20 de janeiro de 2020

Toutinegra. André Oliveira e Bernardo Majer (Polvo)

A noção da é profundamente distinta da do conhecimento. A oposição pistis e gnosis é um pilar histórico no crescimento da filosofia da igreja cristã, e se ambos os conceitos indicam uma aceitação de ua lição como verdadeira, os modos de aceder a essa verdade são diferentes, distinguindo-se uma dimensão emotiva de uma outra racional. 

A razão pela qual arrolamos essa discussão filosófica, ainda que não a aprofundemos, é porque nos parece estar subjacente, de forma inconsciente, na matéria debatida pela intriga de Toutinegra, o mais recente livro escrito por André Oliveira, desenhado por Bernado Majer. Penso que não será ofensivo para com o artista assumir que este é um volume que à continuidade a muitas das preocupações e assinaturas temáticas de Oliveira, mas que queiramos acreditar que existirá aqui frutos de discussões entre os dois autores e contrintuso equilibrados. Um dos recorrentes temas do argumentista é a importância da dinâmica familiar, seja esta composta por que elementos forem. E é quando essa unidade social se rompe, está à beira da ruptura ou numa tensão significativa, que as suas narrativas se tecem. Oliveira encontra aqui uma maneira naturalista de escrever os diálogos, que com pouco caracterizam de forma magistral as relações entre as personagens e as suas inscrições sociais. (Mais)
Ancorada a intriga central numa pequena aldeia de um Portugal rural e atreito a tradições místico-católicas, não é apenas essa matriz que ganha proeminência na história como a relação que o leitor manterá com os elementos da narrativa e o valor que lhes dará.

Toutinegra tem uma estrutura não-linear, mas não é propriamente impossível de destrinçar. A questão da organização temporal dos vários episódios não é um desafio insuperável. Os autores usam de forma clara a estratégia da delineação das vinhetas para cartografar essa navegação, mesmo que haja dúvidas criadas por outras forças. A questão da percepção mais fantástica, e a distinção entre uma suposta “verdade” tangível e partilhável na vigília e as partes mais associadas à percepção específica de Pedro, também não constituirão um obstáculo à “correcção”, retrospectiva, dos factos da diegese. A ambivalência do livro emerge antes da valorização simbólica que daremos aos elementos que surgem precisamente nesse papel.


Essa flutuação está também expressa na matéria visual e estrutural do livro. O desenho e as cores de Bernado Majer, com os seus efeitos de esboço e aguadas, linhas interrompidas para criar a ideia de texturas e volumes, e figuração plástica, é particularmente suave, e parece quase mais adequada a um livro infantil. Mas se aparentemente tem pouco a ver com a matéria – recordar-nos-á um pouco como Pedro Serpa trabalhando em Palmas para o esquilo – isso é precisamente uma das maneiras de tornar mais eficaz a entrega emocional da trama e das suas personagens.

Poderíamos dizer que o livro é sobre uma promessa a pagar, uma desculpa a pedir, uma conta a acertar. Poderiamos dizer que é uma maneira de, a um só tempo, salvar e enterrar uma memória para que a vida possa ser vivida de uma maneira mais livre e honrada, da parte de Pedro, que enquadra toa a revisitação a Moinho, as suas gentes e o capítulo da sua infância que preenche a parte de leão do livro.

Como dissemos, apesar do livro estar ancorado numa visão realista de uma realidade portuguesa, abre espaço a uma dimensão de fantasia que nos é não apenas familiar como querida, por razões óbvias. O livro coloca em contacto, com Pedro e Adelaide, a sua companheira na infância isolada de Moinho – eram as duas únicas crianças da aldeia e por conseguinte da escola e das brincadeiras –, duas ou mesmo três criaturas-guia, que podem ser vistas como uma espécie de nagual, psicopompo, ou outras funções mágicas das culturas humanas. Um gato e uma toutinegra, cada qual com um papel específico e que tem a ver com o anúncio da morte. Aparentemente sem quaisquer contornos diferentes do mais banal de cada um desses animais, é apenas a ideia da coincidência ou da crença individual – a fé – que levará a que se interpretem realmente com esses papéis. E uma terceira criatura, fantástica, com elementos físicos partilhados por aqueles dois animais, que se revela a Pedro e Adelaide, e os tenta encaminhar em direcção a segredos do passado, a eventos do futuro, e realidades ocultas mas ao alcance de quem as procurar. Essa espécie de esfinge, então, é palpável, revelada, tangível, verdadeira no seu sentido gnóstico, no interior da história, a qual, não nos podemos jamais esquecer, é narrada por Pedro, enquanto adulto revisitando a terra. Cabe-nos a nós, então, sermos interrogados por ela e, dependendo da resposta encontrada, saber entrar no seu espaço.

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