O
projecto autobiográfico de Riad Sattouf tem sido construído de um
modo pouco consistente, no sentido em não ter arvorado nenhuma linha
programática que se fosse construindo de forma nítida. Contudo,
isso apenas reflecte também a forma viva como a vida é levada. Não
há regra nenhuma para se construir a autobiografia, podendo ser
perseguida de forma poética e fragmentária à Marco Mendes e
Baudoin, desdobrando-se as várias facetas à la Francisco Sousa
Lobo, procurando caminhos auto-ficcionais à la Justin Green, ou
então indo ao sabor dos dias. Sattouf tem alguns interesses
secundários que têm informado este seu projecto, nomeadamente as
comunidades árabes e franco-árabes na França contemporânea (ele
próprio é filho de mãe francesa e de pai sírio) e ainda a
experiência da adolescência com todas as suas tensões com o mundo.
O corolário destes dois interesses, fora do projecto autobiográfico,
já havia sido aqui abordado, com La vie secréte des jeunes/Les beaux gosses. (Mais)
Após Ma circoncision, Sattouf regressa à sua vida na “esfera”
do “mundo árabe”, ou “Médio-Oriente”, desta feita à mais
tenra idade. Este primeiro volume (o segundo, entretanto, foi lançado
há pouco em França, de um total de três projectados) foca a
mudança da família em 1979 para Tripoli, na Líbia de Khadafi,
quando Riad tinha cerca de um ano de idade, depois o regresso a
França, numa passagem pela austera Bretanha à beira-mar da avó
materna, e depois a ida para a Síria do Presidente Hafez al-Assad,
onde viveria grande parte da infância e a primeira adolescência (é
lá que o “apanharemos” em Ma circoncision).
Não
é de surpreender que mencionemos aqueles dois países do Levante
associando-os aos nomes dos seus governantes na época, e não o
fazermos em relação a França. É claro que podemos ser acusados de
eurocentrismo, desequilíbrio político ou mesmo pura ignorância ou
imbecilidade, e não nos escudaremos de nenhum desses erros, mas
estamos em crer que a subsunção dos destinos de um país sob os
efeitos do poder absolutamente centralizado daqueles líderes
político-militares teve bem maior efeito nesses países do que na
França democrática das décadas de 1970 e 1980. Basta pensar nas
fragmentações, desintegrações e desacordos políticos – para
empregar algumas das palavras-chave utilizadas por Nuno Rogeiro no
seu recente O mistério das bandeiras negras - , entre
milícias, forças distintas, interesses locais mas também
internacionais, de que ambos os países, e os da região, têm sido
alvo após o afastamento desses e outros líderes.
Além
disso, o propósito de O árabe do futuro tem menos a ver com
a concentração na vida desta criança em particular, ou até do
autor, por via de uma fama que informaria o “interesse”, do que
na transformação da vida do protagonista numa espécie de filtro
que nos permite a ver – ao “nós” ocidental, não finjamos que
essa dicotomia não existe ou não tem aqui uma função fulcral –
uma realidade outra as mais das vezes afastada – a do
“profundo” e “real” mundo árabe. De resto, um propósito
idêntico àquele que alçou a um sucesso comercial e de crítica uma
obra como Persepolis, em detrimento de outras obras irmanáveis
e de maior musculatura estética.
O
próprio título da obra deve-se ao desejo do pai em que Riad seja
educado como um árabe, de visão alargada em termos de educação,
preparado para uma revolução cultural capaz de modernizar o Islão.
