15 de agosto de 2015

Comics as History, Comics as Literature. Annessa Ann Babic, ed. (Farleigh Dickinson University Press), por Sara Joana Silva.

Nota inicial: conforme experiências anteriores, e após uma primeira abordagem sumária deste mesmo título, damos lugar a uma leitura mais aprofundada a um outro investigador. Desta feita, é a Sara Joana Silva que cabem as palavras sobre Comics as History, Comics as Literature, e a quem agradecemos profundamente a paciência e tempo. 

Este livro é uma antologia de artigos académicos que procuram justificar o estatuto da banda desenhada em relação aos outros campos de estudo, nomeadamente em relação à Literatura e à História, tal como indica o título, demonstrando a importância da banda desenhada na construção da sociedade atual, sendo um meio usado para problematizar questões sociais mais ou menos em voga, dependendo da altura de publicação de cada obra, e podendo ser utilizado para fins culturais e pedagógicos.

Logo no texto introdutório, Babic lista pontos importantes na história da banda desenhada e do debate interdisciplinar desta área, onde teóricos de um lado defendem a legitimidade da banda desenhada como forma de literatura, enquanto outros consideram esta forma de arte como algo inferior. (Mais) 

Não existe uma divisão por áreas no que diz respeito aos artigos, sendo que alguns pontos explorados num artigo situado no início da antologia podem ser comuns a pontos existentes num artigo posterior. Os três primeiros artigos focam-se na banda desenhada franco-belga, o quarto artigo diz respeito à banda desenhada mexicana, e os restantes nove artigos exploram várias questões ligadas à banda desenhada americana.

Nos artigos dedicados à bande desinée, os autores focam-se na importância de certas obras como Asterix e Alix na construção de uma identidade nacional, em oposição à crescente influência da cultura americana após a II Guerra Mundial. São explorados pontos como as diferentes ideologias políticas opostas na França até ao final da Guerra Fria, e como a bande desinée serviu de veículo pedagógico ao adaptarem episódios históricos neste formato de modo a educar a população. Um aspeto debatido neste último ponto é a parcialidade encontrada na forma como os episódios são expostos, exaltando o povo francês e a sua capacidade de se manterem ligados às suas origens, não se deixando corromper – algo que funciona como uma mensagem antiamericana no contexto de ocupação pós-guerra.
 O quarto artigo, referente à banda desenhada mexicana, refere como este medium  serviu para projetos de literacia no México, tendo sido bem-sucedidos até certo ponto, uma vez que, sem uma educação apropriada e contínua, o povo que habitava longe de grandes centros urbanos não tinha como praticar mais leitura e poucos chegaram mesmo a aprender a escrever. O artigo foca, também, a importância que a adaptação de episódios históricos para banda desenhada teve na criação de uma identidade cultural mexicana.

Os dois artigos seguintes, um da autoria de Peter W. Lee e o outro da autoria da própria Babic, focam-se na série Wonder Woman como símbolo patriótico e como símbolo feminista, mostrando a evolução da personagem Diana Prince desde os comics da II Guerra até o pós-guerra, onde o papel desempenhado pela heroína e o próprio comportamento do seu alter-ego mudam. É de notar a análise feita às diferentes fases desta personagem como símbolo do ideal feminino ao longo da história americana, uma vez que a Wonder Woman em tempos de guerra era vista como um símbolo de força feminina, capaz de suprir as necessidades da população tão bem quanto os homens, e participando ativamente no exército, enquanto que Diane Prince do pós-guerra, em tempos de paz e prosperidade, passa a simbolizar o ideal feminino mais passivo e submisso, fruto da mentalidade conservadora e direcionada ao ideal de família dos anos 50 e 60.

