mas poderíamos ainda falar da sua dimensão, mais hodierna, de actos políticos). O horror é entendido então como um género, e um género que, nas palavras do teórico de cinema Robert Sinnerbrink, é um “local de intensidades afectivas”.
Há uma diferença entre uma representação esteticizante do horror - o gore, em que autores tais como Richard Corben e Simon Bisley, Junji Ito e Suehiro Maruo, e tantos outros, são exímios - e uma apresentação mais intensa dos afectos que levam a essa ideia de horror. Existem casos específicos de representação visual do horror que funcionam de um modo distinto: ora a ambivalência da representação que ocorre em Breccia, na sua adaptação de Lovecraft (a melhor que conhecemos, a nosso ver), em Cthulhu, ora a barroca sobreposição abjecta e incómoda de um Fredox. Mas quase toda a banda desenhada que se abandona a fantasias de monstros e splatter matter não terá seguramente um impacto emocional duradouro, por mais espectacular que sejam as suas imagens, uma vez que não se procura nenhum tipo de reflexão em termos psicológicos, sociais, ou culturais dos efeitos do que ocorre. Uma série como Black Hole, por exemplo, explora a monstruosidade que aflige os jovens de uma forma quase directa e desapaixonada, nada melodramática, preferindo antes focar nas consequências que isso tem na vida pessoal do protagonista. E de facto, é bem mais interessante a tensão paulatina de “24 hours”, de The Sandman, ou dos primeiros números de Hellblazer do que a revelação de todos os cenobitas nas (quase todas) versões quadrinhísticas de Hellraiser. Como é analisado no cinema, as experiências mais viscerais do horror não partem dos splatter movies mas antes da cinematografia de um Lars Von Trier ou de um Haneke, que obriga a uma nova relação dos espectadores com a representação da violência, ou mais, com a forma como essa mesma representação da violência é consumida na economia de entretenimento. Um encontro entre essas duas sensibilidades, digamos assim, incorrendo no risco de estarmos a provocar uma simplificação insustentável, é encontrada no chamado Novo Extremismo Francês (Baise-Moi, Irréversible, Trouble Every Day), e seria aqui talvez que se encontraria um melhor campo de comparação com as melhores histórias de Hellblazer, onde há uma convivência nada gratuita, mas antes mutuamente informadora, entre as cenas mais explícitas do horror - monstros, demónios, os eventos transformadores, etc. - e os sentidos políticos e/ou emocionais mais profundos em relação às personagens e ao seu mundo fictício (muitas das vezes com repercussões ou simbólicas associações ao real). É importante sublinhar que essa comparação tem de ter em conta que o uso do horror, em Hellblazer, não deixa de ser um dos mecanismos da sua convenção narrativa, isto é, faz parte da sua estrutura linear e de resolução do(s) conflito(s) que age(m) no coração da intriga em questão. No entanto, uma vez que essas histórias (aquelas que julgamos mais conseguidas) apresentam algumas - não tantas como no caso de trabalhos mais experimentais, tal como analisados por Peter Schwenger em “Abstract Comics and the Decomposition of Horror” - resistências aos mais convencionais códigos de representação, os actos de violência e horror que vemos/lemos não deixam de ser incómodos, desagradáveis, de provocar asco e repulsa mesmo. É dessa forma que lemos como superiores as cenas do consumo do demónio e subsequente emparedamento de Gary Lester ou a combustão espontânea de Ritchie (ambas nos primeiros números de Delano e Ridgway) do que as cenas mais atreitas à “acção espectacular” de outros autores. Sentimos que se cria aí um maior ambiente, uma mais coesa rede das relações entre as personagens, para depois se fecharem as mandíbulas com mais incisão.
Poderíamos procurar as coisas por outro prisma e tentar compreender onde é que surgiriam os traços da des-humanização ou da in-humanização do terror. Isso pode estar presente em monstros, é certo, mas também em personagens que, sendo humanas, ou se apresentam com máscaras, ou são vítimas congeladas no seu medo, ou há um qualquer processo de desfacialização. Tem de haver uma concentração visual no rosto, até este se tornar palco e signo dos afectos que atravessam a história, e depois esse “desvio”. Se nos recordarmos do tal episódio pensado por Morrison e Lloyd em que John Constantine “perde a personalidade” ao pôr a máscara de Tatcher, entenderemos que essa despersonalização é muito mais intensa, e assustadora, do que aquela operada pelos autores que criticámos.
O artigo citado de P. Schwenger, por exemplo, analisando exemplos provindos de abordagens mais experimentais, como o trabalho abstracto de Andrei Molotiu e de Henrik Rehr, fala de como nessas mesmas imagens, precisamente por serem abstractas, forçam o olho a procurar formas, e esse mesmo movimento cognitivo e imaginativo podem levar a sensações significativas: “essa mesma emergência [de formas determinadas como cabeças e corpos], com toda a sua ambiguidade estranhamente familiar [uncanny], podem ser uma fonte de horror”. A estes exemplos gostaríamos de acrescentar o das versões dos contos de Lovecraft por Breccia, o qual faz irromper precisamente construções abstractas no seio de composições figurativas, não apenas para respeitar a própria escrita original, mas para pode suscitar o horror daquelas formas constantemente transformando-se.
