Se a natureza do tempo é incompreensível para os seres
humanos, por estarmos nele imbuídos ou por ele sermos constituídos, tal não
significa que esse seja um enigma o qual devamos desistir perseguir. E não há
melhor momento de nos começarmos a interrogar sobre ele do que no momento em
que passamos a existir, que é sempre, a cada momento afinal. Os livros ditos
infantis, mormente os ilustrados, os livros de histórias com ou por imagens,
são um instrumento incontornável nessa aprendizagem permanente, e se colocamos
aquela ressalva quanto ao seu público-alvo é porque, de quando a quando, haverá
livros que poderão ou deverão mesmo ser lidos pelos adultos não tanto com olhos
de “nostalgia” ou “maravilha ingénua”, mas genuína entrega. Este é um desses
objectos. (Mais)
Recordar-se-ão alguns leitores de que Com o tempo, de I. M. Martins e M. Matoso, procurava articular o
entendimento do tempo e a natureza da sua passagem com a experiência mais
quotidiana da observação do mundo à nossa volta: interiores, citadinos,
contemporâneos, cheios de objectos e relações com os organismos que habitam
esse espaço diverso. O tempo do gigante tem como propósito trilhar um mesmo
caminho, mas fá-lo desviar-se por paragens bem diferentes. Em vez da acumulação
de exemplos, há aqui pelo contrário uma concentração na própria duração do
tempo, o qual, quanto mais é observado de tempo, mais lento escorre à frente
dos nossos olhos, ou todos os sentidos.
Como promete o livro, as páginas viram-se à medida do tempo
do protagonista, um gigante. Desta forma, temos a um só tempo uma passagem
rápida – a cada viragem podemos mudar radicalmente de tempo meteorológico,
apontando à passagem das estações – e uma passagem lenta – as percepções do
próprio gigante, com quem a voz desincarnada da narração parece coincidir ainda
que não representar. O seu percurso fica-se em torno de um espaço confinado às
montanhas e florestas de pinheiros que habita. Quem sabe, da perspectiva dos
humanos, ele nem sequer seja visível, não por não se notar na sua figura, mas
por a sua lentidão ser a da natureza alterando-se, da cor das folhas nas
árvores à forma como o terreno se dilui e incha. Os animais notam-no, por vezes
até se assustam com ele, mas muitas vezes tratam-no como se fosse mais um dos
acidentes de terreno. O texto parece seguir padrões repetitivos, de dúvidas, de
pequenas excitações logo corrigidas por se compreender melhor que “não se passa
nada”. Pois narrativamente neste livro
não se passa de facto nada a não ser a própria passagem desse tempo por estes
espaços e estas criaturas. Não há conflitos neste livro, ainda que haja uma
súbita e profunda transformação, ecoada nas guardas do livro, e que são o
coração da surpresa da oculta acção do livro.
Visualmente, este livro é magnífico. O seu tamanho, não
sendo desmesurado (à la A gigante pequena coisa ou Kramer’s Ergot), é
suficientemente grande para mimar a escala da criatura peluda que habita a
floresta montanhosa. Todos os desenhos são criados por áreas de cor, apicada de
modo quase uniforme e criando texturas e distâncias pela sua diferenciação, sem
qualquer trabalho de base ou posterior de linhas e fechamentos a preto. Cada
“objecto” apresenta-se assim numa cadência de tons que nos permite criar a
ideia de textura e tridimensionalidade: os castanhos da montanha, os verdes da
folhagem arborícola ou rasteira, os laranjas e vermelhos do gigante. O
ilustrador, Manuel Marsol, usa aqui e ali papéis texturados para compreendermos
melhor as escarpas das montanhas, o solo coberto de neve fresca, as tábuas das
casas abandonadas, os rochedos colhidos pelo gigante, a paisagem toda iluminada
pela neblina que espraia a luz lunar. Ou aplica intervenções pontuais ou
espalhadas de linhas e pontos, para representar os pelos da criatura, o padrão
das bétulas, o movimento das águas, a queda da neve e o voo das agulhas dos
pinheiros, o voo da lava, o pó e terra espalhados pelo vendaval. E, o mais belo
dos pormenores, as pinceladas grossas de tinta branca e diluída para assinalar
as nuvens que atravessam os céus, de resto claros e azuis.
Um livro cuja recompensa não está em lê-lo até ao fim, e
cuja surpresa não está na sua completação, mas antes na sua revisitação
constante, e descobrir que, onde não se passa nada, se pode sempre passar
tanto.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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