Desde os seus primeirospassos, integrando aspectos que tinham a ver com a performance
e a integração das intervenções verbais ou interacção com os
leitores/espectadores, que a dupla Ruppert e Mulot trouxeram novas
realidades para o campo social, pragmático, editorial e estético
para a banda desenhada. Existindo muitos autores de grande qualidade
e até mesmo capazes de criar “obras-primas” do ponto de vista
literário, visual, estrutural, holístico, são poucos aqueles que
têm trazido novos protocolos de leituras, estruturação ou relação
física. Chris Ware é um desses nomes, Ruppert e Mulot são outros. (Mais)
Estes dois projectos são
bem distintos entre si em termos objectuais, mas cada um a seu modo
vem trazer novos modos de pensar a distribuição da sequência das
imagens enquanto princípio organizativo, ou pior, essencial, da
banda desenhada. Não estamos aqui perante a diluição ou a
destruição da sequência, é verdade – como muitos casos que
fomos debatendo neste espaço de quando em vez -, mas ainda assim há
algo em Un cadeau e Le royaume que deveria forçar o
leitor a ponderar o que realmente significa a ideia de
“potencialidade da banda desenhada”, “originalidade” ou
outras palavras quejandas, tantas vezes empregue um pouco de modo
impressionista, opinativo e, quase sempre, desmerecido.
Un cadeau é um livro cuja forma é indubitavelmente um projecto original e complexo, e que transforma por completo o acto físico da leitura. O livro tem um número de páginas determinado, 32, mas elas estão todas coladas umas às outras. A única forma de “folhear” o livro é ir abrindo ou escavando cada página pelos picotados que estão preparados. Cada página “abre-se” de uma forma diferente, com picotados oblíquos, ou rectos, ou abrindo-se uma lingueta a meio, ou um triângulo lateral, páginas que se abrem em cruz, e assim sucessivamente. As páginas em si distribuem-se por momentos ou vinhetas relativamente usuais numa banda desenhada: os diálogos entre os dois amigos na morgue, momentos de silêncio ou somente interrompidos pelas onomatopeias da intervenção no cadáver, grandes planos sobre pormenores, e, no final, a imagem derradeira que constitui igualmente o objecto da procura inusitada. O “presente” prometido no título do livro.
A história em si
resume-se tão-somente a uma anedota muito simples, até pateta. Mas
a acção que estamos a testemunhar, para todos os efeitos, no
interior da diegese, é uma dissecação de um corpo humano. Assim
sendo, a acção de despicotar e ler cada página atravessa também
toda uma série de camadas, e imita o avanço numa linha
abstractamente vertical pelo corpo que é explorado pelo técnico
forense. Desta forma, há um perfeito encaixe – em francês
dir-se-ia “se lover” - nas acções da diegese e o comportamento
físico do leitor. No final da história, descobrimos o tal objecto,
e é como se devolvesse o olhar, não apenas do protagonista, mas do
próprio leitor como se estivesse no interior da história. Ao
olharmos o livro “aberto”, todos os fragmentos das páginas
despicotadas elevam-se (para o fechar é necessário um esforço
cuidadoso igualmente) e parecem uma couve-flor. Um presente
desembrulhado no fundo do qual se encontra a recompensa. Livro,
escultura, pop-up, há algo que mistura as regras do manuseamento
deste objecto fazendo-o participar em mais do que uma realidade
possível, dessas categorias.
Este é um livro cuja
leitura ou descoberta só é feita uma vez, na sua verdadeira e
paulatina e esforçada caminhada. Qualquer acto que se lhe siga, no
mesmo exemplar, é já desbravado, impedindo essa completude. (Mais,
tendo “folheado” e “fechado” este livro duas vezes, tememos
que qualquer repetição do acto vá perigando cada vez mais a
integridade, já titubeante, das páginas). A análise
estruturalista, ou a narratologia clássica, criava a noção de uma
negociação entre um autor implicado e um público implicado em
torno de um texto específico, actual. Un cadeau parece
incentivar ou feito à medida das novas abordagens cognitivistas, ou
uma nova narratologia, em que se estabelece uma relação entre o(s)
autor(es) reais e um leitor particular para se construir um texto
implícito. Cada cópia é, então, um presente de Ruppert e Mulot
para os seus leitores precisos, e o texto “objectivo” apenas
surgirá nessa mesma performance de leitura.
Fisicamente falando, Le
royaume parece (ou é mesmo) um objecto convencional: um jornal
que, aberto, tem um formato A1. Cada spread apresenta-se
sub-dividido em composições. À primeira vista, convencionais,
explorando toda a espécie de combinações entre o regular e o
semi-regular, na tipologia de Chavanne. À medida que lemos,
entendemos que estamos a acompanhar várias histórias, ou pelo menos
situações narrativas distintas e que não parecem partilhar pontos
em comum: uma família numa viagem de carro, um grupo de bailarinos a
tentar levar a cabo uma nova coreografia, um homem a construir um
muro, um mecânico especializado em achatar carros e outros objectos,
pessoas que atravessam uma escadaria. Mas cada sequência pode estar
distribuída de modos diferentes na página, e as direcções,
protocolos e eixos de leitura são totalmente estocásticos e livres.
