É algo difícil ler um
livro que cria obstáculos à sua própria leitura. Um livro que,
descaradamente, nos apresenta matéria verbal para ser lido e depois
nos nega essa possibilidade dadas as formas e estratégias de
impressão. Algo que, para todos os efeitos, é uma banda desenhada,
e pretende que se institua um diálogo permanente entre as imagens,
aparentemente narrativas, e um texto, aparentemente complementar. E
depois se nega a completar essa união. Recidivist é um livro
que não pode, pelo menos de forma fácil, ou ininterrupta, ou
rápida, ou cabal, ser lido. E se for esse o propósito? (Mais)
Esta pequena publicação,
do artista e músico Zak Sally, contém quatro a cinco histórias
curtas. Cada uma delas é totalmente separada da outra em termos
diegéticos, não havendo partilha de personagens, espaços, ou
sequer acontecimentos. Se existe um estilo de desenho relativamente
aproximado, já a composição e a abordagem gráfica difere, havendo
histórias compostas somente de splash pages (uma vinheta
ocupando toda a página, neste caso quadrada, com o texto na página
ao lado), outras com algum tipo de divisão, quase sempre ortogonais
e simples. Os esquemas cromáticos também são distintos: azul,
vermelho e preto num caso, azul acinzentado noutro, amarelo e lilás
depois, vermelho no último caso, e apontamentos a prateado ao longo
dessas histórias, de modos bem distintos. Ainda, uma história
quebrada em três páginas/partes, espalhadas ao longo da publicação,
a azul e prateado. As histórias intitulam-se “Scratch, scrape”,
“Revenge”, Unhome” e a última não tem título, tal como
também não a tem a “espalhada”.
Quase todas as histórias
têm uma trilha textual que as acompanha. Não existem jamais balões
de fala nem diálogos, apenas um texto corrido, narrativo, que pode
ou não ser atribuído à personagem que vemos. Apenas a última
história, com dois irmãos jovens fugindo de uma casa meio-destruída
para se depararem com o corpo estendido de um adulto (o pai?), é
“muda”. Os outros textos pretendem ser uma espécie de faixa que
exporia os acontecimentos visíveis de outra forma. Mas sê-lo-ão?
Parte desses textos é
apenas legível (visível até!) se se segurar num determinado ângulo
contra a luz – e a solar é muito melhor, sem dúvida, mais difusa.
A tinta prateada impressa sobre os azuis cinzentos praticamente
desaparece – como o “fantasma” que atravessa essa história
(“Revenge”) -, ou, contra o mesmo texto impresso a negro e no
centro de uma tempestade de espirais, aparece e desaparece nessas
camadas – como o corpo que flutua em “Unhome”?
Não há dúvida de que o
texto “faz sentido”. Quer dizer, a camada textual, tomada
singularmente, pretende criar uma forma terminada e burilada de
significado próprio. Trata-se mesmo de uma prosa com grandes
contornos poéticos, num diálogo simples entre um interlocutor e o
seu leitor projectado, vogando por entre impressões e emoções
ambivalentes. Poder-se-ia dizer que estaríamos perto de uma
longínqua influência do nouveau roman, talvez, mas é
provável que não chegue sequer a esse nível de complexidade. Todos
os textos, isolados entre si, partilham essa característica, de ser
um texto “endereçado”, implicando o leitor nas acções ou
sensações entretanto desenroladas ao longo das acções das
personagens: num caso, a aparente obsessão em ajuntar toda e
qualquer réstia de uma substância prateada, noutro, um estranho e
incompletamente compreendido ritual em torno de vários objectos
banais, no terceiro, a perseguição de um meteoro (também prateado)
e a transformação de si através dele, e finalmente, na última
história, uma morte.
Qual o propósito, então?
Aconselharia todos os potenciais leitores a ler o texto que o autor
tem como apresentação e tentativa de não vender este objecto a
pessoas que se recusem sequer a querer aproximar-se dele, no site de venda. A dada altura, escreve Sally, “é sobre a falha e a
obsolescência e o medo e a esperança e por que razão alguém, nos
dias que correm, dedica tempo e energia a fabricar e a divulgar
folhas de papel obscuramente impressas com cenas lá dentro. E porque
é que isso interessa, mesmo que todos os signos apontem para o
contrário.” Poderíamos dizer, talvez, que o propósito de
Recidivist, até pela própria noção ofertada pelo título,
é esta insistência em querer acreditar que, sendo a comunicação
humana, e o entendimento estético, algo impossível de cumprir na
sua completude, é a de estender a mão ainda assim a essa
possibilidade. As personagens destas histórias são de facto algo
falhadas: uma acaba soterrada sob a pilha de livros e objectos
desconjuntos que acumula em casa, outra dissipa-se enquanto um
fantasma, outra ainda parece abandonar-se num ritual de
auto-destruição, outra persegue uma quimera e é por ela jogada
fora, ao passo que os últimos jovens se vêem abandonados. Ou talvez
não, uma vez que se opera uma transformação cromática e
estilística neles que talvez aponte, de certa forma, a uma
possibilidade de redenção, salvação e fuga. Assim, talvez o
esforço dos próprios leitores mime aquele que vemos ocupar as
personagens, sendo os leitores mais felizes do que elas.
Não estamos aqui perante
um mecanismo similar à da escrita assémica ou à abstracção
visual de um Tim Gaze e amigos, mas antes à fabricação de sentidos
através de outros modos, densos, complexos e exigentes, e que, à
sua maneira, obrigam o leitor a tomar em conta de forma permanente a
materialidade do objecto, tais como tantos outros projectos, de Pedro Franz a Chris Ware. A relação aqui talvez seja mais simples,
concentrada, mas tais como as linhas sobrepostas criam padrões
hipnóticos, é a recorrência interna que complica os padrões do
projecto.
Recidivist é um
título partilhado entre várias publicações de Sally, daí a sua
numeração (aqui jogada com as letras do título), sendo todas elas
uma pequena colecção de histórias curtas as quais, partilhando de
forma menos ou mais aproximada temas e atitudes, poderão ser
subsumidas a uma ambiência, pelo menos. O autor cultiva outros
trabalhos mais “legíveis”, se forem esses os termos que se
desejem empregar, como a banda desenhada online Sammy,
entretanto coleccionada pela Fantagraphics, como outros títulos. Mas
Recidivist é uma
exploração materialista dessa “confusão” possível e táctil
que convida os seus (atrevemo-nos a dizer “bons”?) leitores a
aceitar o desafio da aproximação.
Impresso em risografia e
com variados níveis de tinta e intervenções, é óbvio que o autor
esperava de facto que se construíssem e empilhassem camadas de
“ruído”. Ou melhor, e é isto o que o torna curioso, como cada
camada, que porventura corresponderá a um nível de “signos”
legíveis, interpretáveis e significativos – mesmo no caso dos
padrões concêntricos -, se torna ruidosa ao se sobrepor. A
transformação de comunicação em ruído parece, em parte, aquela
que opera nas nossas vidas, recompensando quem escute o ruído (como
aquele que porventura poderia assim ser chamado, no CD que acompanha
a edição) e compreenda, como sofredores de pareidolia, a detectarem
padrões e sentidos, mesmo que fugazes.
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