Há um entusiasmo em torno da obra de Shaun Tan que nos obriga a
tentar perceber onde residirá, e a sua razão de ser. Estes dois livros têm
características comuns que explicam uma das dimensões da sua valorização (tendo
sido mesmo alvo de edição num só volume, com uma terceira história, em inglês), e que se pode isolar enquanto
o seu afecto principal. Ambas as histórias são descritíveis como melancólicas, criando desde logo um
espaço bem diverso daquele garantido pela esmagadora maioria da produção do
género, os
livros ilustrados infantis, usualmente presa a princípios
pedagógicos ou de ideias preconcebidas e policiadas do que as crianças devem
ter acesso. Contudo, se cremos que as crianças são seres individuados,
emocionalmente completos e com todas as potencialidades do ser humano, então
elas têm em si todo o espectro da existência humana, e não há razão para
sonegar-lhes o contacto com as inquirições permitidas pela ficção e pela
poesia. É necessário que, na sua leitura com os leitores mais novos, haja mesmo
uma preocupação redobrada em dar a entender estes sentimentos, e estes livros
são um caminho óptimo. (Mais) Os livros apresentam-se com características
suficientemente distintas que nos permitem compreender que Tan não é, de forma
algum, um artista de uma nota só. A coisa
perdida, narratologicamente, é uma história contada na primeira pessoa,
pelo próprio protagonista, de algo que ocorreu no seu passado distante, e que
já se distancia da sua memória presente. No entanto, em termos visuais, temos
acesso a esse passado somente, e não ao “presente” da narração. Além disso, em
termos de composição, Tan opta por páginas sub-divididas em várias vinhetas,
algumas das quais apresentando pequenas sequências curtas reminiscentes da
banda desenhada, e com legendas, incluindo pequenos diálogos entre as
personagens, em cartuchos próprios. Num caso, a revelação do suposto
Departamento Federal de Pontas Soltas, o depósito as coisas perdidas, enfim, é
feita numa imagem que ocupa toda a dupla página, obrigando a virar 90º o livro
(mimando dessa forma, a possibilidade de entrarmos num mundo paralelo). Todos
estes materiais apresentam-se como quem em pequenas unidades materiais que se
sobrepõem, na totalidade, sobre um fundo texturado, ao qual regressaremos
adiante. Já A árvore vermelha apresenta uma linha textual coesa, dirigida a uma
segunda pessoa que, ou interpretamos como sendo “nós”, o interlocutor, o
leitor, o narratário (tudo isto tem diferenças substanciais analíticas, mas
tratemo-los como sinónimos) ou então a personagem que vemos nas imagens, uma
jovem menina (este jogo recordará os leitores de Robbe-Grillet em La Jalousie, e aquilo que pode parecer
estranho à partida, rapidamente se encaixa numa naturalidade cognitiva). Este
texto é mais poético, menos narrativo (a ausência de pontuação reforça a ideia
de um discurso fluido), e atravessa toda uma série de ideias descritivas de
emoções, aliás, sublinhadas pela estratégia de enfatizar o tipo de letra
através do tamanho, colocação, relação com as demais, etc. A esmagadora maioria
das imagens são cenas desconexas entre si, ou pelo menos sem um elo narrativo
óbvio, transformando ainda mais a qualidade fluida, onírica ou poética do
discurso textual. Apenas as vinhetas introdutórias e finais levam à ideia de
uma narrativa, ou pelo menos da criação de um ambiente do qual a protagonista
parte e regressa (uma rápida comparação com Where
the Wild ThingsArerevelará estratégias de “atravessamento de mundos”
idênticas). As diferenças entre os livros ainda se notam ao nível da agência das
personagens. Se A coisa perdida não parece ter a possibilidade de uma
redenção, A árvore vermelha já abre espaço à mais mínima esperança, e
onde o processo, no primeiro caso, mostra duas personagens em companhia, uma
tentando ajudar a outra, a menina da árvore carrega os seus problemas
solitariamente. Apesar de a personagem-narrador de A coisa perdida dizer, explicitamente, que a história não tem nada
“de particularmente profundo”, a verdade é que o emprego da melancolia, da
tristeza, enquanto tema de livros ilustrados infantis não é novo (para esse
fito serve este bloco de posts), mas não é tampouco uma contínua
presença. É antes algo apenas explorado de quando em vez por autores
singulares. Poderemos citar alguns exemplos mais famosos em Andersen, Wilde,
Sendak e Silverstein. Mas quase todos eles procuravam sempre uma resolução pela
positiva ou algo que se lhe pudesse assemelhar: a avó que leva a neta para o
céu, Deus recebendo o coração de chumbo e a andorinha, a sopa à espera no
quarto, um toco que serve de último amparo. Tan, pelo contrário, como também
Oliver Jeffers, outro autor felizmente publicado em Portugal (e de que a Orfeu
Negro acaba de lançar um novo livro, de que daremos conta), prefere manter uma
certa ambivalência, uma curva menos visível de alegrias e de redenções, que é o que muitas vezes no
afecta no mundo real. Há também algumas características formais constantes em Tan, quer nos
seus livros “infantis” quer naqueles que se podem dirigir a um público mais
alargado, como Emigrantes[também português pela Kalandraka]. O trabalho
das cores opta por uma camada translúcida que dá passagem a pequenos elementos
gráficos, que tanto parecem criar um padrão de elementos inarticulados como de
objectos indistinguíveis que se esforçam por ganhar um espaço de direito à
acção, à representação, mas vontade essa sempre gorada num limiar qualquer.
Dessa maneira, esses elementos arrastam toda a materialidade do trabalho do
autor para um espectro de funções, de fitos, que são cumpridos. É como se
demonstrasse dessa maneira um diálogo entre dois planos, o fundo de onde
emergem as coisas e o plano de representação, ou o modo como de facto os afectos
influenciam o mundo das acções, da vigília. No fim de contas, Tan parece
trabalhar a sua ilustração menos como um campo de experimentações
diagramáticas, como uma das escolas contemporâneas mais em voga segue, ou
procurando estilizações absolutas, e emprega toda uma panóplia de instrumentos
pictóricos, materiais, texturais, que se associam a toda uma série de
referências da história da pintura, quer em termos de figuração (Bosch), em
termos de composição (Brueghel) ou de ambiente (De Chirico). Se bem que a adaptação de A coisa perdida ao cinema deanimação seja feliz em termos de ritmo, relação com a trilha sonora (desde a
música à bruitage aos diálogos), a opção pela modelagem digital faz com que se
perca muita dessa materialidade manual e quase aleatória “encontrada” nos livros
(é como se a técnica de Eric Carle encontrasse uma maior liberdade de fontes de
matéria). Em Fanny e Alexandre, de Bergman, o discurso do pai Ekdahl
depois da peça de Natal no teatro compara o “pequeno mundo” do teatro com o
“grande mundo lá fora”, e explica como, por vezes, esse pequeno mundo “consegue
reflectir o grande para que o possamos compreender melhor” ou então “dar às
pessoas uma oportunidade de o esquecer durante uns brevíssimos momentos, a esse
mundo árduo”. Essa relação acontece igualmente com “outros pequenos mundos”,
como os destes livros ilustrados. E como o sabe Ekdahl, talvez melhor que
outros ao longo do filme, esse pequeno mundo por vezes reflecte mesmo a
natureza árdua do grande mundo, e os livros de Tan, tal como os de um punhado
pequeno de outros autores de livros ilustrados infantis que não se coíbem dos
maiores escolhos e coragens, abordam essa natureza de modo directo e
implicado. Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta dos livros. Amanhã: Aves, de Garrido e Hernández.
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