A razão pela qual arrolamos essa
discussão filosófica, ainda que não a aprofundemos, é porque nos
parece estar subjacente, de forma inconsciente, na matéria debatida
pela intriga de Toutinegra,
o mais recente livro escrito por André Oliveira, desenhado por
Bernado Majer. Penso que não será ofensivo para com o artista
assumir que este é um volume que à continuidade a muitas das
preocupações e assinaturas temáticas de Oliveira, mas que
queiramos acreditar que existirá aqui frutos de discussões entre os
dois autores e contrintuso equilibrados. Um dos recorrentes temas do
argumentista é a importância da dinâmica familiar, seja esta
composta por que elementos forem. E é quando essa unidade social se
rompe, está à beira da ruptura ou numa tensão significativa, que
as suas narrativas se tecem. Oliveira encontra aqui uma maneira
naturalista de escrever os diálogos, que com pouco caracterizam de
forma magistral as relações entre as personagens e as suas
inscrições sociais. (Mais)
Ancorada a intriga central numa pequena
aldeia de um Portugal rural e atreito a tradições
místico-católicas, não é apenas essa matriz que ganha
proeminência na história como a relação que o leitor manterá com
os elementos da narrativa e o valor que lhes dará.
Toutinegra tem uma estrutura
não-linear, mas não é propriamente impossível de destrinçar. A
questão da organização temporal dos vários episódios não é um
desafio insuperável. Os autores usam de forma clara a estratégia da
delineação das vinhetas para cartografar essa navegação, mesmo
que haja dúvidas criadas por outras forças. A questão da percepção
mais fantástica, e a distinção entre uma suposta “verdade”
tangível e partilhável na vigília e as partes mais associadas à
percepção específica de Pedro, também não constituirão um
obstáculo à “correcção”, retrospectiva, dos factos da
diegese. A ambivalência do livro emerge antes da valorização
simbólica que daremos aos elementos que surgem precisamente nesse
papel.
Essa flutuação está também expressa
na matéria visual e estrutural do livro. O desenho e as cores de
Bernado Majer, com os seus efeitos de esboço e aguadas, linhas
interrompidas para criar a ideia de texturas e volumes, e figuração
plástica, é particularmente suave, e parece quase mais adequada a
um livro infantil. Mas se aparentemente tem pouco a ver com a matéria
– recordar-nos-á um pouco como Pedro Serpa trabalhando em Palmas
para o esquilo – isso é precisamente uma das maneiras de
tornar mais eficaz a entrega emocional da trama e das suas
personagens.
Poderíamos dizer que o livro é sobre
uma promessa a pagar, uma desculpa a pedir, uma conta a acertar.
Poderiamos dizer que é uma maneira de, a um só tempo, salvar e
enterrar uma memória para que a vida possa ser vivida de uma maneira
mais livre e honrada, da parte de Pedro, que enquadra toa a
revisitação a Moinho, as suas gentes e o capítulo da sua infância
que preenche a parte de leão do livro.
Como dissemos, apesar do livro estar
ancorado numa visão realista de uma realidade portuguesa, abre
espaço a uma dimensão de fantasia que nos é não apenas familiar
como querida, por razões óbvias. O livro coloca em contacto, com
Pedro e Adelaide, a sua companheira na infância isolada de Moinho –
eram as duas únicas crianças da aldeia e por conseguinte da escola
e das brincadeiras –, duas ou mesmo três criaturas-guia, que podem
ser vistas como uma espécie de nagual, psicopompo, ou outras
funções mágicas das culturas humanas. Um gato e uma toutinegra,
cada qual com um papel específico e que tem a ver com o anúncio da
morte. Aparentemente sem quaisquer contornos diferentes do mais banal
de cada um desses animais, é apenas a ideia da coincidência ou da
crença individual – a fé – que levará a que se interpretem
realmente com esses papéis. E uma terceira criatura, fantástica,
com elementos físicos partilhados por aqueles dois animais, que se
revela a Pedro e Adelaide, e os tenta encaminhar em direcção a
segredos do passado, a eventos do futuro, e realidades ocultas mas ao
alcance de quem as procurar. Essa espécie de esfinge, então, é
palpável, revelada, tangível, verdadeira no seu sentido gnóstico,
no interior da história, a qual, não nos podemos jamais esquecer, é
narrada por Pedro, enquanto adulto revisitando a terra. Cabe-nos a
nós, então, sermos interrogados por ela e, dependendo da resposta
encontrada, saber entrar no seu espaço.
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