20 de julho de 2020

A época das rosas. Chloé Wary (Planeta Tangerina)


São estes gestos editoriais que garantem ainda alguma felicidade de uma verdadeira contribuição para a diversidade de vozes e acessos à banda desenhada em Portugal. Já o repetimos em várias ocasiões, e aqui mesmo neste espaço, que atravessamos um momento relativamente estável e interessante de editoras especializadas que vão alargando o leque de vozes. Mas a meu ver, seria ainda mais feliz se editoras generalistas abrissem um pequeno espaço à banda desenhada que fosse ao encontro dos assuntos, abordagens e tratamentos estilísticos que lhes interessam nos seus catálogos – por hipótese, o romance contemporâneo, a ficção historiográfica, a reportagem política, a poesia, a literatura para jovens ou para a infância, o diário de viagem, etc. Não tem de ser necessariamente uma colecção especial (se bem que a coerência ajudaria à consolidação de um corpus, o que a Bertrand/Contraponto não conseguiu fazer, apenas a título de exemplo), tem de ser coerente com um programa. Independentemente das questões económicas, cruciais e basilares, há também o esforço e o conhecimento e a sensibilidade. Ora, a Planeta Tangerina, enquanto plataforma quase de auto-edição, ou cooperativa, já havia com Finalmente, o Verão, das primas Tamaki (recentemente re-publicado) feito uma aposta num projecto de banda desenhada internacional que fazia falta na oferta em língua portuguesa. Agora, com dois livros, um de autores portugueses e esta tradução de uma autora francesa, arranja novamente um espaço fulcral. (Mais) 
Poderei estar enganado, mas Rosigny sur Seine, o local onde se passa a acção desta novela, não sendo um lugar real, é um reflexo o mais real possível dos variadíssimos banlieus franceses, sobretudo de Paris. Todo um “mundo” se coalesce nesses espaços dadas as tensões do que aparentemente se entenderão como culturas diferentes, experiências económicas, sociais, étnicas, religiosas, e, consequentemente, políticas. Terreno de clivagens, por mais cliché a que isso soe. E essas negociações têm levado a todo um género de textos, sobretudo cinematográficos, podendo citar, sem grande fineza analítica, desde o agora clássico La Haine, de Kassovitz, aos mais recentes Les Misérables, de Ladj Ly, e Banlieusards, de Key James e Leïla Sy, ou até mesmo aos videoclips dos The Blaze em torno do álbum Territory, que deslocam, em parte, a atenção para a nostalgia da diáspora argelina e uma forte atenção para com a amizade masculina.

O que há em comum nesses textos fílmicos apontados é precisamente uma certa concentração na ideia do conflito entre forças antagónicas, externas, e perspectivas masculinas. Assim, a acção é o centro nevrálgico da construção da narrativa. E o que sucede se se deslocarem as perspectivas no eixo dos sexos? A banda desenhada também trouxe à baila as tensões domésticas que se vivem nesses espaços de negociação dos subúrbios franceses, e que se passam igualmente noutros locais, europeus, portugueses, de outros pontos do mundo, cada qual com as suas especificidades culturais. Autores como Farid Boudjellal, Kamel Khélif, Yvan Alagbé, Riad Sattouf são alguns dos criadores dessas histórias. Chloé Wary inscreve-se na linhas dessas ficções ancoradas no realismo, talvez mais próxima de Boudjellal pela sua atenção “novelesca” a histórias no rés-da-vida, do banal quotidiano, na atenção maximal para o microscópio das vidas vividas. Há poesia, como em Khélif, há humor, como em Sattouf, há uma dimensão crítica sócio-política, como em Alagbé, mas há sobretudo uma franqueza desarmante.

Realmente, há todo um retrato social criado pela autora em A Época das Rosas. A representação étnica e os próprios nomes das personagens espelha a diversidade de origens da população dos grandes centros urbanos franceses. Não apenas “gauleses”, mas pessoas de origens magrebinas, africanas, italianas, árabes, etc. Esses traços identitários servem, todavia, simplesmente para se diluírem nos elos da amizade, cooperação e alianças da adolescência que os une. As escolhas de como passam os tempos livres – a fumar narguilé sob uma passagem de nível, uma festa com música a bombar em casa de um deles, a decoração dos quartos, as roupas escolhidas, e, no original francês mas que a tradução portuguesa consegue manter um aroma, o próprio calão – também cria uma massa de referências que reforça essa ideia de retrato. E até um breve passeio com a cadela, olhando para a varanda do apartamento onde a protagonista costumava viver, quando o pai ainda andava por ali,é bem mais revelador do que qualquer outro tratamento. A autora quer, contudo, tecer outros caminhos e sentidos emocionais a partir desses elementos.

