
Daytripper pode ser descrito como a história da vida de Brás de Oliva Domingos, focando os proverbiais “momentos marcantes”, abordando-se a infância, as aspirações, e as relações com os pais, a mulher e o filho, o melhor amigo, uma amante da juventude, e a sua luta com uma carreira desejada de escritor. E no meio dessas outras linhas, a procura de um “sentido da vida”. No entanto, aquilo que mais tem chamado a atenção das leituras de Daytripper é a sua estrutura narrativa. Sendo o primeiro trabalho de grande fôlego “a solo” (ou melhor, a quatro mãos) dos gémeos Moon e Bá, esta ficção em torno da biografia de Brás não é apresentada de modo linear e teleologicamente fechada. Cada um dos capítulos (na verdade, os primeiros oito somente) apresenta um momento da vida de Brás, ordenado de forma acronológica, desde a sua mais tenra infância até à idade adulta, sempre terminando abruptamente com a sua morte, usualmente violenta (vítima de um assalto à mão armada, num acidente rodoviário, electrocutado na via pública, atropelado, esfaqueado pelo amigo, afogamento, na mesa de cirurgia). Essas mortes são incompatíveis entre si, e o enquadramento de toda a obra é realista, logo elas não se subsumem a um factor maravilhoso. É na pesquisa dessas mortes, dessas ruínas, que se vasculham os sentidos da vida do protagonista. Além do mais, e sobretudo no 9º capítulo tecido em torno do sonho (que consideramos ser o que mais destoa de toda a economia da narrativa), alguma exploração dos níveis oníricos (“surreais” não nos parecer ser preciso) possíveis aproximam Daytripper de toda uma série de outras tradições literárias, como as de Borges e Cortázar, e de que não faltarão exemplos no seio da banda desenhada. (Mais)
Cada episódio é intitulado através de um número (“32”, “21”, “28”,…, “11”, etc.), que corresponde à idade de Brás nesse mesmo episódio. Ao mesmo tempo, desde logo aponta a uma organização acrónica que não deseja de forma alguma a naturalização do tempo ou uma ideia teleológica - por hipótese, da memória linear da vida que se revê no momento da morte.
Cada episódio é intitulado através de um número (“32”, “21”, “28”,…, “11”, etc.), que corresponde à idade de Brás nesse mesmo episódio. Ao mesmo tempo, desde logo aponta a uma organização acrónica que não deseja de forma alguma a naturalização do tempo ou uma ideia teleológica - por hipótese, da memória linear da vida que se revê no momento da morte.

Uma palavra é necessária aqui, ainda em relação aos princípios narratológicos. Muitos dessas estratégias “inaturais”, não-convencionais, podem vir a tornar-se, bem pelo contrário, convencionais. Pense-se, por exemplo, na quantidade de filmes que existem hoje que expõem a sua matéria narrativa até aos últimos instantes, para com a revelação de uma só informação (o detective é afinal o morto, nós e não os outros somos os fantasmas, a história contada por Verbal é toda uma treta, Tyler é Jack, etc.), toda a narrativa se altera radicalmente (no mais preciso uso desta última palavra, que aponta para o que constitui a sua “raiz”). É nesse sentido que o contexto de publicação, isto é, o selo editorial da extinta Vertigo, é importante: ele permite, mesmo no seio do mainstream, algumas explorações menos convencionais da narrativa, temas ligeiramente desviantes daquilo que mais compõem a produção principal da casa-mãe, etc. Ainda estamos num campo de convenções, de que a Vertigo é um quadro. E é nesse quadro que Daytripper se apresenta com algum grau de diferença.
Histórias que lidem com a morte do protagonista, mesmo no início da sua saga, tampouco são inéditas, e um autor como Machado de Assis surgirá aqui, quiçá, como modelo maior da escrita dos gémeos, para mais tendo em conta que a leitura comparatista com Memórias póstumas de Brás Cubas revelaria muitos pontos de interesse intertextual, se não mesmo de fonte principal. Um aspecto importante de sublinhar, e que tem a ver com a publicação original em comic books singulares e separáveis - com tudo o que isso acarreta de ritmo de leitura, de espera, de enquadramento cognitivo, de dimensão material -, é que os primeiros episódios, digamos, as “mortes” (capítulos 1 a 8), funcionam de forma estilhaçada e desirmanada, e por isso são eficazes nas suas relações possíveis e cambiáveis (outro dos pontos de contraste com Assis, cujo romance foi publicado originalmente em formato de folhetim). Mas os dois últimos capítulos sentem-se por demais desejarem ser “fechos” ou “selos” sobre toda a intriga, ou melhor, a tessitura da obra, e são algo falhos na profundidade a que almejam. É como se se construísse um caminho promissor com a premissa inatural, e depois se procurasse uma explicação, e ela fosse menos elegante do que o caminho, e acabasse por coarctar as expectativas até ali levadas.
Na verdade, o livro não deixa de ser uma colagem algo expectável de alguns clichés em torno dos “momentos mais importantes das nossas vidas”, e muitas vezes descamba em episódios emotivos pré-embalados (o primeiro beijo, o primeiro encontro com a mulher, a história contada pela mãe do seu nascimento - a origem do “pequeno milagre” -, o nascimento do filho, momentos com o melhor amigo, etc.). Nesses aspectos, Daytripper acaba por ser mais delicodoce e domesticado do que propriamente um livro maturo. Se as comparações, sempre falhas, com outros textos, e para mais cinematográficos, servir para alguma coisa, digamos que será como esperar que Hope Springs (Frankel) revelasse o mesmo sobre uma vida a dois no ocaso da vida do que Amour (Haneke), ou que as relações entre pai e filho fossem as mesmas entre The Pursuit of Happyness (Muccino) e O Regresso (Zvyagintsev). Ainda que os “temas” pudessem ser comparáveis, nada mais é, e acima de tudo, o que ficará é a ideia de que os primeiros apresentam uma forma dominante e dominada de felicidade, face ao quase esvaziamento desesperado dos segundos. Enfim, apesar de querer lidar com elementos profundos da (de toda a?) vida humana, dramaticamente é pouco espessa e sentimentalista (não admira, portanto, que o prefácio seja assinado por Craig Thompson, com o qual partilham essas características; aliás, fãs desses autores, e de Cyril Pedrosa, serão movidos por esta abordagem sentimentalista, à la A vida é bela). Daytripper, numa palavra, quer terminar “bem”, mesmo no interior dos aparentes “finais trágicos”. Alguns dos discursos - sobretudo os do pai Benedito, que parece agregar em si toda uma série de imagens feitas do “grande escritor sul-americano” - são algo melosos e patéticos, no verdadeiro sentido da palavra (de “pathos”), e não são reveladores da solidão humana mais premente e dolorosa: eles apontam a ela - “a vida é um deserto”, apesar de estarmos rodeados por milhões de pessoas - mas logo depois apresentam a solução maximal, mágica - “e procuramos por aquele oásis a que gostamos de chamar amor”. Por vezes, as “explicações” parecem querer forçar os leitores a entenderem a lição, como quando o pai, logo depois desse discurso do deserto e oásis, instiga o filho a procurar por aqueles momentos que, na vida, nunca se esquecem (cap. 3). Infelizmente, são estes elementos que mancham Daytripper de um tom piegas.

