Em 1970, Sendak criou duas pequenas animações que integraram
a versão norte-americana (e original) do programa televisivo e pedagógico Rua Sésamo. Ambos eram dedicados a dois
algarismos, o 7 e o 9. Se a primeira, “Seven Little Monsters”, daria origem a
uma série de livros explorados por outros autores, o segundo, “Bumble-Ardy”
daria origem a este mesmo picture book, agora publicado em português, no
seguimento da publicação da obra deste autor maior desta área, como já havíamos discutido. (Mais)
Se o progresso textual nos pode parecer tolo, qualidade que
é mantida pela tradução de Carla Maia de Almeida, isso deve-se aos objectivos
contraditórios do programa original – a educação pela via lúdica e por vezes
trapalhonça mesmo – e do autor, que de uma forma ou outra “absorve” os
projectos para os seus temas recorrentes. Repare-se como da criança original
que convida porcos para o seu aniversário, o livro ganha contornos ligeiramente
mais lúgubres, apesar de disfarçados pela celeridade da história e pelo humor
incessante: este Bumble-Ardy suíno, ou na sua versão portuguesa incontestável e
segura, Chico-Chorão, é órfão de ambos os pais, transformados em chouriço (uma
leitura abusiva quase que poderia explorar vias alucinadas, de projecções do
Holocausto – nada estranho na obra de Sendak – nesta família de… porcos), e
encontra no seu nono aniversário (alguma cerimónia especial, passível de
interpretações simbólicas?) uma ocasião para a libertação de todas as regras.
Não queri isso dizer que se chegue a bom porto.
Para além do tema da criança isolada, com um qualquer grau
de afastamento dos seus progenitores ou adultos supervisores, para que possa
mergulhar num qualquer episódio caótico de rebeldia, folia ou funçanata, encontraremos
também presentes o tema recorrente da comida, especialmente aquela farta e
luxuosa que representa um fausto e posição social. A ideia de se cruzar com
“convidados”, “amigos”, “companheiros” ou pura e simplesmente “estranhos” que
vêem desarrumar o funcionamento expectável e normativo da sua vida é igualmente
repetida. Para além dos seus livros mais famosos, também em Kenny’s Window e One was Johnny, os protagonistas têm de lidar com súbitos comensais
em fúria. Esses episódios servem sempre para colocar em crise (ou em maior
crise, as mais das vezes) a relação com o familiar, neste caso com a tia, mas,
como soe, tudo acaba em bem, com uma reconciliação a um só tempo clara, mas
sempre deixando alguma pontinha de melancolia. Neste caso em particular, testemunhamos
a fúria, sim, mas da figura adulta, terrífica.
Quanto ao estilo, estamos aqui perante igualmente uma
mão-cheia de formas recorrentes: as páginas começam com as figuras contra uma
paisagem e localizações relativamente destacadas de fundos brancos, para depois
se fecharem em breves molduras que estabelecem a objectividade das
circunstâncias, dando depois lugar a uma procissão que ocupa progressivamente o
espaço visual. Figuras isoladas primeiro, depois o regresso das molduras (e
repare-se como o propósito pedagógico – ensinar o algarismo 9 – cai numa
sobre-exposição alucinada e até quase-macabra, podendo-se ler cada personagem
como que representando uma área sombria), e finalmente – tal qual como em Onde vivem os monstros – três spreads a
“sangrar”, totalmente ocupadas por imagens detalhadas, e “silenciosas”, se
excluirmos os textos escritos, ainda que esse “silêncio” corresponda
precisamente, na nossa imaginação, à maior algazarra possível.
Este livro tem construções de composição que permitem uma
leitura dupla: a linear, da “narrativa”, e aquela que se perde nos pormenores
apresentados, nos pequenos recados e conselhos, nas linhas por dizer de cada
personagem. E, como sempre, na Lua, criatura mutante ela mesma que vai
acompanhando a acção de longe mas nela participa de alguma forma.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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