9 de abril de 2020

Einstein, Eddington e o Eclipse. Impressões de Viagem. Ana Simões e Ana Matilde Sousa. (Chili Com Carne)


Este volume encerra um multifacetado e ambicioso projecto. A sua mera descrição desencerrará alguns aspectos dessa natureza complexa. Podemos começar por descrevê-lo como sendo um “livro-companheiro” de uma exposição intitulada E3, desdobrando o mesmo título. Esta exposição teve lugar no Museu Nacional de História Natural e da Ciência, celebrando o 100º aniversário de uma expedição astronómica científica, organizada pelos britânicos em 1919. Por ocasião de um eclipse solar total, dois navios partiram em direcção a Sobral, no Ceará, Brasil, e à Ilha do Príncipe, esta segunda sob o comando científico do astrónomo Arthur Eddington, então académico já bastante conceituado pelo seu labor intelectual e em prol da ciência contemporânea. O objectivo era claro: confirmar algumas das previsões centrais da Teoria da Relatividade Geral de Albert Einstein, propostas as quais haviam sido apresentadas meros anos antes. (Mais)

O livro apresenta-se em duas partes materialmente distintas. Em primeiro lugar, um belíssimo e erudito texto pela Professora Ana Simões, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, comissária daquela exposição acima descrita. Este breve ensaio, perfeitamente acessível ao grande público, encaixa-se como uma luva no seu trabalho enquanto historiadora da ciência. Há uma parte descritiva, como é expectável, que através de todos os pormenores logísticos, técnicos, científicos, e políticos – recordemo-nos que a preparação foi feita durante todos os conflitos, bélicos, políticos e económicos, da 1ª Guerra Mundial, e a viagem em si no seu rescaldo, portanto a coordenação internacional e, mais, entre antigos lados opostos do conflito, não foi um processo suave – nos devolve o que essa expedição significou em termos civilizacionais. Uma das dimensões não se somenos importância está o papel de cooperação com o Portugal colonialista da época, já que não apenas a expedição pararia na ilha do Príncipe, território de exploração de cacau, como houve passagem por Lisboa, e os seus poderes científicos locais procurariam afirmar “o valor da astronomia e das instituições astronómicas portuguesas” ao mesmo tempo “reforça[ndo] os laços firmados ao longo do século XIX entre ciência, poder e impérios coloniais” (pg. 22).

A outra parte é uma banda desenhada pelo punho de Ana Matilde Sousa, conhecida no círculo da banda desenhada portuguesa como Hetamoé, mas assumindo o seu nome civil encarando a sua “assinatura gráfica” e autoria de um modo bem distinto daquele pseudónimo. O que temos aqui em mãos é, aparentemente, uma quase mera “adaptação” das cartas, telegramas, comunicações de Eddington ao longo da sua viagem para vários interlocutores (colegas de profissão, a mãe, a irmã), com as imagens a devolverem os espaços e instituições percorridos, alguns dos protagonistas das acções, a natureza que observa e as impressões que tem, e até mesmo as observações científicas da expedição. O “sumo”, todavia, está em comentários paralelos à missão científica, dando-se mais importância a partidas de xadrez, ao número de bananas ingeridas ou ao aspecto físico de uma pessoa encontrada algures... Fulcral é compreender que a autora não molda de forma alguma uma abordagem pedagógica, e muito menos didáctica. Há antes uma exploração por uma forte materialidade experimental e poética, de um constante aproximar e afastar entre a coordenação texto-imagem, obrigando o leitor a vários tipos de inferências e interpretações.

A expedição procurou aproveitar as melhores condições então possíveis para observar e tirar fotografias (com equipamento específico – não só telescópios e chapas fotográficas, mas “lentes objectivas astrográficas”, “celóstatos de 16 polegadas”, etc.) do eclipse de 29 de Maio de 1919, subsequentemente levando a exactas anotações astronómicas que permitiriam medir o curvamento da luz das estrelas, distorção conhecida por “lente gravitacional” e que fazia parte das previsões estruturais da Teoria da Relatividade Geral de Albert Einstein. Se se tratasse de uma intriga clássica, porventura um filme hollywoodesco, teríamos os cientistas a discutir com os que estariam contra por princípios políticos ou outros, algumas dificuldades na viagem, mas sempre na premissa de que haveria um evento climáctico à frente, verificado no eclipse, que se dá. Mas depois vem o terceiro acto, que é a revelação das imagens, as quais trarão as provas ou a queda da teoria. O livro, quer do lado do ensaio quer do lado da banda desenhada, abandona totalmente esses mecanismos aristotélicos, dramáticos, para escavar antes questões da materialidade política da comunicação.

