O fascínio por Dante inaugura toda uma linha de desenvolvimento do pensamento, filosofia, teologia, e literatura na Europa, e mais além. Como não poderia deixar de ser, também exerce uma forte influência no que diz respeito à representação visual dos círculos do Averno e do Empíreo (o Limbo, entretanto, “fechou”), não tivesse tido uma versão magnífica, ainda que incompleta e ainda que não a primeira, com Botticcelli e, depois, seguida pelas de Giovanni Stradano, William Blake, Gustave Doré, António Carneiro, Miquel Barceló, etc. É claro que outras disciplinas artísticas não puderam ser de forma alguma ser alheias a essa tradição (recordemo-nos de A TV Dante, de Greenaway), tais como a banda desenhada. Mas se aqui, sobretudo no que se entenderia como cultura popular, existem muitas “versões” escolares, naturalizantes, de “terror” ou medíocres, existem também outros exemplos que conseguiram passar a barreira da mera adaptação para chegar a formas de verter a matéria em novos actos poiéticos, levando-se mesmo à fundação de novas obras magistrais deste outro campo artístico. Neste último aspecto, apenas nos podemos referir, pensamos nós, a Jimbo in Purgatory e Jimbo’s Inferno de Gary Panter. (Mais)
Este livro do holandês Ruijters encontra-se num caminho - no meio de um caminho - que partilha essas atitudes. Por um lado, não se trata de uma abordagem, digamos, “séria” da primeira parte do maior poema de Dante, antes lançando as ferramentas da paródia. Todas as personagens, inclusive “Danta”, são femininas, ou melhor dizendo, freiras de denominações existentes ou fictícias, e “Virgília” é um esqueleto-guia. Isso leva desde logo a que todos e quaisquer acontecimentos estejam subsumidos às acções levadas a cabo por freiras em conventos, como se o mundo não fosse senão habitado por ordens religiosas de intricadas regras monásticas, que não apagam os prazeres mundanos ou a maldade intrínseca aos seres humanos. Nada de particularmente infernal nisso, ou apenas o inferno dos homens e mulheres. Existem personagens masculinas, mas todos esses homens são bestas selvagens vivendo na natureza, aparentados com caricaturas de homens pré-históricos ou com arquétipos vários. Há uma procura por um grande respeito no que diz respeito ao progresso e à organização espácio-moral do Inferno, mas tudo se encontra subsumido a algum grau de humor. O resultado não é o pathos, nem a piedade, mas o riso. Esse riso, porém, não é dirigido ao poema em si, mas a uma ideia muito generalizada do social. Algo desfasado da nossa experiência, destila-se assim uma moralidade, um génio, uma natureza humana que atravessa tempos diferentes (ainda que circunscritos à Europa, e não possa ser considerado propriamente “universal”).
Existem duas formas de texto, ou matéria verbal, nesta obra. Por um lado, existe a faixa de narração, externa e geral, que se encontra sistematicamente num rodapé, remetendo a experiências antigas da banda desenhada e, ao mesmo tempo, a toda uma série de tradições, inclusive medievais, de composições de narrativas visuais. Esta é, digamos, a camada principal da diegese textual, onde se encontram as explicações, o ancoramento de sentidos, e alguns graus de interpretação moral, etc. Mas existem pequenas intervenções com balões de fala, que saem das bocas das personagens, as mais das vezes reduzidas a conhecidas expressões (uma só palavra em muitos exemplos, “horribilis”, “vade retro”, etc.) em latim, ou interjeições ou risos, tudo representado numa letra gótica reminiscente da Idade Média e presente em pequenas filacteras-rolo também elas remetendo para a iluminura medieval. Esta dicotomia é, nela mesmo, associável à Idade Média. Em termos figurativos e estilísticos, também se procuram afinidades nessa direcção histórica. O emprego de figuras estilizadas e mais ou menos uniformes, de um forte contraste entre linhas a negro (apenas alguns apontamentos de tramas, texturas ou sombras), a construção do espaço e relacionamento entre objectos sob a formas de planos diferenciados e na ausência da perspectiva linear, a distribuição de objectos recorrentes que devem ser vistos mais como simbólicos do que representando efeitos do real na composição visual, as molduras ligeiramente trabalhadas, a navegabilidade entre as imagens (ver adiante), e a própria estruturação entre imagens e legendas, tudo isso, enfim, pretende criar um ambiente que imitaria uma hipotética produção de xilogravuras tardo-medievais, já no uso da imprensa, mas ainda sob o domínio da mundividência medieval. Algo de extremamente apropriado em relação a um dos textos que mais sucesso popular e comercial atingiria, no advento da imprensa, do comércio burguês do livro, e das tendências culturais em seu torno.
