Produzido no seio de Guimarães 2012, Capital Europeia da Cultura (CEC), pela iniciativa e organização da Escola Superior Artística do Porto, extensão de Guimarães (ESAP-GMR), este foi um projecto que reuniu 6 artistas, todos eles afectos à banda desenhada e/ou à ilustração, e ainda com um pendor muito particular, para que visitassem a cidade e a figurassem nos seus desenhos conforme os instrumentos que melhor lhe conviessem. Esses artistas são Nuno Sousa e Marco Mendes, que têm ou tiveram laços de trabalho com a ESAP-GMR, João Fazenda, as alemãs Ulli Lust e Anke Feuchtenberger e o belga Deniz Deprez. Esses desenhos depois teriam várias “vidas”.
O resultado é um livro oblongo que reúne esses mesmos desenhos nessas vidas. Para além dos desenhos originais, claro está, eles destinavam-se sempre a um qualquer meio de reprodução. O primeiro, desde logo previsto, era uma reprodução em grande escala para ornarem outdoors estrategicamente colocados em Guimarães. Se bem que essa prática possa remeter a todo um historial de práticas artísticas, que envolvem arte politizada, críticas à publicidade, estratégias várias da street art, ou meramente jogos lúdicos de ilusão e referência, a utilização de outdoors para palco de imagens enormes, que não estão associadas a nenhuma mensagem publicitária ou de propaganda (pelo menos no seu sentido comum), criam logo um espaço de disrupção, feliz, do olhar distraído dos transeuntes. Obriga a olhar com uma intensidade particular naquele momento. A primeira parte do livro tem um conjunto de fotografias precisamente mostrando esses espaços ocupados pelos desenhos (e um mapa com as suas localizações, mas desconhecemos se estes materiais estiveram disponíveis durante essa presença). Só essas imagens poderiam levar a leituras complexas e estimulantes sobre o diálogo entre as imagens e esses “não-lugares” (Marc Augé), a ideia de “cidade sobre-exposta” (Paul Virilio), ou outros conceitos, ora desarmando ora reforçando as noções de “memória e quotidiano” que os autores exploravam, e que poderiam ser vistas como resistências.
Seguem-se as secções de cada autor, com pequenos textos introdutórios aos processos, ideias, preocupações, pequenas anedotas. A apresentação geral do projecto atravessa os costumeiros prefácios institucionais, inclusive o de Paulo Leocádio, em nome da escola que propôs e nutriu o projecto, graças ao envolvimento de muitos dos seus docentes, e com um destaque sentido a Maria José Laranjeiro, falecida recentemente, e que era uma das principais “almas” dessa instituição. Mais próximo do “programa” do projecto, está o texto de João Miguel Lameiras, que não só dá a conhecer a biografia e obra dos autores, como avança uma possível e sensível abordagem à matéria destes desenhos, e às metodologias dos autores, e a quem roubaremos os títulos individuais de cada secção. Além da reprodução dos desenhos propriamente ditos, temos acesso a esboços e estudos, blocos de desenho, e outros materiais. E finalmente o livro é encerrado com fotografias da exposição dos mesmos materiais que teve lugar no Museu da Sociedade Martins Sarmento. No entanto, o livro vem numa caixa-envelope, que encerra desdobráveis de um desenho de cada autor, os quais podem ser vistos como posters, ou outra coisa, mas são, sem dúvida, uma outra “vida” desses desenhos.
João Miguel Lameiras institui estes títulos para cada núcleo autoral: “Anke Feuchtenberger e os caminhos da água”, “Deniz Deprez e a uniformidade dos subúrbios”, “João Fazenda e a síntese impossível”, “Marco Mendes entre autobiografia e memória”, “Nuno Sousa e o fascínio do quotidiano”, e “Ulli Lust e as mulheres de Guimarães” (pp. 18-24). É na sua leitura, e dos textos dos autores, que encontraremos muitos elementos que podem corroborar a leitura e análise das imagens. Se não podemos dizer que haja surpresas, também devemos estar conscientes que não se esperam surpresas destes autores, mas sim antes inflexões inteligentes, como já debatemos noutras ocasiões, em que os autores são capazes de engrenar as circunstâncias e exigências dos projectos para que são convidados na continuidade dos seus projectos, ou linguagem, individuais.
Dessa forma, é quase natural que Feuchtenberger eleja a água como o elemento coordenador da sua viagem, criando pranchas com vinhetas regulares, mas numa estrutura relativamente inédita, na qual engloba as suas impressões de viagem, observações, espaços visitados, pessoas espiadas, histórias contadas por interlocutores, e, pensando no ciclo da água até, ela interrogue o ciclo da memória da terra, das pedras, da história mítica e simbólica e daquela ao rés-do-chão das pessoas ditas comuns.
Deniz Deprez parece ter procurado os “não-lugares” possíveis de Guimarães, a “uniformidade” que Lameiras indica, ou que Olivier Deprez (que dá as suas palavras à secção do irmão) diz ser a “estandardização” e “neutralidade” desses espaços: cruzamentos de estrada, máquinas desligadas em unidades fabris abandonadas, cantos de viadutos (parece ter havido um projecto videográfico paralelo). As tintas acrílicas de Deprez a um só tempo respeitam os referentes e mergulham-nos numa espécie de neblina subtil e pastosa, o que aumenta essa visão desconcertante de uma “mesmidade” possível por entre todo o mundo ocidental(izado).
