Poesia visual, poesia concreta, poesia tipográfica, poesia gráfica, poesia de padrões, technopaegnia, poema/processo, caligramas, poesia cinética, poesia digital, poesia em código, interactivo, programável e re-combinável. Poesia criada com caneta, máquina de escrever, processador de texto, tesoura e cola, iPod, telemóvel, com lápis, pincel, e objectos manipulados, outras tecnologias. “Poesia libertada da denotação e conotação” (um dos editores, Crag Hill, pg. 12). “Um sub-produto do olhar fixo” (o outro editor, Niko Vassilakis, 10). Não haverá, nem se procurará, nenhuma descrição geral que consiga abarcar toda a produção e se a naturalize, pronta-a-transmitir, esta poesia. O único ponto em comum, e mesmo assim arriscado, é dizer que existe uma imagem específica que se consolida numa matriz isolável, perceptível, analisável e apenas transmissível na sua completude.
Este volume reúne a produção de dezenas de poetas, dos mais variados países, num período compreendido entre dez anos. Não há propriamente um programa estipulado a montante do projecto (fora as necessárias contingências espaciais, temporais, editoriais, etc.), mas há seguramente a esperança que surja algo a jusante, pelo menos nos efeitos junto aos leitores. O livro divide-se em cinco grandes secções organizativas: “Letras” [Lettering], “Objecto”, “Escrito à mão”, “Tipografia” e “Colagem” sublinhando, a um só tempo, as técnicas de fabricação do poema, uma sua natureza física e material, mas também uma ontologia, um intervalo no interior do qual e para além do qual o trabalho de interpretação é desperto. Todas as secções são ainda acompanhadas de pequenos ensaios por uma dezena de cultores, teóricos e críticos, alguns com aspecto de manifesto livre de uma prática, outros arriscando uma introdução histórica a este corpo de trabalhos e movimento poético (são os casos dos textos de Karl Kempton, uma história do campo, que inclui o Brasil mas não refere sequer Portugal, de Karl Young, considerando esferas tangentes que incluirão o grafitti e o famoso “hobo code”, e de C. Mehrl Bennett, sobre as linhas de força do campo), outros criando um espaço que duvida da própria possibilidade de esgotar o discurso - para mais, o “explicativo”, académico, regrador - em torno destes objectos. Outros parâmetros, como o da performatividade e da fonética, não são totalmente descurados, havendo uma intervenção de Jaap Blonk. No entanto, há ao mesmo tempo um desvio dessa dimensão "aural/oral"...
Se a ideia da poesia visual parece violar um dos ditames platónicos, e vem lançar a confusão não apenas nos elementos distintos da escrita e da imagem, e ao mesmo tempo vem trazer uma armadilha icónica que cria a ilusão de se ser possível capturar uma ideia de “verdade” - um dos aspectos pelos quais Montaigne achava que este tipo de poesia era “frívola e vã” (apud R. Mittenthal, pg. 70) -, ela também permite que se explore através do excesso do objecto e dos seus parâmetros materiais o fim da reificação da escrita, dos alfabetos, das gramáticas, da linguagem. Materializando a densidade da escrita, olharemos com olhos de ver a sua constituição. E permite que se ultrapassem os condicionalismos humanistas, para chegar à “perda granítica e endémica” em que a poesia se deve tornar (de um poema de Greg Betts, citado por Derek Beaulieu, 74), um rizoma, no pleno sentido de Deleuze e Guattari (“[que] nada tem a ver com a significação (..) tem a ver com levantamentos topográficos [e] cartografia”, apud idem). Em termos históricos, ela permite mesmo desarrumar as estantes e as categorias. E assim olhar para outros sistemas de escrita que não o ocidental-latino, ou mesmo instrumentos de escrita (estiletes em cunha, códigos digitais), para contaminar o processo natural-social.