O poema de Dante viria a tornar-se uma das obras-primas da literatura europeia (já para não falar do papel decisivo que teve na fundação da identidade “italiana”, e erguendo o florentino a “língua italiana”); foi mesmo um dos seus actos fundadores, talvez, e mais tarde será um dos títulos com lugar cativo e permanente, diga-se assim, da dita literatura universal ou, o novo termo contemporâneo, Literatura-Mundo (com Homero, Cervantes, Shakespeare, Goethe, etc.). Na complexa e riquíssima história da sua recepção, existem dois campos de interpretação crítica que se destacam. Por um lado, é a assunção de Dante, o Teólogo, que daria origem a edições carregadas de comentários e notas interpretativas, abertas aos quatro sentidos da Bíblia, como auscultação do além e da Fé, etc.; por outro, destilava-se Dante, o Poeta, dando origem a edições que procuravam antes uma elegância material, para a qual a ilustração contribuiu sobremaneira, e cujo objectivo era saborear as palavras de um modo mais imediato. Curiosamente, se são sem dúvida mais famosas as ilustrações “artísticas”, existem também as ilustrações “científicas” ou “teológicas” de Dante, como a edição escolástica de Alessandro Vellutello. Na verdade, o estudo das edições de Dante são reveladoras, a um só tempo, da relação com o seu poema mas também da história do livro e da imprensa. Poderíamos dizer que a versão de Ruijters balança entre ambas as atitudes, ainda que nasça num campo equidistante das duas, uma vez que emerge de uma direcção totalmente diferente, e que tem a ver com a produção contemporânea da banda desenhada, e o seu papel cultural específico. Mesmo junto aos crentes cristãos, a ideia de Inferno é hoje moldada de modo bem diverso, e em muitos aspectos os sentidos literais e anagógicos dos escritos religiosos foram postos de lado. Não obstante, podemos ver neste “passeio” uma procissão por papéis ainda hoje detectáveis nos comportamentos humanos, e assim relê-los à luz de um castigo previsto. O lado “poético” de Dante estaria sublinhado, por mais transformações que se verifiquem, pelo próprio acto do autor holandês, e a forma variada com que ele ritma a narrativa e as imagens.
Em termos de composição, Inferno é, também a um só tempo, simples e complexo. Simples, uma vez que não estamos perante construções ambíguas, ma de uma legibilidade quase total, em que as várias opções, as quais atravessam todo o espectro estudado e previsto pelas nomenclaturas de Peeters e Chavanne, se subsumem ao programa narrativo, linear, significante, do autor. Complexo, precisamente por optar atravessar todo esse espectro, existindo vinhetas que ocupam uma página inteira (e sendo um livro no formato, aproximadamente, B5, não estamos a falar de pranchas gigantes, mas perfeitamente navegáveis manualmente), outras dividindo-a em duas metades, utilizando grelhas várias, versões “semi-regulares” de todas essas divisões e sub-divisões, e mesmo casos mais nivelados, como quando as vinhetas são na verdade balões de fala, de pensamento, analepses, existindo ainda construções oblíquas, outras que empregam o efeito de repetição da personagem à la Gianni de Luca (ou, até por ser matéria dantesca, à la Boticcelli), e pelo menos num caso uma construção mais complexa: Virgília encontra-se no centro, e dela despedem-se balões “de fala” no interior dos quais se mostram várias cenas relativas a actos de traição. Apesar de existir uma leitura natural, quer a primazia da “fonte” desses balões quer a estrutura circular complica essa ordem mais naturalizada, o que interessaria seguramente a Chavanne como um caso digno de nota. Na verdade, estamos em crer que em termos pedagógicos se poderia empregar a totalidade de Inferno para demonstrar algumas largas possibilidades de arranjo das vinhetas no interior de um espaço comum e formalmente idêntico.
É um marcado sinal, em suma, de todo este permanente equilíbrio e vivência dupla que temos assinalado ao longo da nossa leitura deste livro, que participa sempre em duas posições aparentemente contraditórias. Nesse sentido, Ruijters alcança aqui um acto alquímico.
Nota final: imagens cedidas pelo editor, a quem agradecemos. Ainda, para os interessados, está disponível uma serigrafia magnífica do autor pela Mike Goes West; vejam e adquiram aqui.
26 de junho de 2013
Inferno. Marcel Ruijters (Mmmnnnrrrg)
Publicada por Pedro Moura à(s) 12:09 da tarde
Etiquetas: Adaptação, Outros países
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