Por um lado, isto revela as considerações do pai de Riad, bastas
vezes exposta, de que considera os árabes pouco educados em relação
às liberdades do Ocidente, e, por outro, a de desejar inscrever
ainda assim o seu filho numa linha tradicional que ele próprio havia
colocado de lado: a religião, a língua, a partilha de
responsabilidades em casa, etc. Isto é, até à medida em que o pai
de Riad é um muçulmano não-praticante, até mesmo nas regras
dietéticas, a sua nova passagem pela Libia e pela Síria, o seu
confronto com novos ideais de um Islão moderno (todas as ideias
informadas pelas relações complexas com as ideologias ocidentais
capitalista e/ou comunista, o acesso a mercados financeiros
internacionais, a novos regrários societais, à emergência de novo
modos de comunicação e convivência), e sobretudo o seu novo papel
de pai, leva-o a reconsiderar a educação dos miúdos. Pejada de
contradições, limitações, informada aqui e ali por ignorâncias e
convencionalismos, e encontrando na mulher francesa uma pequena e
infrutífera “barreira” – voltaremos a este ponto -, as
atitudes desbragadas do pai são objecto de um tratamento da parte do
autor que se poderá considerar, se se desejar humana (a
contradição é condição), mas sobretudo caricatural.
Se
a arte de Sattouf sempre foi francamente estilizada, parece ter
aumentado o grau dessa valência neste livro. Na verdade, as figuras
plásticas e flexíveis de O árabe do futuro recordam o
trabalho prístino de um Matt Groening (um dos primos de Riad é a
cara chapada de Mr. Burns), por exemplo. Todavia, não pode ser posta
de lado a possibilidade de existirem traços de influência provindo
dos seus amigos e colegas de L’Association, sobretudo David B. e,
através deste, de Marjane Satrapi, acrescendo a esta última, como
vimos, o impacto que o seu Persepolis teve. É impossível não
encontrar em O árabe do futuro traços, heranças ou pelo
menos um espaço aberto pela obra da autora iraniana que a do autor
sírio-francês persegue.
Não
existindo mutações plásticas nas suas figuras, ainda assim o autor
emprega um grande leque de estratégias simbólicas típicas da banda
desenhada clássica de humor, infanto-juvenil ou cartoonesca:
multiplicação dos membros para dar conta de acções rápidas,
movimentos irrealistas como quedas e saltos, enfeites dos balões
para denotar tons específicos, e toda a espécie de emanata.
A composição é regular e semi-regular, interessada que está em
construir um relato relativamente seco, linear e “objectivo”,
corroborado pela linguagem das legendas, que se apresenta como
“somente os factos”, e alinhando-os uns atrás dos outros. Se a
cor é empregue de uma forma especial, e assinala aqui e ali uma
representação de significados específicos (as cores de uma
bandeira, um pesadelo terrível, o sublinhado de um som, o acentuar
de um objecto), elas são escolhidas para assinalar um espaço
determinado (azul para a França, amarelo para a Líbia, rosa para a
Síria) e pouco mais.
Porém,
a dimensão caricatural de O árabe do futuro atravessa
escolhos extremamente problemáticos, críticos e difíceis de
destrinçar de forma cabal. A questão que se coloca é a seguinte:
como conseguir atravessar esta paisagem social e humanamente
desolada, sem sentir um arrepio de uma construção cumprida através
de estereótipos negativos? Mesmo que se queira compreender este
primeiro volume como um retrato de um “pesadelo” atravessado, não
existem quaisquer características redentoras, quase sem excepção,
das várias personagens que habitam a paisagem dos países visitados.
Os
sírios e líbios, e assim por metonímia os “árabes”,
surgem-nos como pessoas corruptas, irascíveis, racistas, invejosas,
desinteligentes, imundas, senão mesmo imbecis e infra-humanas. Este
seria um livro que mereceria uma atenção, como o tentou Ana Bravo em relação à obra de Hergé, em relação à economia de
representações na narrativa. Se existe um tratamento gráfico que
convida à leitura de todas as personagens como caricaturas de
categorias – como é o caso de The Simpsons, ou de modos
distinto, em Tintim -, há umas que são mais caricaturais que
outras: mesmo que as crianças da escola francesa sejam também
“estranhas” (tratar-se-á de uma escola com crianças com
dificuldades de aprendizagem ou mesmo com algum grau de debilidade
mental?) – mas sempre em relação à criança-modelo, Riad – não
são as crianças líbias e sírias, e os vizinhos iemenita e
indiana, tratados como criaturas medonhas e quase desprovidas de
características simpáticas, humanas?