O artigo de James C. Lethbridge, por sua vez, relata o tipo de censura sofrida nos comics americanos, e como surgiram organizações autorreguladoras na própria indústria, organizações essas que estabeleceram códigos de conduta para a redação e produção dos comics. Esses códigos, porém, também vieram a ser alterados de acordo com os tempos vividos, e, quando certas medidas não eram implementadas, algumas companhias e editoras de comics afastavam-se das organizações reguladoras, podendo fundar outras.

O artigo de Kara Kvaran foca-se na representação de personagens homossexuais em comics mainstream, oferecendo um relato de como o facto de um herói ser homossexual passou de ser apenas algo insinuado e de difícil perceção para algo assumido abertamente. Com isto, Kvaran articula a luta de membros da LGBT+ para terem mais representatividade nos media, e como a existência destes heróis foi benéfica para a educação da sociedade em geral, falando, ainda, do que se pode fazer mais por esta causa. Este artigo é bastante bom por colocar a questão da representatividade de minorias, colocando a questão de como uma representação pode ser vista como positiva ou negativa pelos indivíduos pertencentes a determinados grupos. O medo de ferir suscetibilidades pode levar a uma representação ambígua e pouco clara, enquanto que, por muito boa que seja a intenção do autor, uma tentativa de representação executada por alguém que tem pouco conhecimento das vivências de certos grupos pode chegar a ser ofensiva e gerar mais estereótipos negativos.

O artigo de Lynda Goldstein fala da experiência do 11 de setembro retratada por autores de comics mainstream, tanto de um ponto de vista autobiográfico, nalguns casos, como na vertente informativa.

Os artigos de Micah Reuber e Beatrice Skodili focam-se nas relações entre banda desenhada e literatura. No caso de Reuber, a relação explorada é o motivo literário do Grey Man, usado na literatura neo-realista norte-americana, dando exemplos da sua utilização em comics, e criando um paralelismo entre essas figuras num medium e no outro. Por seu lado, Skodili fala de uma adaptação a comic e na forma como este medium pode facilitar o ensino de certas obras a nível escolar.

Ainda no âmbito de diálogos entre media, os artigos apresentados por Chistina Dokou e Faiz Sheikh falam na interação entre comics e cinema, e comics e televisão, respetivamente, recorrendo a Sin City e The Walking Dead como exemplos. O primeiro artigo é mais um exercício de estética, enquanto o segundo enumera as diferenças existentes entre o comic e a sua adaptação, bem como os ambos ilustram diferentes tipos de sociedade e as suas hierarquias.

A meu ver, é uma boa antologia, mas incompleta. Existem pontos focados repetidamente sem haver necessidade, como o da identidade nacional ou o simbolismo de Wonder Woman/Diane Prince, o que torna a leitura um tanto repetitiva, e todos os artigos focam-se em banda desenhada mainstream, obras e autores. Além disso, toda a antologia gira em torno da banda desenhada americana, e, mesmo quando se fala de banda desenhada de outras nacionalidades, no caso, francesa e mexicana, fala-se sempre em contraste ou em paralelo com a cultura e história americana. Este facto seria compreensível se, na introdução, houvesse algum indício que os artigos selecionados incidiriam na influência americana, mas não é isso que sucede. Após ler a introdução, o leitor fica com uma ideia de que os temas tratados serão mais abrangentes, embora numa perspetiva ocidentalizada. Sendo assim, poderiam ser incluídos textos sobre a adaptação a banda desenhada de Dom Quixote, de A. Albarrán e A. Perera, por exemplo, ou sobre a obra autobiográfica se Satrapi, Persepolis. Outro exemplo que ocorre, pensando em concreto na literatura norte-americana, são as adaptações a comic dos contos de Edgar Allan Poe feitas por vários artistas.


Portanto, na minha opinião, é uma boa antologia para quem procura informação sobre banda desenhada mainstream e a sua influência histórica e social, mas que poderia substituir alguns artigos, que se tornam repetitivos, por outros artigos que poderiam dar a conhecer outras obras e traçar um maior paralelismo entre este medium e a literatura, uma vez que é isso que um leitor espera quando vê o título da antologia.

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