Esta poesia obriga a olhar quer o signo isolado da letra, quer ainda, ou sobretudo, todo o espectro da sua macro-escala - palavra e alfabeto, frase ou verso, parágrafo ou estrofe, mancha tipográfica e margens, página e plano, livro e mão, traduções em objectos - e ainda a micro-escala - as suas formas, linhas, ângulos, preenchimentos e sombras, serifas e ligaturas, combinações e formatações. Isto para não falar das escalas de significação: metonímia e metáfora, cliché e símile, confissão e emoção. As secções ajudam à navegação desse entendimento, encontrando - por vezes dos mesmos autores, inclusive do português Fernando Aguiar - trabalhos “planos” (tipografia, p. ex.) e “tridimensionais” (objectos). Como escreve K. Kempton: “O poema visual contemporâneo é usualmente composto por material linguístico [language] combinado ou seccionado [assembled/disassembled]. Este material inclui palavra, texto, nota, código, petróglifo, letra ou outro carácter fónico, tipo, cifra, símbolo, pictografia, frase, número, hieróglifo, ritmo, ícone, gramática, conjunto, traço, ideograma, densidade, padrão, diagrama, logograma, acento, linha, cor, medida, etc.” (207).
Mark Owens (ou melhor, mARK oWEns), nos seus “poems for R[obert] Duncan”, cita um psicanalista contemporâneo, Donnel Stern (e estes mesmos poemas “ilustram” essa citação): “A linguagem não é um instrumento, mas algo em que nadamos”. Os leitores de Grant Morrison recordar-se-ão de modos que o autor escocês tem de explorar ideias similares nas suas bandas desenhadas (sobretudo The Invisibles, mas também The Filth). Seguindo essa imagem, portanto, cada um destes poemas são zonas de intensidade, áreas móveis de um imenso oceano…
Quando lemos um texto, temos, em primeiro lugar, de olharmos para um texto, ou melhor, olharmos para uma superfície inscrita com signos visualmente estruturados. Quer dizer, num fracção da complexa operação cognitiva que a leitura implica, estamos antes do mais a olhar para uma imagem. Todavia, quase sempre, ao lermos, não diminuímos a velocidade de percepção-intricada-em-interpretação da leitura, e, logo, não damos conta que estamos, além de ler, a ver. No filme Black Sun, realizado por Gary Tarn, o escritor e artista Hugues de Motalembert, que ficou cego e teve de recriar toda a sua relação com as imagens, afirma que “a visão é uma criação, não uma percepção”. Os textos/objectos/poemas de Vispo obrigam a que consciencializemos o processo de criação.
É verdade que não se conquistarão leitores em massa para estes textos. Aquilo que importa na destrinça e juízo de valor da literatura não pode ser o sucesso medido de modo imediato e numérico. Como escreve Donato Mancini, haverá uma diferença entre a “multidão = números e estatísticas” e a “comunidade = relações humanas reais”, para concluir ou afirmar “Aquele que se Dirige às Multidões Não Fala a Comunidades” (64). E Vispo poderá ser entendido, de facto, como um projecto que cria uma comunidade em busca de outros que nela se desejem inscrever, ora como leitores ora como novos cultores (tal qual como antologias como Le coup de grâce ou Abstract Comics, ou menos monografias como 100 Scenes e Spuk). Além do mais, há um programa inevitavelmente político agregado à construção destas unidades. É Beaulieu quem esgrime os argumentos mais explícitos dessa dimensão, pela forma como a “poesia concreta não é uma pauta para a performance oral e não é para ser articulada pelo som”, isto é, põe em crise o “valor de troca” [na estrita acepção marxista] da poesia (76). Mesmo não o eliminando totalmente, pois o capitalismo voraz assimila [em ing., co-option] tudo ao seu uso e valor mercantil, ainda assim estes textos sublinham uma “catástrofe menor” (Baudrillard), uma “marca inarticulada” (Ngai).
O projecto conta ainda com um site particular, com muita informação e pontos de partida; na página da editora, encontrarão um vídeo, o índice e outros aspectos.
Nota final: agradecimentos à Fantagraphics, pela oferta do livro, e a Diniz Conefrey, pela chamada de atenção.
3 de junho de 2013
The Last Vispo Anthology. C. Hill e N. Vassilakis, eds. (Fantagraphics)
Publicada por Pedro Moura à(s) 5:46 da tarde
Etiquetas: Academia, Antologias, Experimental, Territórios contíguos
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário