Faz muito sentido da parte
da editora em lançar os dois volume de All you need is kill
ao mesmo tempo, uma vez que a economia e concentração desta
narrativa, assim como a velocidade da sua complexificação e
resolução, convida a uma leitura rápida. Se a divisão por
capítulos se justificava na sua serialização em revista, na sua
ausência no nosso mercado, a sua (re)leitura em livro é a opção
certa. (Mais)
Originalmente, este
projecto surgiu como uma novela escrita por Hiroshi Sakurakaza,
pertencendo a um género particular conhecido por “light novel”,
textos literários escritos com um público muito jovem em mente e
seguindo toda uma série de “regras” ou expectativas formais e
editoriais. Sendo uma delas a inclusão de ilustrações, dinâmicas
ou ambientais, no caso presente criadas por Yoshitoshi Abe. O Japão,
tendo um mercado literário estratificado como poucos (o que não
significa que não haja crossovers, mas as categorizações
são mais claras), procura munir cada sector com uma dieta rigorosa e
constante de material, e este é alimentado sobretudo com literatura
associada (ou “tie-in”) a RPGs (de tabuleiro ou digitais). Se All
you need is kill não está associado a nenhum jogo específico,
ele está imbuído até ao tutano nessa mesma cultura. A própria
premissa central da história – a que, a cada morte, se regressa a
um determinado “ponto de partida” que permite passar novamente
pela jogada e, assim, melhorá-la, superando o obstáculo – é não
apenas um mecanismo existente em alguns jogos (respawn: Quake,
Dark Souls) como até uma fantasia na vida (“se pudesse
voltar atrás...”, “se soubesse que era assim...”). Na verdade, podíamos
mesmo pensar que o livro é mais sobre essa fantasia de cheat codes
do que de verdadeiro crescimento interior. Afinal de contas, se para
se ser um herói basta falhar vezes sem conta e se repetem gestos,
não é propriamente treinar-se para se estar alerta,
conscientemente, em novas situações.
O sucesso da novela poderá
medir-se não só pela quantidade de adaptações e a que foi sujeita
– esta de mangá, uma versão em comics
(absolutamente desprezível), e, claro está, a famosa adaptação
cinematográfica realizada por Doug Liman, Edge of Tomorrow,
com Tom Cruise – mas é sem dúvida graças a essas transposições
que a sua fama vai sendo construída. A versão mangá aparentemente
segue mais de perto a intriga e estrutura narrativa original da
novela de Sakurazaka, sobretudo no que diz respeito aos pontos
nevrálgicos da acção – bem diferentes do filme, que institui
finais felizes, resoluções finalíssimas, etc. – e os “desvios”
em profundidade das biografias das personagens em relação à linha
temporal, ou melhor, às várias linhas temporais que se vão
acumulando linearmente na rota de combate e vitória contra os
alienígenas invasores da Terra, com quem combatem, ou Mimics. Haverá
liberdade em relação ao texto original, seguramente (que não
lemos), mas não só é isso expectável como saudável, uma vez que
as adaptações devem procurar um qualquer grau de transformação
que torne a matéria “sua”. Temos portanto um equilíbrio
interessante entre as partes de acção (os combates) e encontro com
os Mimics, os flashbacks biográficos, e momentos de exposição
explicativa (mas não demasiados; na verdade, há mesmo alguma
ausência de mecha porn, techno-babble ou outras
intervenções similares: o filme complica muito mais a dinâmica das
criaturas). Isto cria secções claras ao longo do livro, como vimos,
que além de ser dividido fisicamente em dois volumes (presumimos
nós, apenas para poder manter a estandardização dos tankonbon
e arrumá-los na mesma prateleira que os demais) está dividido em
vários capítulos.