O livro centra-se em Barbara, uma protagonista adolescente que é ponta de lança numa pequena equipa de futebol desse subúrbio representativo. Depois, os problemas são, a um só tempo, encostados uns aos outros, criando um fragilíssimo castelo de cartas, como imbricados uns nos outros, em que qualquer movimento em falso num território tenha repercussões no outro. A importância que na sua vida toma o seu papel no seio da equipa, e os problemas na administração do clube, a relação com uma mãe amargurada e algo inflexível com a sua falta de compreensão do mundo da filha (uma prerrogativa dos pais?), um crescente caso amoroso com o jovem Bilal, que é também “rival” na equipa masculina do seu clube, as picardias com o treinador, já para não falar de como a vida de todos os dias cansa, com as notas, os ténis novos, as festas, isto e aquilo.

Barbara é apenas o eixo de uma narrativa maior. Numa primeira instância, trata-se de um óptimo romance de desporto, utilizando muitos dos elementos recorrentes desse género, como a centralidade de um desafio importante, do modo como um jogo tem como resultado algo mais do que os golos no marcador, e como a dinâmica de equipa é uma lição humana que extravasa o companheirismo desportivo. Depois a questão social já abordada. O mais importante, porém, é aquilo que é sublinhado pela sua integração nesta colecção da Planeta Tangerina, e que a torna companheira de Finalmente, o Verão, e o mais recente Desvio, de Ana Pessoa e Bernardo Carvalho, de que falaremos. É um guia descomplexado para a vida do adolescente.

A Época das Rosas é um diário dramático, mas não melodramático. É uma narrativa cheia de desafios claros, mas não é um épico. É um conjunto de questões sociais, mas não é um ensaio programático e muito menos panfletário. E, mais importante, reduzi-lo a “temas femininos” só faria sentido se excluíssemos o “feminino” da constituição de toda a nossa sociedade. Independentemente do que disse acima sobre perspectivas, masculinas e femininas ou outras, pois elas existem, conformadas que são por expectativas, oportunidades, obstáculos, modos de nutrir caminhos, e que são tema recorrente no livro, nada disso diminui a capacidade que um texto, quanto eficaz, forte e belo como este, tem de chegar ao âmago de todos os que forem capazes de ler. E, seja como for, é mais importante a vivência adolescente – essa tempestade entre a confusão da infância e a dúvida da idade adulta – que Wary explora do que qualquer outra categorização possível.

É incrível a capacidade que os adolescentes têm em lidar com tudo o que se passa nas suas vidas. Em vez de pensar nesta fase da vida como uma espécie de negociação difícil em “abandonar” a infância e “compreender” a idade adulta, veja-se como um momento tenso de conseguir fazer malabarismo com demasiadas questões, entre certezas e dúvidas, planos e desilusões, vontades e proibições, cuidados e desalinhos. Barbara tem de enfrentar várias injustiças, todas elas embrulhadas umas nas outras, por vezes com denominadores comuns, por outras vezes misturando prioridades e até, como sucede tantas vezes, magoando quem a procura ajudar.

Um livro franco, directo, genuíno na sua recepção, tem a verve da adolescência, o seu melhor domínio. A própria técnica do desenho e colorização, que recorre a canetas de feltro e revela os efeitos das zonas de sobreposição, e que não correspondem a um efeito de representação de dobras de tecidos, diferenças de iluminação ou tez da pele, tem algo de “adolescente”, “amador”, “imediato” que reforça toda a cadência da narrativa. Se a composição é classicamente retórica, e usualmente ortogonal, o uso de ângulos mais oblíquos nas divisões das vinhetas é empregue ora para cenas mais dinâmicas – as cenas das partidas – ora para momentos de maior tensão dramática e emocional. Veja-se a página em que Barbara a e mãe entram em casa, subindo pelas escadas (o elevador não funciona, outra vez). Uma composição simples, criando duas vinhetas com uma forma associada à estrutura do próprio edifício, mas em que a separação criada entre as duas personagens é muito mais que meramente espacial.

Tudo isso continua no campo da clareza diegética. Tudo isso para mostrar várias derrotas. E, depois, como as vitórias que se atingem são muito mais duradouras que as do desporto.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume.

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