Esta distribuição, aliada a outros aspectos da(s) “narrativa(s)”
fazem pensar que os autores estudaram talvez, ou também formas de
composição típicas de jornais ilustrados ou de banda desenhada, em
que num mesmo plano poderiam estar presentes mais do uma história,
sob a forma de tira ou trecho, e passatempos gráficos, etc.,
explorando essas relações em potencialidades narrativas
não-normativas. De resto, estas estratégias são tão variadas que
permitiria ler Le royaume à luz de quase toda a história das
narrativas gráficas e das escolhas de composição, desde Töpffer
com as suas rápidas sucessões e iterações aos diagramas de Ware,
passando pelos jogos da Oubapo, as pliages de Al
Jafee, brinquedos de papel da mais variada proveniência, e
outras experiências ainda mais radicais de formalismo e técnicas de
impressão.
Além disso,
apercebemo-nos rapidamente de que todas e quaisquer dessas
personagens vêm a conhecer um fim qualquer, as mais das vezes
violentos e absurdos. Porém, ainda a vida parece continuar para
essas personagens, mesmo depois de irem contra um camião, ou serem
cortados ao meio por um autocarro, ou serem atacado por pardais. Essa
fluidez, sem interrupção, é ecoada pelo convite à leitura fluida
de todas essas linhas direccionais das vinhetas, que ora descem
verticalmente, ora operam curvas e ziguezagues ao longo da página,
ora outras relações mais complexas ainda.
Mas desde a capa, e depois
à medida que viramos as páginas, entendemos que as “almas”
(será isso?) estão numa espécie de limbo, que parece o espaço
sideral, fazendo-se acompanhar de objectos. Aliás, a discussão das
almas é precisamente sobre o que constituirá um “objecto”, e
que o torna elegível de ser levado para o “outro lado”. De todos
esses objectos, a lua-orgia ou o asteróide de heroína são talvez
aqueles que redefinem a ideia de “felicidade post-mortem”.
O spread central do jornal é impresso duas vezes, para
permitir ao leitor, sem que destrua as páginas (quase que se
poderia dizer “ao contrário de Un cadeau”, se bem que
nesse caso a “destruição” é condição sine qua non
para a própria participação-leitura desse objecto), fabrique uma
espécie de cone que, colocado na cabeça, permite ver o vórtice de
passagem virtual entre um lado e o outro. A última página também
convida a que se proceda a uma técnica bem complicada de dobragens,
para aceder ainda a um outro plano espacial. Ou seja, também Le
royaume permite uma forma de participação (similar, mas não
equivalente, àqueles brinquedos que Chris Ware providencia nos seus
livros de maneira a expandir o universo diegético da sua obra) que
tridimensionaliza a narrativa, e a eleva a outros mecanismos
textuais. Aliado a algumas das acções das personagens – jogar
golfe sem taco nem bola de golfe, mas antes uma espada e uma bola de
futebol, criar dodecaedros gigantes para depois explorar formas de
trabalho e percepção reminiscentes dos estereogramas e do
pantógrafo, - confunde toda a ideia de processos de trabalho gráfico
(e de outras disciplinas).
Os diálogos e situações
procuram criar momentos de verdadeira meta-textualidade, como as
considerações sobre a alma, as ditas “experiências de morte
iminente”, e até mesmo a leitura de jornais. Tudo isto vai
contribuindo para as camadas e complexidades do objecto, que se vai
revelando cada vez mais complexo. Adicionalmente, há espaços outros
que são atravessados – escadarias, o local confuso onde se
entrevistam as pessoas, outro onde se ditam as reencarnações –
que remetem a outras formas de interpretar o limbo, citando-se mesmo
a inscrição famosa cunhada por Dante das portas do Inferno várias
vezes para reforçar essa ideia. Os momentos dramáticos da morte
encontram-se sempre fora da visualização directa, isto é, têm
lugar no espaço entre as vinhetas, mas não interrompem o fluxo
aparentemente normal do comportamento (gestural, verbal, de atitudes,
da situação em si) das almas, mostrando então uma “passagem”
suave e sem complexidade dramática. A visitação de tantos
processos de morte e de relações com ela tornam, e aquelas
experiências transdisciplinares, tornam Le royaume – mas
ainda assim convidando a que se estenda essa leitura a Un cadeau
e, talvez, outras obras da dupla francesa - numa irónica tipologia
dessa existência, como se estivéssemos perante um catálogo, à la
Bouvard e Pécuchet, do que é possível ir fazendo.
Nota final: agradecimentos
a Paulo Seabra, pela filmagem do livro e primeira edição do vídeo,
e pela expressão “couve-flor”; a Frederico Duarte, pela oferta
de Le royaume; a Gert Meesters, pela boleia a Haarlem.
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