Mesmo
quando existem alguns primos que são ligeiramente mais simpáticos,
subsumem-se a cifras totalmente embevecidas com a “superioridade”
dos brinquedos de Riad, e se têm brinquedos, são os péssimos que
obtêm no seu país, e se ensinam algo, são apenas os insultos
possíveis no árabe local. Se bem que o autor não pretenda
mostrar-se a si mesmo como superior intrinsecamente, o facto de ele
ter belos caracóis compridos e louros na sua infância incutir-lhe-á
um ar angelical, citado, notado e elogiado por todas as personagens
em seu redor, e sendo sinal de uma diferença “positiva” face aos
demais, com a excepção dos outros miúdos, que transformam essa
“diferença” em motivo de ódio e escárnio. Logo, voltando a
transformar esse sinal num aspecto positivo, uma espécie de sinal de
martírio. De facto, os auto-encómios em torno da sua esperteza,
celeridade de aprendizagem, talento inato para o desenho, se por um
lado aumentam o grau de “positividade”, são também garante da
“inveja-tornada-em-ódio” pelos demais, mecanismo de resto básico
à natureza humana em bastas sociedades.
Não
estaremos a negar essa “realidade”, e muito menos a querer
sonegar a possibilidade da experiência e testemunho genuínos da
parte do autor. Pura e simplesmente salientamos ser algo
surpreendente que um livro criado em retrospectiva, e que mantém
essa relação com o tempo protelado intacta ao longo a narrativa,
quer pela organização actancial, temporal e as divisões
estruturais do relato, não procure matizar essa experiência de uma
maneira qualquer. Repare-se como em Ma circoncision o autor
utilizava uma mesma abordagem “crua”, “bruta”, mas criando ao
mesmo tempo um filtro temporal que nos permitia a compreender que o
seu propósito era devolver a sua experiência sofrida. Neste novo
título, apenas uma contextualização do autor como um “integrado”
nessa mesma cultura (ainda que de modo superficial?, nominal?)
poderia evitar uma leitura quase propagandística, anti-árabe.
O
facto do seu olhar não ser “de fora” – como na literatura
gráfica de viagens, casos de Guy Deslile, por exemplo, ou como nos
casos do jornalismo em banda desenhada –, mesmo que seja apenas
parcialmente “de dentro”, pois informado pelo tempo posterior de
ocidentalização, e diálogo com a cultura ocidental, mormente o
espaço de expressão da banda desenhada em que se integra, será
suficiente para escudar este projecto da bílis que o parece
atravessar? Não estamos perante o contraste entre um regime
opressivo e a imposição de uma sociedade de ignorância, por um
lado, e a resistência da vontade e benignidade humana, por outra,
mas na mais profunda imbricação da estupidez humana, nos mais
pequenos actos, no próprio tecido da sociedade em que emerge.
“Vejam, os árabes são assim”, é a lição final.
E
poderiam surgir momentos de “correcção” ou desvio mais claros.
Como por exemplo, alertando precisamente para a limitação dessa
focalização infantil, de quando em vez “visível” sempre que o
pequeno Riad se põe a imaginar algo que escuta, traduzindo
visualmente e num absurdo uma expressão ou uma experiência de
outrem (a casa da bisavó à beira-mar, Georges Brassens
compartilhando o seu rosto com o de Deus – curiosamente um
mecanismo gráfico que é totalmente devedor a Satrapi). Ou
procurando com a distância e o balanço crítico que a maturidade
permite uma nota de tempero desse passado. A desculpa de que o livro
é lavrado através da “inocência infantil”, a “candura” ou
a “coragem” do seu autor, parecem-nos formas fáceis de evitar
enfrentar os seus mecanismos de representação. Ou enveredar pela
defesa de se tratar de humor – ou caricatura – é querer
transformar essa palavra num mote mágico que nos previne de pensar e
ler analiticamente.