Se os autores espalham muitas pistas que pedem, desde logo, a uma re-leitura das páginas (a presença dos romances de Brás, pequenos objectos ou fotografias que remetem entre episódios), esses sinais de tressage parecem por vezes surgir algo forçados. A existência de ideias mais ou menos clássicas (a segunda família do pai Benedito, a infância feliz na quinta rural dos avós, uma relação quase sempre positiva com os familiares) reforçam sempre uma certa tranquilidade senão mesmo bonomia.

Como disse a escritora Sarah Kofman numa entrevista, “seja qual for a situação que a literatura descreva, será, pela sua natureza, idílica”. Por mais próxima que seja à “vida real” as histórias que os autores possam tecer (seja num registo autobiográfico ou ficções naturalistas como a de Daytripper) serão sempre apenas traços materiais existentes numa qualquer forma - neste caso, desenhos e palavras, figuras e cores, etc. - e não vidas propriamente ditas. Ainda assim, elas afectam-nos, precisamente através dos afectos que tocam. Mas esses afectos são menos profundos do que parecem. Se o título remete para a canção dos The Beatles, talvez aponte igualmente para uma “saída fácil”?
2 comentários:
Li o post só após terminar o livro (ainda bem, conseguindo assim evitar vários "spoilers" :)
Concordo com várias das críticas apontadas, como o recurso a alguns "clichés" previsíveis, e um encerramento da narrativa que fica um pouco aquém dos 8 capítulos iniciais.
No entanto, como é habitual dizer, "o que é importante não é o destino, mas a viagem" ;)
Apesar de tudo, na minha opinião de leitor não especialista, é uma obra intencionalmente tocante, para nos fazer reflectir, com uma linha gráfica magnífica, de cenários e composições repletos de cores e detalhes magníficos, e diálogos (e silêncios e gestos) cativantes.
Em suma, uma obra magnífica, emotiva, sobre a vida... e a morte.
Recomendo vivamente.
Olá, Ricardo.
Obrigado pelo comentário. Como dissemos, uma leitura crítica nunca é, nem poder ser, uma leitura final, e elas apenas podem ser múltiplas, por "especialistas" ou não. Diria mesmo que a leitura da banda desenhada por leitores "comuns" ou simplesmente leitores, é uma fortuna mais bem-vinda do que simplesmente estar preso num universo de leitores-fãs de banda desenhada... a circulação dos textos e a contaminação cultural precisa disso.
Tudo o que diz do livro é exacto e tem a ver com um impacto pessoal, que é válido. A minha tentativa de interpretação é que tenta tão-simplesmente desempacotar esse efeito e seus instrumentos, para compreender o jogo.
Boas festas e que haja livros aos quadradinhos na meia!
Pedro
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