O
acesso à banda desenhada que não naquelas línguas que mais
usualmente nos estão próximas (português, espanhol, cada vez menos
o francês, inglês) não pode ser desculpa para uma distracção
dessas mesmas produções. As dificuldades em acompanhar essas
tendências é tremenda, obviamente, e nem sequer a barreira da
língua, se ela existir, é a mais significativa. É mesmo o acesso,
seja este entendido de modo económico, físico ou de percepção. É
também uma fonte permanente de angústia não se poder ler tudo,
como qualquer bibliófilo saberá, mas procura-se corrigir, ou
contrabalançar, esse sentimento, na medida que se estende a mão a
algo que alargue o círculo dessa atenção. (Mais)
Ora
é precisamente olhando para os dois livros do autor belga flamengo
Wide Vercnocke, que é uma espécie de nova coqueluche daquela área
de criação, que se pode ensaiar esse gesto. Como já havíamos
debatido a propósito de Tim Enthoven, a Bries é uma editora de
primeira água na Bélgica, se bem que o facto de se concentrar na
produção de expressão flamenga encurta necessariamente o público
que atinge. Mas tendo em conta a configuração editorial daquela
casa, e o tipo de livros que produz, a presença de Vercnocke não é
surpreendente, uma vez que este é um autor que explora dimensões da
banda desenhada que têm menos a ver com os caminhos usualmente
expectáveis – narrativas, aventuras, géneros – do que
experimentações a nível expressivo.
Vercnocke
trabalha, como alguns críticos belgas o caracterizaram, num campo
que se poderia chamar de “poema gráfico”. Esta não seria uma
questão apenas superficial, pela apresentação da matéria verbal
numa certa disposição e concentração, mas por uma estratégia de
criação que o próprio autor apelida de “imagens associativas”.
Mijn Muze ligt in de zetel é aquele que mais explicitaria
essa estratégia. Traduzível como “A minha musa está deitada no
sofá”, é uma série de histórias ou sequências muito curtas,
cada uma das quais centrada num objecto banalíssimo do quotidiano
doméstico (provavelmente do seu autor, já que o protagonista
masculino, tal como ocorre em Wildvless, é fisicamente
parecido com ele, exceptuando os óculos).
Cada
uma dessas sequências é apresentada da seguinte forma: um pequeno
poema, apenas apresentado em texto, numa página par, ao lado da qual
se estende uma “página de rosto” ou uma imagem icónica, com
algum desse mesmo texto, ou todo, disposto ao longo da figura, numa
espécie de poema ilustrado, ou imagem “poemada”. Na página
seguinte, uma vinheta solta mostra o protagonista, sozinho ou
acompanhado, afirmando uma frase qualquer, que serve de comentário à
história em banda desenhada que se segue, sempre de três pranchas
cada, e que estende a ideia inicial. Como disse, cada história,
poema, ideia, centra-se em objectos: o sofá, a televisão, luvas de
borracha, as linhas dos músculos, a transformação litecantrópica
da namorada.
Esta
ideia de transformação não é de somenos, já que todas as
histórias operam sempre por esse princípio. A primeira história
inicia de imediato esse processo, uma vez que o protagonista, depois
de carregar o sofá para o interior da casa, o acaricia e abraça
como se fosse uma mulher, e chegamos mesmo a ver essa transformação.
Todavia, se nesse momento pensamos que se trata de uma projecção
fantasmática, um delírio criado pelo desejo, uma fantasia
masturbatória, as outras histórias vão aumentando o grau desse
delírio, mostrando o protagonista valsando com uma gárgula que
tomba de uma igreja, dando vida própria a uma excrescência da pele
que lhe nasce por entre as luvas de borracha de lavar a loiça, dando
existência autónoma às veias ou músculos, e, finalmente, sendo
absorvido pelo corpo feminino do sofá. Também estão presentes
histórias mais banais e domésticas, mas todas elas alimentam uma
ideia, possível interpretação, de que estamos perante traduções
visuais de breves sonhos ou episódios hipnagógicos tidos
precisamente no sofá. Aqueles breves momentos em que não
adormecemos profundamente, mas apenas ao de leve, escutando ao mesmo
tempo a televisão ou a companheira a aspirar em casa ou as outras
pessoas a falar…
Essa
estranha e leve dimensão onírica informa também Wildvlees
(“Carne selvagem”), se bem que aqui se trate de uma narrativa
mais alongada e convencional em termos estruturais. Dividido em
vários capítulos, de extensões diferenciadas, basicamente estamos
perante a história de um veado que, excitado pela sedução carnal
de uma humana, se transforma num homem. Depois da sua chegada à
cidade, envolve-se com a irmã dessa humana, criando a um só tempo
um estranho triângulo amoroso como um mecanismo de fuga e protecção
do caçador. Poderíamos dizer que Wildvlees cria uma metáfora
relativamente clara das pulsões de eros e thanatos,
afinal de contas, e se nos recordamos quer da forma como o autor fala
do seu trabalho (“associação”), e se entendermos um dos
trocadilhos centrais deste livro (entre “hart” e “hert”, isto
é, “coração” e “cervo”), talvez essa ideia não seja
totalmente disparatada, abrindo um possível quadro de leitura.
Vercnocke
tem uma abordagem ao desenho célere. Não se trata de um autor
clássico que lance uma estrutura a lápis e depois procure as
correcções, ou uma moldagem mais correcta, com artes-finais, mas
alguém cujos primeiros traços são a inscrição final. As suas
figuras são alongadas, esquálidas, e compostas de linhas angulares
e plásticas, e cheias de pormenorizações e texturizações
compostas igualmente por linhas desconjuntas. Os esquemas de cor são
muito simples, esbatidas, de identificação rápida, de aplicação
sumária e também obedecendo a esse princípio de textura por linhas
ou áreas diferentes. Se existem momentos de composição menos
aparentes – as tais formas icónicas e titulares de Mijn Muze,
ou algumas das sequências de mutações em ambos os livros, ou a
cena final, “mágica”, simétrica, da duplicação do homem-cervo
– a esmagadora das opções do autor são bastante convencionais,
uma vez que a sua pesquisa se encontra no plano da significação, e
na capacidade em despertar diferenciações pelas tensões
inesperadas entre texto e imagem, aquele aparentemente centrando-se
em banalidades do dia-a-dia, estas rasgando-se na direcção do
sonho.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta dos volumes, e a Gert
Meesters, pela boleia e contactos.
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