Ao contrário de uma ideia
sobretudo alimentada pela edição mainstream, ou pelo menos
convencional, a circulação de autores em palcos internacionais não
tem necessariamente de passar pela edição de um livro inteiro numa
língua estrangeira. É óbvio que esse tipo de circulação leva
imediatamente a uma maior exposição e recepção, resultado natural
do volume de impressão, os pontos de venda e a atenção mais
categorizada da esmagadora maioria dos canais de divulgação, também
eles necessariamente balizados por princípios de normalização.
Todavia, se a atenção abarcar outro tipo de objectos, descobriremos
formas alternativas de diálogo e de presença em palcos
internacionais. (Mais)
As antologias publicadas
por plataformas internacionais têm sido uma constante desde a
emergência desta “cena” nos anos 1990 um pouco por toda a
Europa. Para além daquelas forças de países mais “centrais”,
como L'Association, a Amok, a Frigidaire, etc., também os países
mais periféricos, com a Stripburek, a Kuti Kuti, a Ś!,
e de onde Portugal, graças sobretudo à Chili Com Carne, não se
alheia, constroem essa linha de produção e diálogo no campo da
banda desenhada. As Ediciones Valientes têm na sua Kovra uma
espécie de montra de nomes que compõem esse “campo
internacional”, e que não se subsume somente a criadores europeus,
uma vez que temos aqui peças de autores brasileiros como Pedro Franz
e Diego Gerlach, e argentinos como Berliac. Recentemente, Amanda Baeza tem encontrado vazão internacional do seu trabalho, como a
luxuosa antologia em serigrafia Lagon Revue (de
que temos a esperança de poder vir a falar), a plataforma
italiana Studio Pilar (talvez uma nova nota amanhã), projectos da
editora Kus, e ainda outras promessas que serão garante de uma maior
visibilidade ainda. Desta feita, encontramos na Kovra, de novo, a
peça que havia sido criada para um número da The Lisbon StudioMag, cujo argumento foi escrito por nós.
Na companhia de Baeza
encontraremos outros autores que pertencem a esta tendência
contemporânea que tem merecido o nome de art comics, de que
já falámos anteriormente. Figuras ultra-estilizadas e pequenas
histórias relativamente experimentais mas que mantém uma qualquer
ideia fantasmática de narrativa, como são os casos do francês Léo
Quievreux, ou dos espanhóis Carlos T González Boy e Santi Z.
Encontraremos aqui também nomes mais familiares, ou que já
visitámos anteriormente, como os já citados Pedro Franz, Diego Gerlach e Berliac, mas também Igor Haufbauer e Ulli Lust [v. última imagem]. O ou os
artistas que assinam como No Tan Parecidos participam com uma
história curta, poética [segunda prancha, em baixo], que se instala nesse outro campo partilhado
por Franz e Berliac, se bem que este último crie uma história que
parece servir de pastiche (mas sem sarcasmo, antes com justeza e
rigor) de alguma da gekigá clássica dos anos 1960 [v. imagem deste parágrafo].
Para além desses campos
mais ou menos expectáveis e familiares, e como é costume também
nestas antologias onde a cultura se herdou desde os tempos do punk, a
sua ética DIY e a iconoclastia, também encontraremos muitos
desenhos ou bandas desenhadas que se arriscam ainda no território do
escatológico, da ultra-violência, de toda aquela existência
melancólica ou mesmo apática dos jovens sub-urbanos
pós-ideológicos. É discutível se a eficiência desse tipo de
humor é real, ou se na verdade revela apenas uma espécie de
facilidade na criação de discursos cuja transgressão já está
normalizada, mas mesmo assim haverá decerto qualidades redentoras na
história mais alargada de Martín López Lam (Espanha), nas
paisagens rugosas de Stark Attila (Hungria) e na estranha fantasia de
Carles G.O.'D. (também Espanha). Todavia, nalguns dos outros casos
fica sempre a ideia da inconsequência da “destruição”, uma vez
que nada havia de início sequer construído, e há a sensação de
que o esforço de desmontagem teria encontrado outros caminhos mais
fortes. É possível, ainda assim, que seja apenas uma leitura
falhada da nossa parte, não encontrando as razões certas desses
gestos.
O objecto em si é
bastante curioso, com soluções simples mas elegantes que enriquecem
o projecto geral. Contém uma cinta que, desdobrada, se revela como
um poster, ainda contém um outro poster integrado, impresso de ambos
os lados, e com um caderninho com as traduções de algumas histórias
onde necessário – uma vez que, como tantas outras publicações
portuguesas, espanholas, finlandesas, italianas, alemãs, etc. -
providencia sempre o acesso em inglês, adicionalmente às línguas
“originais” (neste caso, o espanhol). Impresso a preto, a
complementação de papel rosa no início e no fim, a própria capa e
os outros suplementos a cores baças, do rosa a um verde acastanhado,
traz uma espécie de aura a um só tempo luminosa e lúgubre,
bastante apropriada às famílias gráficas no seu interior.
Nota final: agradecimentos
aos editores e a Amanda Baeza, pela oferta do volume.
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