O
livro tem como figura central o jovem soldado Keiji Kiriya, o qual,
apanhado na malha do loop
temporal provocado pelo embate com um dos Mimics-transmissores,
repete sempre o trecho de tempo e acções que dão início à
história até às suas “mortes”. Cada um desses ciclos são
chamados de “voltas”, e é no momento em que elas se
interseccionam com as de Rita Vrataski que se começa a tecer a
possibilidade de uma vitória definitiva sobre os invasores. Apesar
daqueles tais “desvios” indicados, a intriga não deixa de ser
concentrada e conduzida (afinal de contas, estamos perante um
projecto com 400 pranchas – o que é usualmente “curto” nas
sagas da banda desenhada japonesa) na direcção da resolução do
problema, e até o uso de elipses e transições rápidas aceleram o
processo de avanço. Ao contrário de muitos outros projectos que
procuram estender ao máximo a tensão e a protelarem os
acontecimentos (pense-se em Blame!),
All you need is kill é
cinético ao máximo. O próprio trabalho de composição – pelo
que se entender cumprido, pelo menos em parte, por Ryosuke Takeuchi, indicado como autor do
storyboard – ajuda
nessa dimensão. Existem
momentos por vezes confusos, dado o uso de estratos espaciais que não
seguem os arranjos mais normalizados da banda desenhada ocidental,
“naturalista” e “lógica”, mas estratos dramáticos,
emocionais, e variações de planos que sublinham o melodramatismo do
evento (os close-ups dos olhos recordam por demais a escrita de Light
em Death Note), mas
isso é condição necessária neste género. Tudo serve para essa leitura rápida, concentrada na
dança (algures fala-se de “tango”) entre os dois personagens, no
centro do conflito.
No
entanto, a distribuição dos papéis e/ou graus de protagonismo e
acção é diverso entre o filme, a mangá e a versão comic.
Repare-se como na capa da versão norte-americana o protagonismo é
dado de imediato ao protagonista masculino. Nas duas capas da mangá
procura-se um equilíbrio distributivo, apenas compensado pela
diferença na atitude dos rostos das personagens. Mas no interior da
mangá há bastantes momentos em que se percebemos estar a seguir uma
fantasia masculina, mesmo que se deseje ver em Rita uma mulher
independente, forte e autónoma: se não há praticamente personagens
que mereçam essa descrição para além de Keiji e Rita (mas que,
por serem desenhadas por Obata, ganham algum grau de personalidade
diferenciada na mangá), as poucas personagens femininas que surgem
são sempre sexualizadas de forma hiperbólica, com grande destaque
para Rita, claro, a cozinheira e até mesmo a engenheira mecânica
(de uma forma típica pelo lado da “nerd
inocente”). Talvez seja um paradoxo, ou pelo contrário sublinhe as
regras do jogo nessa dimensão, mas essa sexualização é por vezes
des-sexualizada, como quando na cena obrigatória de chuveiro o corpo
totalmente nu de Rita não tem nenhum dos traços que tornariam o seu
corpo concreto e humano – mamilos, pêlos púbicos, etc. -,
transformando o corpo numa mimese do da Barbie.
Em
termos visuais, e como é de esperar, como tinha ocorrido já em
relação a Death Note
e tantos outros (Dragon Head,
La Musique de Marie,
etc.), os protagonistas – mas as personagens quase todas,
independentemente da idade – são representados de modo
nubilíssimo, sobretudo Keiji e Rita, obviamente, que preencherão as
“funções de leitor” de projecção do leitor (masculino) e do
desejo (fantasia feminina). Todavia, sendo essa a regra deste
campeonato “leve”, e All you need is kill é
leve de uma maneira directa, descomplexada e perfeita,
compreendendo-se que não se está a explorar propriamente uma obra
de contornos críticos em termos sociais, mas antes uma desbragada
fantasia, o seu emprego é, digamos assim, justo e apropriado.
Rápido, concentrado, eficaz e dinâmico. Como um jogo bem passado.
Nota final: agradecimentos
à editora, pela oferta dos dois volumes.
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