Este
volume encerra um multifacetado e ambicioso projecto. A sua mera
descrição desencerrará alguns aspectos dessa natureza complexa.
Podemos começar por descrevê-lo como sendo um “livro-companheiro”
de uma exposição intitulada E3,
desdobrando o mesmo título. Esta exposição teve lugar no Museu
Nacional de História Natural e da Ciência, celebrando o 100º
aniversário de uma expedição astronómica científica, organizada
pelos britânicos em 1919. Por ocasião de um eclipse solar total,
dois navios partiram em direcção a Sobral, no Ceará, Brasil, e à
Ilha do Príncipe, esta segunda sob o comando científico do
astrónomo Arthur Eddington, então académico já bastante
conceituado pelo seu labor intelectual e em prol da ciência
contemporânea. O objectivo era claro: confirmar algumas das
previsões centrais da Teoria da Relatividade Geral de Albert
Einstein, propostas as quais haviam sido apresentadas meros anos
antes. (Mais)
O
livro apresenta-se em duas partes materialmente distintas. Em
primeiro lugar, um belíssimo e erudito texto pela Professora Ana
Simões, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa,
comissária daquela exposição acima descrita. Este breve ensaio,
perfeitamente acessível ao grande público, encaixa-se como uma luva
no seu trabalho enquanto historiadora da ciência. Há uma parte
descritiva, como é expectável, que através de todos os pormenores
logísticos, técnicos, científicos, e políticos – recordemo-nos
que a preparação foi feita durante todos os conflitos, bélicos,
políticos e económicos, da 1ª Guerra Mundial, e a viagem em si no
seu rescaldo, portanto a coordenação internacional e, mais, entre
antigos lados opostos do conflito, não foi um processo suave – nos
devolve o que essa expedição significou em termos civilizacionais.
Uma das dimensões não se somenos importância está o papel de
cooperação com o Portugal colonialista da época, já que não
apenas a expedição pararia na ilha do Príncipe, território de
exploração de cacau, como houve passagem por Lisboa, e os seus
poderes científicos locais procurariam afirmar “o valor da
astronomia e das instituições astronómicas portuguesas” ao mesmo
tempo “reforça[ndo] os laços firmados ao longo do século XIX
entre ciência, poder e impérios coloniais” (pg. 22).
A
outra parte é uma banda desenhada pelo punho de Ana Matilde Sousa,
conhecida no círculo da banda desenhada portuguesa como Hetamoé,
mas assumindo o seu nome civil encarando a sua “assinatura gráfica”
e autoria de um modo bem distinto daquele pseudónimo. O que temos
aqui em mãos é, aparentemente, uma quase mera “adaptação” das
cartas, telegramas, comunicações de Eddington ao longo da sua
viagem para vários interlocutores (colegas de profissão, a mãe, a
irmã), com as imagens a devolverem os espaços e instituições
percorridos, alguns dos protagonistas das acções, a natureza que
observa e as impressões que tem, e até mesmo as observações
científicas da expedição. O “sumo”, todavia, está em
comentários paralelos à missão científica, dando-se mais
importância a partidas de xadrez, ao número de bananas ingeridas ou
ao aspecto físico de uma pessoa encontrada algures... Fulcral é
compreender que a autora não molda de forma alguma uma abordagem
pedagógica, e muito menos didáctica. Há antes uma exploração por
uma forte materialidade experimental e poética, de um constante
aproximar e afastar entre a coordenação texto-imagem, obrigando o
leitor a vários tipos de inferências e interpretações.
A
expedição procurou aproveitar as melhores condições então
possíveis para observar e tirar fotografias (com equipamento
específico – não só telescópios e chapas fotográficas, mas
“lentes objectivas astrográficas”, “celóstatos de 16
polegadas”, etc.) do eclipse de 29 de Maio de 1919,
subsequentemente levando a exactas anotações astronómicas que
permitiriam medir o curvamento da luz das estrelas, distorção
conhecida por “lente gravitacional” e que fazia parte das
previsões estruturais da Teoria da Relatividade Geral de Albert
Einstein. Se se tratasse de uma intriga clássica, porventura um
filme hollywoodesco, teríamos os cientistas a discutir com os que
estariam contra por princípios políticos ou outros, algumas
dificuldades na viagem, mas sempre na premissa de que haveria um
evento climáctico à frente, verificado no eclipse, que se dá. Mas
depois vem o terceiro acto, que é a revelação das imagens, as
quais trarão as provas ou a queda da teoria. O livro, quer do lado
do ensaio quer do lado da banda desenhada, abandona totalmente esses
mecanismos aristotélicos, dramáticos, para escavar antes questões
da materialidade política da comunicação.
Naturalmente,
o texto em prosa de Ana Simões é mais “sóbrio”, no sentido em
que discorre sobre todos os elementos da expedição, seus
antecedentes e consequências. Sobretudo está a necessidade de
devolver um momento em que o nome de Einstein não ocupava de forma
alguma o papel de destaque imenso, prometeico, que tem hoje, mas
antes a de um teórico ainda pouco conhecido fora dos círculos
restritos das disciplinas da física, astronomia, e em prol de cujas
teorias não apenas a expedição de Eddington se tornaria um factor
de extrema importância, como o próprio cientista inglês lhe seria
um dos mais importantes primeiros difusores em língua inglesa (e,
daí, para o mundo).