Dito tudo isto, fica a resposta por dar. Pode a banda desenhada provocar sentimentos de horror? Talvez. Não nos estamos a referir simplesmente aqui à existência de criaturas ou personagens que toquem nos elementos que compõem o género, de zombies a vampiros a monstros, uma vez que então isso significaria que coisas tão diversas como os variadíssimos títulos de horror da Dark Horse ou a “revista mensal de bd” Horror conseguiriam provocar efeitos desconcertantes idênticos aos de Breccia, Fredox ou as melhores histórias de Hellblazer, e isso não é verdade. Podemos mesmo arriscar dizer que quanto mais “nítida” é a inscrição de uma obra no género, mais domesticado será esse feito. É por isso que, não sendo propriamente uma obra-prima, Urlo nos pareceu tocar alguns princípios do horror, ou melhor, do “horror-arte” de que Carroll fala no livro citado. Afinal de contas, nós procuramos activamente um filme ou um livro com esses temas, e o sentimento, mesmo que de repulsa, sentido na sua fruição, é bem diverso daquele que poderá vir a ser suscitado por uma situação de horror real, como testemunhar uma morte violenta, ser-se vítima de uma violência indizível, um acidente tremendo, etc.
Esse sentimento é similar ao sublime no sentido em que somos confrontados com algo “horrível”, mas ao mesmo tempo sabemos estar seguros em relação a ele (ver pessoas a serem cortadas às postas no Saw mas continuar a comer pipocas). É aí que reside a razão do sub-título do livro do filósofo: “Portanto, o paradoxo do horror é um exemplo de um problema maior, a saber, o de explicar a forma como a apresentação artística de acontecimentos e objectos normalmente abjectos [aversive] pode dar azo ao prazer e a impelir o nosso interesse” (pg. 161). Se sabemos que aquilo que está à nossa frente não existe, porquê ter medo disso? E se na banda desenhada não existe a dimensão do tempo controlado do filme, as emoções propostas pela música, mas, à partida, existem mais decisões visuais do que em relação à literatura, que tipo de intervalo de construção há no leitor para a criação desses sentimentos de horror?
Carroll faz alguma distinção e especificações no interior do seu estudo - por exemplo entre o horror e o horrífico, ou na categoria do “choque”, que pode surgir noutros géneros -, mas um dos aspectos importantes é a sua consideração da emergência do género em termos históricos, que teve necessariamente de surgir após o Iluminismo. Ou seja, a progressiva falta de espaço para a convivência com o maravilhoso nas sociedades ocidentais, e a colonização quase total do positivismo científico do mundo, leva a que todos os desvios, sobretudo aqueles que implicam algum grau do sobrenatural, encontrem o seu espaço privilegiado nesse género ficcional. E os “monstros” ocupam o lugar central na agência e estruturação dessas ficções, uma vez que eles, e parafraseamos, se encontram fora da ordem natural (biológica, científica) das coisas e são, a um só tempo, ameaçadores - em termos físicos, psicológicos, sociais e, acima de tudo, morais - e impuros - contraditórios, incompletos, amorfos, mesclados. Ao lermos Hellblazer, e mais uma vez insistimos que sobretudo o run de Delano e Ridgway, poderíamos até perguntarmo-nos se não seria o próprio Constantine que começaria a ganhar contornos dessa impureza (literalmente quando é paradoxalmente “contaminado” e “salvo” pelo sangue do demónio Nergal).
Terminaremos apenas com outra nota pessoal, e uma celebração, e que nos faz regressar ao princípio desta fiada de posts. Apesar da distinção importante que pensamos dever ser feita entre títulos que podem suscitar emoções e conceitos fortes em relação à nossa relação cultural e intelectual com a sociedade em geral, como penso que Constantine e Hellblazer permitiam, e aqueles outros onde se verificará somente um prazer voyeurístico em torno do gore, também seguimos as adaptações do universo Hellraiser à banda desenhada, sobretudo através da colecção da Epic (mas inclusive a nova série contemporânea, em que Barker retoma as rédeas da série). Associando-se a toda uma série de autores ou referências coincidentes, e tendo em conta a prática das crossovers - que criticámos no início, sobretudo por se subsumirem a um princípio mercantilista - queremos ainda assim confessar o nosso imenso prazer e nerdice quando eles surgiam de forma desabrida. Não tanto o algo forçado - mas previsível - Hellraiser vs. Nightbreed, mas Pinhead vs. Marshal Law, Law in Hell, por exemplo. Ora, na possibilidade de lançarmos nós mesmos os desejos, e estando seguros que jamais ocorreria a hipótese de um crossover interessante entre o original Hellblazer e Hellraiser, convidámos o artista João Maio Pinto a criar uma imagem [que abre o post] em que emergiria rapidamente o cinismo de John Constantine face às maquinações dos cenobitas, e o que ele faria se se viesse a cruzar com uma das Configurações do Lamento.
Nota: agradecimentos a Randy Duncan e a Teresa Câmara Pestana, por terem desencadeado estas notas com o inquérito e a questão (possivelmente não respondida), e a João Maio Pinto, pela fantástica colaboração.
31 de maio de 2013
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