31 de agosto de 2015

Wildvlees/Mijn Muze ligt in de zetel. Wide Vercnocke (Bries)

O acesso à banda desenhada que não naquelas línguas que mais usualmente nos estão próximas (português, espanhol, cada vez menos o francês, inglês) não pode ser desculpa para uma distracção dessas mesmas produções. As dificuldades em acompanhar essas tendências é tremenda, obviamente, e nem sequer a barreira da língua, se ela existir, é a mais significativa. É mesmo o acesso, seja este entendido de modo económico, físico ou de percepção. É também uma fonte permanente de angústia não se poder ler tudo, como qualquer bibliófilo saberá, mas procura-se corrigir, ou contrabalançar, esse sentimento, na medida que se estende a mão a algo que alargue o círculo dessa atenção. (Mais) 

Ora é precisamente olhando para os dois livros do autor belga flamengo Wide Vercnocke, que é uma espécie de nova coqueluche daquela área de criação, que se pode ensaiar esse gesto. Como já havíamos debatido a propósito de Tim Enthoven, a Bries é uma editora de primeira água na Bélgica, se bem que o facto de se concentrar na produção de expressão flamenga encurta necessariamente o público que atinge. Mas tendo em conta a configuração editorial daquela casa, e o tipo de livros que produz, a presença de Vercnocke não é surpreendente, uma vez que este é um autor que explora dimensões da banda desenhada que têm menos a ver com os caminhos usualmente expectáveis – narrativas, aventuras, géneros – do que experimentações a nível expressivo.

Vercnocke trabalha, como alguns críticos belgas o caracterizaram, num campo que se poderia chamar de “poema gráfico”. Esta não seria uma questão apenas superficial, pela apresentação da matéria verbal numa certa disposição e concentração, mas por uma estratégia de criação que o próprio autor apelida de “imagens associativas”. Mijn Muze ligt in de zetel é aquele que mais explicitaria essa estratégia. Traduzível como “A minha musa está deitada no sofá”, é uma série de histórias ou sequências muito curtas, cada uma das quais centrada num objecto banalíssimo do quotidiano doméstico (provavelmente do seu autor, já que o protagonista masculino, tal como ocorre em Wildvless, é fisicamente parecido com ele, exceptuando os óculos).

Cada uma dessas sequências é apresentada da seguinte forma: um pequeno poema, apenas apresentado em texto, numa página par, ao lado da qual se estende uma “página de rosto” ou uma imagem icónica, com algum desse mesmo texto, ou todo, disposto ao longo da figura, numa espécie de poema ilustrado, ou imagem “poemada”. Na página seguinte, uma vinheta solta mostra o protagonista, sozinho ou acompanhado, afirmando uma frase qualquer, que serve de comentário à história em banda desenhada que se segue, sempre de três pranchas cada, e que estende a ideia inicial. Como disse, cada história, poema, ideia, centra-se em objectos: o sofá, a televisão, luvas de borracha, as linhas dos músculos, a transformação litecantrópica da namorada.

Esta ideia de transformação não é de somenos, já que todas as histórias operam sempre por esse princípio. A primeira história inicia de imediato esse processo, uma vez que o protagonista, depois de carregar o sofá para o interior da casa, o acaricia e abraça como se fosse uma mulher, e chegamos mesmo a ver essa transformação. Todavia, se nesse momento pensamos que se trata de uma projecção fantasmática, um delírio criado pelo desejo, uma fantasia masturbatória, as outras histórias vão aumentando o grau desse delírio, mostrando o protagonista valsando com uma gárgula que tomba de uma igreja, dando vida própria a uma excrescência da pele que lhe nasce por entre as luvas de borracha de lavar a loiça, dando existência autónoma às veias ou músculos, e, finalmente, sendo absorvido pelo corpo feminino do sofá. Também estão presentes histórias mais banais e domésticas, mas todas elas alimentam uma ideia, possível interpretação, de que estamos perante traduções visuais de breves sonhos ou episódios hipnagógicos tidos precisamente no sofá. Aqueles breves momentos em que não adormecemos profundamente, mas apenas ao de leve, escutando ao mesmo tempo a televisão ou a companheira a aspirar em casa ou as outras pessoas a falar…

Essa estranha e leve dimensão onírica informa também Wildvlees (“Carne selvagem”), se bem que aqui se trate de uma narrativa mais alongada e convencional em termos estruturais. Dividido em vários capítulos, de extensões diferenciadas, basicamente estamos perante a história de um veado que, excitado pela sedução carnal de uma humana, se transforma num homem. Depois da sua chegada à cidade, envolve-se com a irmã dessa humana, criando a um só tempo um estranho triângulo amoroso como um mecanismo de fuga e protecção do caçador. Poderíamos dizer que Wildvlees cria uma metáfora relativamente clara das pulsões de eros e thanatos, afinal de contas, e se nos recordamos quer da forma como o autor fala do seu trabalho (“associação”), e se entendermos um dos trocadilhos centrais deste livro (entre “hart” e “hert”, isto é, “coração” e “cervo”), talvez essa ideia não seja totalmente disparatada, abrindo um possível quadro de leitura.

Vercnocke tem uma abordagem ao desenho célere. Não se trata de um autor clássico que lance uma estrutura a lápis e depois procure as correcções, ou uma moldagem mais correcta, com artes-finais, mas alguém cujos primeiros traços são a inscrição final. As suas figuras são alongadas, esquálidas, e compostas de linhas angulares e plásticas, e cheias de pormenorizações e texturizações compostas igualmente por linhas desconjuntas. Os esquemas de cor são muito simples, esbatidas, de identificação rápida, de aplicação sumária e também obedecendo a esse princípio de textura por linhas ou áreas diferentes. Se existem momentos de composição menos aparentes – as tais formas icónicas e titulares de Mijn Muze, ou algumas das sequências de mutações em ambos os livros, ou a cena final, “mágica”, simétrica, da duplicação do homem-cervo – a esmagadora das opções do autor são bastante convencionais, uma vez que a sua pesquisa se encontra no plano da significação, e na capacidade em despertar diferenciações pelas tensões inesperadas entre texto e imagem, aquele aparentemente centrando-se em banalidades do dia-a-dia, estas rasgando-se na direcção do sonho.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta dos volumes, e a Gert Meesters, pela boleia e contactos. 

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