João Fazenda cria como que mapas da cidade, reduzindo espaços, pessoas e acções a uma estenografia ou infografia colorida, onde tenta a “síntese impossível” (JML), e impondo mais a sua visão gráfica individual do que uma fusão em supostas especificidades daquele local. O contraste entre os desenhos no caderno de esboços e o resultado final faz adivinhar uma resoluta e aturada pesquisa dessa mesma linguagem gráfica, que nos faz recordar sobremaneira alguns dos quadros-mapas de Joaquim Rodrigo, salvo a distância da monumentalidade deste último. Mas, tendo em conta a sua reprodução em outdoors, não seria antes invertida essa comparação?
Marco Mendes integra a sua relação com a cidade de Guimarães (visitante mais assíduo do que os outros artistas, tendo sido docente na ESAP-GMR) no seu contínuo programa de transfiguração da autobiografia em interrogações de identidade, de significado e de valorização social numa contemporaneidade que diminuiu as oportunidades dessas mesmas discussões ao seu mínimo, senão mesmo quase extinguindo a sua possibilidade. Apesar de muitos intelectuais discutirem o fim das “grandes narrativas” (desde os anos 1960), e as palavras “tradição”, “história”, “heróis” serem muito problemáticas, Portugal continua em muitos campos a crer que elas encerram em si mesmas princípios eternos, indiscutíveis e claros. As tiras de Mendes minam esses conceitos, no seu humor melancólico.
Nuno Sousa, que também é docente na ESAP-GMR, olha para as montras mais populares, as feiras, e os parques, enquadra-lhes os pormenores até ao ponto de as recortar dos seus espaços circundantes para as transformar em aparentes quadros ou projectos de instalações totalmente desprovidos de emoções. Apesar da forma, nega qualquer possibilidade de narrativa em arco, de resoluções, de uma compreensão de um progresso, votando o que representa ora a um congelamento eterno ora a uma repetição perpétua. Difícil compreender qual dos dois fins o mais terrível.
Ulli Lust, respondendo à total ausência de estátuas ou fotografias icónicas de mulheres em Guimarães, resolve isolar mulheres de Guimarães para fazer curtos retratos individuais. Uma pequena galeria de mulheres em todas as suas tipologias etárias, profissionais, culturais e de beleza, algumas posando sentadas ou em pé, outras nas suas actividades ou momentos de lazer. Aparentáveis com os (nossos) conhecidos retratos de Colombo, as personagens de Lust querem porém surgir como uma homenagem a lápis das que “em carne e sangue” fazem continuar a vida.
Não deixa de ser importante, e sinal de inteligência da parte dos artistas e da parte dos organizadores do projecto, que estas imagens, quer enquanto núcleos individualizados quer enquanto conjunto, não se pautem por um discurso de encómio simplificado à cidade de Guimarães. Se a CEC é usualmente uma oportunidade de celebração e mitificação mediática, já para não falar de palco de controvérsias, e como sobejam!, em torno das artes visuais e a sua relação com o poder político, as vontades autárquicas e interesses locais, o “grande público” e outros agentes, Cartografias aproveita essa oportunidade – política e financeira – mas para criar pequenas resistências. Afinal, as imagens de Deprez ou de Sousa ou de Fazenda, salvo as diferenças e estratégias (“ausência de singularidade” versus “desencanto” versus “estilização máxima”), poderiam ser as de outro local qualquer, mas não o sendo, retiram uma vontade de singularizar a cidade de Guimarães, “berço de Portugal”. Esta última dimensão não deixa de ser desconstruída por Marco Mendes igualmente, pela oposição que faz dos episódios histórico-míticos (a batalha de Mamede) e cíclico-simbólicos (as Festas Nicolinas) e um absoluto desencanto do dia-a-dia hodierno. E se a banda desenhada de Feuchtenberger parece criar uma ideia de “memória eterna” que mescla os seres viventes e a terra, sob o signo das pedras e da água (tão opostas como complementares), ela não deixa de querer desviar a circunstância espacial e temporal, precisamente para chegar a algo mais universal. Talvez uma das poucas universalidades a que se podem chegar, a do chão que pisamos? E Lust, no seu elogio feminino, não estará a negar, totalmente, aquelas mesmas grandes narrativas, que as mais das vezes são asseguradas pelos “grandes homens da História”?
Um aspecto menos feliz é o facto de que as fotografias dos outdoors, no início do livro, dão melhor conta das cores originais dos desenhos, do que as suas reproduções nas secções centrais, onde há algumas puxadas para o vermelho ou alguns pormenores ficam meio “queimados” ou “borrados”. As imagens de Deprez, Mendes e Sousa são aquelas, parece-nos, que sofrem mais. Nada disto impede que este livro se possa tornar um elemento importante, senão mesmo uma referência, ao edifício que vai sendo construído em torno dos desenhadores do quotidiano, dos diários de viagem, dos urban sketchers e projectos similares.
Nota final: agradecimentos, e saudades, à ESAP-GMR, pela oferta do livro.
8 de abril de 2013
Cartografias da Memória e do Quotidiano. AAV (Guimarães 2012/INCM)
Publicada por Pedro Moura à(s) 11:00 da manhã
Etiquetas: Alemanha, Exposições, França-Bélgica, Ilustração, Portugal
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