O
tratamento da personagem maternal também está pejado de problemas,
e em parte é um dos outros aspectos que mina a dimensão humanizante
algo menoscabada no livro. Em termos de economia narrativa, a mãe
aparece sempre como uma personagem de agência secundária em relação
às decisões do pai. Há muito mais cenas de diálogo (ou monólogo)
com o pai do que com a mãe, apesar de claramente Riad passar mais
tempo com ela. O problema, todavia, não tem a ver somente com essa
distribuição “matemática”, já que seria uma opção como
outra qualquer, buscando efeitos de ritmo e naturezas particulares e,
afinal, pelo programa “político” desta narrativa ser ditado pelo
pai: é ele quem toma as decisões profissionais, que implicam
mudarem de país, é ele quem os conduz, é ele o ganha-pão, etc.
Tem antes a ver com o agenciamento da personagem, que é baixo. Não
escavamos muito a relação e amor daquele casal, eles são somente
funções em torno do protagonista, se bem que o pai, como acabámos
de dizer, tenha uma proeminência maior. Se existe também um maior
acesso aos diálogos com certas personagens devido ao conhecimento,
nesta idade, pela parte de Riad, do francês em detrimento ao árabe,
não deixam todas as personagens “não-francesas” de surgir sob o
filtro dessa “infra-comunicação”, aumentando o grau de
representação aventado acima. Então, qual a razão de não
testemunharmos precisamente uma maior comunicação natural com a
mãe?
Veremos
se o segundo volume corrige essa ideia, ou se se manterá num mesmo
rumo problemático. Seja como for, é uma excelente notícia para a
oferta portuguesa de banda desenhada o surgimento de um novo agente
com a Teorema fazendo uma aposta pouco óbvia, e por isso, tão
salutar e inteligente.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
4 comentários:
Obrigado por esta crítica, Pedro! Salvo raras excepções, nascidas da influência benéfica de Saul Steinberg (mas também ele tem um lado negativo: David Mazzucchelli), e refiro-me muito concretamente a Chago Armada, a caricatura é a doença que impede a arte da banda desenhada de crescer. Segundo o que leio no teu texto (não tenho a mínima intenção de ler este livro e muito menos de ler os que se lhe seguem) trata-se aqui de um perfeito acordo entre forma e conteúdo: caricaturar não tem por que significar estereotipar, mas na mãos de um artista menor, como é o caso, é precisamente isso que significa. E não quero terminar sem referir o caso lamentável de Guy Delisle (o qual também mencionas de passagem). O que é triste no meio disto tudo (como sugeres e eu digo claramente) é que a obra que dá origem a estas menoridades, o magistral L'Ascention du Haut Mal de David B. continue na sombra. Os editores de banda desenhada em Portugal já não existem. Razão mais do que suficiente para que, nas raras vezes em que dão sinal de vida, mostrarem que sabem o que estão a fazer. Infelizmente mais uma vez se demonstra que não é, de todo, o caso. Ou então, e inclino-me mais para esta segunda hipótese, sabem-no bem de mais...
Olá, Domingos.
Tive alguma dificuldade em enfrentar este livro, pois ele contém sempre uma "defesa" - que eu penso ser fraca - que é o de "ser de dentro". Só que a carga negativa, quase anti-humana, é demasiado visível (e é curioso, ou não, como sempre, notar como são poucas as nozes que acentuam essa dimensão). Ainda para mais que, depois de ter visto o último filme, maravilhoso, simples, efectivo, do Jafar Panahi, em exibição, "Táxi", há sempre esta confirmação de que "lá", no país dos "Outros", há vida humana. E mesmo que tenha boa vontade em ler textos da cultura popular, como no caso das fantasias fascistas do Edmondson que debatemos há umas semanas, ao vasculhar este livro, pergunto-me, "onde está?".
De dentro, como um cavalo de Tróia.
Bem visto. Como pessoas conservadoras que serão membros de uma determinada comunidade, e arvoram precisamente essa pertença para depois avançarem as suas perspectivas conservadoras.
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