A
banda desenhada de Ana Matilde Sousa opta por vinhetas cujas imagens
se apresentam sempre com um qualquer grau de distorção imagético
(partindo do pressuposto, talvez problemático e redutor, de um
“original” fotográfico cristalino), desde a sobre-exposição, a
solarização, e os registos cromáticos desencontrados, mas há na
própria figuração escolhas radicalmente distintas da “clareza
narrativa”: figuras em silhueta, grandes planos de objectos ou
rostos, composições quase abstractas. Num primeiro momento,
parecer-nos-á que há como que uma espécie de mimese de certas
tecnologias de captura, como o daguerreótipo (já obsoleto na data
histórica que se representa), mas à medida que nos aproximamos do
eclipse em si, poderemos acreditar ser antes uma aproximação à
tecnologia que serviria para prender a luz das estrelas e o anel da
luz solar, que depois serviria de termo comparativo à descoberta.
Seja como for, há um claro jogo manipulador da ideia de arquivo
prévio sobre o qual o acto artístico elabora apropriações,
transformações e inquirições em direcção à construção de
sentido desejada.
Contudo,
a autora não abdica totalmente de uma forma narrativa emotivamente
engajada, já que o momento do eclipse em si é distinto dos demais,
passado numa espécie de silêncio (um spread
com total ausência da matéria verbal até ali exposta sob a forma
de legendas). Mas não é tudo. A narrativa central – a voz de
Eddington através da sua correspondência – é mostrada em
legendas amarelas (todo o livro é bilingue, em português e inglês).
Mas existem como que “intervenções” autorais/editoriais,
apresentadas em legendas a verde: legendas indicando os nomes e datas
dos intervenientes, a nomenclatura de Lineu identificando espécies
de pássaros, notas mostrando e explicitando objectos, locais,
equipamentos que tornam a missão mais clara. (Há também uma
intervenção a rosa, mas não conseguimos identificar o seu grau ou
natureza de diferença). Duas intervenções se destacam em
particular: duas surgem no terço final da “aventura”, mostrando
a silhueta de costas de Einstein, com a segunda aparição explicando
que está à “espera”, como se se tratasse de uma mistura de
MacGuffin hitchcockiano e inacção beckettiana. De certa forma,
poderá tratar-se de um apontamento irónico, mas poderá igualmente
ser interpretado como o diferencial necessário entre o trabalho
teórico na ciência (recordemo-nos do valor dessa palavra neste
território, bem distinto do do seu uso corrente, diário, popular) e
a subsequente busca pela praticabilidade e verificação
experimental. Precisamente o que se coloca em matéria palpável e
visível não apenas nas fotografias desenvolvidas pela missão de
Eddington como pela banda desenhada que acabamos de ler.
A
outra intervenção é uma súbita possível referência
intertextual, que poderá ser, quem sabe, involuntária da parte da
autora. O clímax do livro é o eclipse em si. Ora este surge numa
sequência de quatro páginas, dois spreads.
O segundo spread
mostra na primeira página uma grelha de 2 x 4 vinhetas, todas elas
mostrando a progressão do eclipse, com o disco da lua a ocupar o do
sol; a página ímpar ao lado é ocupada por uma splash
image,
no momento central do fenómeno.
O
spread
imediatamente anterior é introduzido por uma das legendas verdes,
laconicamente declarando “29 de Maio, 1919”. A primeira página
tem uma grelha de 2 x 2 vinhetas, mostrando, talvez, os movimentos
súbitos e nervosos de uma só aranha; a segunda página tem duas
vinhetas idênticas sobrepostas, a superior mostrando talvez uma área
atravessada por uma teia (não-representada nesta figuração de
grão/resolução grosseira) e várias aranhas, a inferior revelando
o desimpedido céu nocturno, coberto pelas estrelas.
A
associação da observação estelar e as aranhas não poderia ser
mais clássica, e é possível também que haja aqui um comentário
sobre o assombro relativo entre as mais familiares e ainda assim
estranhas formas de vida que nos rodeiam e os grandes mistérios
ainda por apurar em escalas supra-humanas. O encontro entre Hergé e
Lovecraft tem perfeitamente o seu papel num livro sobre uma conclusão
feliz da observação da ciência.
Livro
desafiador que estende as condições de produção e o modo como a
banda desenhada dialoga com o mundo, bem para além do veículo de
ficção de género ou de narrativas dominadas a que a maioria das
suas prestações nos habituou, Einstein,
Eddington e o Eclipse poderá
vir a tornar-se um exemplo maior da verdadeira inter- e
transdisciplinaridade.
Nota
final: as autoras tiveram a gentileza de participar numa conversa, de mais de 45 minutos, transformada em videocast, a que podem aceder aqui.
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