Naturalmente, o texto em prosa de Ana Simões é mais “sóbrio”, no sentido em que discorre sobre todos os elementos da expedição, seus antecedentes e consequências. Sobretudo está a necessidade de devolver um momento em que o nome de Einstein não ocupava de forma alguma o papel de destaque imenso, prometeico, que tem hoje, mas antes a de um teórico ainda pouco conhecido fora dos círculos restritos das disciplinas da física, astronomia, e em prol de cujas teorias não apenas a expedição de Eddington se tornaria um factor de extrema importância, como o próprio cientista inglês lhe seria um dos mais importantes primeiros difusores em língua inglesa (e, daí, para o mundo).

A banda desenhada de Ana Matilde Sousa opta por vinhetas cujas imagens se apresentam sempre com um qualquer grau de distorção imagético (partindo do pressuposto, talvez problemático e redutor, de um “original” fotográfico cristalino), desde a sobre-exposição, a solarização, e os registos cromáticos desencontrados, mas há na própria figuração escolhas radicalmente distintas da “clareza narrativa”: figuras em silhueta, grandes planos de objectos ou rostos, composições quase abstractas. Num primeiro momento, parecer-nos-á que há como que uma espécie de mimese de certas tecnologias de captura, como o daguerreótipo (já obsoleto na data histórica que se representa), mas à medida que nos aproximamos do eclipse em si, poderemos acreditar ser antes uma aproximação à tecnologia que serviria para prender a luz das estrelas e o anel da luz solar, que depois serviria de termo comparativo à descoberta. Seja como for, há um claro jogo manipulador da ideia de arquivo prévio sobre o qual o acto artístico elabora apropriações, transformações e inquirições em direcção à construção de sentido desejada.

Contudo, a autora não abdica totalmente de uma forma narrativa emotivamente engajada, já que o momento do eclipse em si é distinto dos demais, passado numa espécie de silêncio (um spread com total ausência da matéria verbal até ali exposta sob a forma de legendas). Mas não é tudo. A narrativa central – a voz de Eddington através da sua correspondência – é mostrada em legendas amarelas (todo o livro é bilingue, em português e inglês). Mas existem como que “intervenções” autorais/editoriais, apresentadas em legendas a verde: legendas indicando os nomes e datas dos intervenientes, a nomenclatura de Lineu identificando espécies de pássaros, notas mostrando e explicitando objectos, locais, equipamentos que tornam a missão mais clara. (Há também uma intervenção a rosa, mas não conseguimos identificar o seu grau ou natureza de diferença). Duas intervenções se destacam em particular: duas surgem no terço final da “aventura”, mostrando a silhueta de costas de Einstein, com a segunda aparição explicando que está à “espera”, como se se tratasse de uma mistura de MacGuffin hitchcockiano e inacção beckettiana. De certa forma, poderá tratar-se de um apontamento irónico, mas poderá igualmente ser interpretado como o diferencial necessário entre o trabalho teórico na ciência (recordemo-nos do valor dessa palavra neste território, bem distinto do do seu uso corrente, diário, popular) e a subsequente busca pela praticabilidade e verificação experimental. Precisamente o que se coloca em matéria palpável e visível não apenas nas fotografias desenvolvidas pela missão de Eddington como pela banda desenhada que acabamos de ler.


A outra intervenção é uma súbita possível referência intertextual, que poderá ser, quem sabe, involuntária da parte da autora. O clímax do livro é o eclipse em si. Ora este surge numa sequência de quatro páginas, dois spreads. O segundo spread mostra na primeira página uma grelha de 2 x 4 vinhetas, todas elas mostrando a progressão do eclipse, com o disco da lua a ocupar o do sol; a página ímpar ao lado é ocupada por uma splash image, no momento central do fenómeno.


O spread imediatamente anterior é introduzido por uma das legendas verdes, laconicamente declarando “29 de Maio, 1919”. A primeira página tem uma grelha de 2 x 2 vinhetas, mostrando, talvez, os movimentos súbitos e nervosos de uma só aranha; a segunda página tem duas vinhetas idênticas sobrepostas, a superior mostrando talvez uma área atravessada por uma teia (não-representada nesta figuração de grão/resolução grosseira) e várias aranhas, a inferior revelando o desimpedido céu nocturno, coberto pelas estrelas.

A associação da observação estelar e as aranhas não poderia ser mais clássica, e é possível também que haja aqui um comentário sobre o assombro relativo entre as mais familiares e ainda assim estranhas formas de vida que nos rodeiam e os grandes mistérios ainda por apurar em escalas supra-humanas. O encontro entre Hergé e Lovecraft tem perfeitamente o seu papel num livro sobre uma conclusão feliz da observação da ciência.

Livro desafiador que estende as condições de produção e o modo como a banda desenhada dialoga com o mundo, bem para além do veículo de ficção de género ou de narrativas dominadas a que a maioria das suas prestações nos habituou, Einstein, Eddington e o Eclipse poderá vir a tornar-se um exemplo maior da verdadeira inter- e transdisciplinaridade.
Nota final: as autoras tiveram a gentileza de participar numa conversa, de mais de 45 minutos, transformada em videocast, a que podem aceder aqui.

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