Em 1995, já na sombra (ou
luz?) da grande transformação da oferta cultural na cidade de
Lisboa depois desta ter sido Capital da Cultura em 94, e numa escala
mais pequena então mas que se revelaria significativa, a fundação
da pequena associação de artistas zé dos bois, que organizaria o
Festival Atlântico nesse ano, existia pela capital do país uma
corrente eléctrica de desejos que finalmente encontravam espaços e
caminhos certos para a sua realização. Público, pontos de
encontro, copos, e algum financiamento promissor. Na banda desenhada,
isso não era de forma alguma uma excepção, até porque a década
havia começado auspiciosamente, na ressaca da revista LX Comics,
dirigida por Renato Abreu, que reunia a coqueluche da “nova banda
desenhada portuguesa”, a surfar na mesma onda que tinha dado origem
à madrilena Madriz, na sua movida... e uma série de
outros projectos em formato de livro com essa geração (Noites de
Vidro sendo o título mais bombástico). A banda desenhada
parecia estar integrada nos novos movimentos da arte portuguesa, da
dança, do cinema, da música, da literatura... Surgia assim uma nova
revista que desejava ser um título corrente, regular, com autores
jovens e com desejo de fazer uma banda desenhada que não pedia
licença para seguir as tendências do melhor que a disciplina tinha
para oferecer à escala internacional. Até a capa interior, com um
anúncio do Tintim no Independente dava a entender que
haveria apoio de camadas informadas e sofisticadas da sociedade.
Lia-se no editorial que “Acreditamos que sim, que vai valer a
pena”. Valer a pena, valeu, sem dúvida, mas não se regressaria
tão cedo ao mesmo projecto. (Mais)
Perdermo-nos nas razões
pelas quais o projecto não medrou da forma que se desejava tem de
ser contada pelos próprios, mas elas não devem ser muito difíceis
de compreender, sendo talvez a falta de uma força motriz central
talvez a principal. É verdade que a falta de fundos e meios não é
um incentivo, a distracção de um público mais interessado em
fórmulas familiares, a total indiferença de uma recepção crítica
que mereça esse nome, a ausência de interlocutores institucionais
(apesar da Bedeteca de Lisboa ter sido um motor importante, e em
particular relação com este grupo ou geração de autores), mas não
existindo um nódulo que faça coordenar os esforços individuais
destes artistas, seria difícil sequer oferecer um porto ao qual
procurassem chegar.
Mais do que olhar para
estes 20 anos com nostalgia, devermos antes interrogar-nos quais as
razões que levam alguns dos colaboradores desta publicação, a Ai
Ai, a regressar ao mesmo suspiro. Acreditamos que seja mais uma
ocasião para pensar num caminho que não foi, mas assegurar que o
que foi foi justo. E igualmente uma causa de celebração de que o
panorama editorial contemporâneo em Portugal não é, de forma
alguma, o deserto que era naqueles anos, o que também não era de
todo verdade. Hoje em dia, temos uma oferta mais diversificada em
termos de géneros, humores e estilos, assim como de estratégias de
comunicação e de comercialização, chegando mesmo a ter alguns
autores profissionais, no pleno sentido da palavra, e outros cujo
brio e entrega ao trabalho é inegável. O suspiro destes autores é
hoje acompanhado por um coro de vozes bem distintas, e todas sólidas.
Os autores que “regressam”
são Nuno Saraiva, Filipe Abranches, Jorge Mateus, Luís Lázaro,
João Fonte Santa e Fernando Martins, alguns dos quais continuam
activamente a trabalhar neste modo de expressão, e outros que se
entregam a outras disciplinas visuais (o cartoon, a pintura, a
animação, o design gráfico, a fotografia) ora de maneira exclusiva
ora de maneira complementar, mas com as metástases e as
contaminações intactas. Será curioso também notar em que medida é
que aqueles que ficaram e aqueles que regressam” à banda desenhada
mantêm ou alteraram profundamente as suas características formais e
narrativas, mas por outro lado também é benéfico lê-la somente
pela sua presença, sem qualquer ancoramento interpretativo a partir
do número anterior. É também inglório querer encontrar
características ou uma temática comum aos trabalhos aqui presentes,
flutuando entre a rememoração de episódios da autobiografia
(Saraiva) a passeios melancólicos e poéticos por uma nocturna
Lisboa transfigurada (Mateus), e balançando entre a alegoria formal
(Carrilho) e a anedota por variação (Abranches).
Resta dizer ainda que o
design volta a estar a cargo de Carlos Guerreiro, e se não se
revisitam alguns autores, como Pedro Burgos, há outros novos, como o
próprio Guerreiro enquanto ilustrador narrativo, com uma peças
semi-abstractas e pejadas de informação, e o novo autor Mantraste,
com uma espécie de fuga para a frente com alguns dos elementos
possíveis, mas sem se coalescer numa peça coerente em termos
estéticos (já que narrativamente, nem é esse o propósito).
O problema é que a Ai
Ai surge numa paisagem em que temos toda uma série de outros
projectos, zinescos ou não, que têm demonstrado a capacidade de
trabalhar no campo da banda desenhada de forma ponderada, desde
projectos alimentados por uma verve quasi-punk genuína (Rudolfo,
Afonso Ferreira), explorações formais atentíssimas (Amanda Baeza,
Mao), projectos narrativos ou literários coerentes (David Soares,
André Oliveira), ou autores que apresentam corpos logo completos nas
suas obras, menores ou maiores (Francisco Sousa Lobo, André Pereira,
Sofia Neto, Marco Mendes), entre tantos outros nomes. Isto é, qual é
o verdadeiro papel da Ai Ai? Reunião de amigos? De “antigas”
glórias? Uma tentativa de tomar um lugar de pertinência face à
produção actual (até buscando na risografia a escolha “do
momento”)? Mostrar a pujança que ainda é possível explorar?
Simplesmente uma ocasião de promover novo trabalho? Provavelmente
nenhuma dessas opções, ou um bocadinho de tudo, mas sabe a pouco
encontrar autores veteranos, com larga experiência na construção
de trabalhos gráficos tão diversos, a apresentar trabalho que
parece algo desinspirado quer face ao próprio trabalho dos autores
(no passado mas também no presente) quer face a essa paisagem, a
que, de certa forma, foram algo responsáveis na criação das
condições, se não em influências directas.
Economicamente, parece-nos
ainda que os autores estão algo desfasados ou então acreditam que
pautar “por excesso” o valor da revista é uma boa estratégia.
Existindo apenas 120 exemplares, é de facto uma edição limitada e
que pode chegar ao fim rapidamente, mas sendo em risografia (e com as
idiossincrasias assumidas dessa abordagem gráfica – falta de
registo perfeito, jogos fantasmáticos com as segundas cores,
conseguidas de forma excelente por Mateus e Carrilho), 15 Euros
parece ser algo excessivo, mesmo para estas, cof cof, “velhas”
actuais glórias. Haja fôlego, todavia, para mais.
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