A palavra opus,
latim para “obra” ou “trabalho”, num sentido singular, tem uma raiz no
Indo-europeu *op-, que poderá dar a ideia de um excesso de esforço.
Se se aplicar demasiada força física ao se desenhar, o papel rasgar-se-á,
seguramente. Mas o que sucede quando esse esforço se encontra num outro plano
em relação à obra, e se rasgam antes as fronteiras ontológicas entre a
realidade e a criação, entre a vida na vigília e o devaneio da fantasia? (Mais)
Satoshi Kon é,
provavelmente, um dos mais celebrados, se não o mais celebrado
realizador de animação japonesa junto a um público informado para além dos
sucessos comerciais e de âmbito infanto-juvenil. Na verdade, encerrá-lo em
termos geográficos ou cronológicos, ou mesmo de território criativo e
artístico, é um tremendo desserviço, pois parece ser uma qualificação
defensiva, em vez de o considerar, tout court, como um realizador
absolutamente completo e magnífico. Mesmo sem ter em conta o seu trabalho
televisivo, a “trilogia” Perfect Blue, Millenium Actress e Paprika
deveria ser dieta obrigatória para quem se interessa pelas relações que o
cinema consegue explorar em termos de existencialismo, solidez psicológica,
negociação com o plano onírico, paranóia, e individualização através da
fantasia. O número de realizadores de “cinema de imagem real” influenciados por
Kon são demasiados para elencar, e as frentes da sua inventabilidade –
montagem, edição, argumento, e criação de complexas redes emocionais (Tokyo
Godfathers é um animal bem distinto dos outros três títulos, mais
tradicional, mas nesta frente, quiçá, ainda mais musculado) – elementos que
corroborariam essa ideia. Além do seu trabalho no cinema de animação (onde
começara como assistente de Katsuhiro Otomo), Kon foi também autor de banda
desenhada (também introduzido por Otomo), e muito recentemente têm sido
publicados em inglês volumes que tornam mais acessível o seu trabalho nessa
frente, a solo ou em colaboração: Seraphim: 266613336 Wings, Dream
Fossil, um antológico Art of Satoshi Kon e este Opus.
Opus é uma obra cuja descrição pode levar a
escolhos e complicações. A história apresenta um autor de banda desenhada,
Chikara Nagai, que está a criar uma série shonen intitulada “Resonance”
para uma revista. Subitamente, as personagens de “Resonance” terão acesso ao
mundo “superior” (?) do artista, e tentam reescrever o destino que lhe estava
reservado, mas acabam por arrastar Nagai para o “interior” de “Resonance”. A
partir daí, o conflito entre criador e obra atingirá tensões cada vez mais
complexas, até ao ponto de não ser possível distinguir quem exercer poder sobre
quem.
Originalmente
publicada entre 1995 e 1996 na revista Comic Guy, esta banda desenhada
desde logo mostrava as suas apetências metatextuais. Se a premissa “interior”
da série shonen dentro da banda desenhada que estamos a ler parece
inscrever-se sem grandes problemas no mesmo tipo de produção que nos daria Domu
(1980), 20th Century Boys (1999-2006) e Death Note
(2003-2006), é o seu embate com o nível do artista-criador que a tornará um
texto particularmente denso e intenso. Se os jogos da criação escapando ao seu
criador é já algo de muito antigo na literatura (Quixote), e foi
experimentado logo de imediato no primeiro cinema e animação, também poderíamos
procurar na grande família dos “bonecos rebeldes” da banda desenhada uma
tradição explorada de formas diversas, de Sérgio Luiz (1939) a Grant Morrison (Animal
Man, desde 1988) e James Robinson e Greg Hinkle (Airboy, 2015).
Em termos de
narratologia, falar-se-á (se seguirmos a terminologia de uma Mieke Bal, por
exemplo) de uma “fábula primária” - a história do autor de mangá, Nagai – e a
“fábula integrada” - Resonance. A relação é imediatamente hierárquica,
uma vez que, apesar de entrarmos logo na segunda no início do livro,
rapidamente nos aperceberemos (até por surgirem algumas das suas páginas
inacabadas, com as personagens mal delineadas a lápis) que ela é parte
integrante, física, consequência, da primeira, que passa a ser considerada
pelos leitores como o “mundo real”, ou aquilo que por ele se faz passar na
diegese a que acedemos. E dado que os “géneros” a que cada uma dessas fábulas é
bem distinta nesta primeira fase, inicial – realismo vs. fantasia -, não os
lemos como se reflectindo mutuamente, ou se o fizermos, será de uma maneira
simbólica, distorcida e afastada. Uma das funções da meta-textualidade é criar
modos de reflexão, quer no seu sentido visual quer no seu sentido cognitivo,
sobre a própria matéria do texto, e em parte sempre foi essa a linha principal
das pesquisas criativas de Kon.
Mas há algo que
vem complicar ainda mais a sua leitura global. É que Opus seria
interrompida. Não apenas pela carreira emergente e cada vez mais intensa de Kon
na produção de animação (tendo em 1997 uma viragem dramática com a sua primeira
realização, Perfect Blue), mas
também o cancelamento da revista e, enfim, a morte do autor em 2010. No
entanto, um putativo último capítulo existia numa fase inacabada no espólio do
artista, e que os editores japoneses, e agora os norte-americanos da Dark
Horse, apresentam como coda neste volume. A história de Opus pode ser
lida então como tendo três finais: aquele que foi publicado num estado
finalizado, uma espécie de queda infinita e suspensa do criador derrotado pelo
inimigo das suas personagens, o implacável e misterioso Masque, o fim ensaiado
nesse capítulo inacabado, e a própria interrupção derradeira da vida real.
Todos esses três são válidos, à luz da experimentação de Opus e de Kon.
Mais, já que o estado inacabado do último capítulo – por razões históricas,
reais - vai informar de forma quase fantasmática (e até assustadora) o estado
inacabado do capítulo de Resonance que vemos no início de Opus.
Seria um daqueles momentos em que a arte parece de facto informar a vida, e que
nos levaria a certas considerações irmanáveis àquelas discutíveis com o
Alph-Art de Hergé.
Poder-se-ia talvez
integrar a escrita de Kon numa família bem mais alargada de “realismo mágico”,
mas pensamos que a negociação entre os níveis de realidade e fantasia, ou
sonho, ou alucinação, ou memória, que costumam informar os trabalhos do autor
japonês ganham uma consistência diferente.
Kon está largamente interessado em tornar os mecanismos da criação
literária, visual, de banda desenhada ou de animação em objectos não apenas em
crise mas que colocam em crise os próprios processos que lhes dão
origem. No caso particular de Opus, o mangaka Nagai vai numa primeira
fase cair no interior da sua ficção, no mundo ficcional que ele criara na saga Resonance,
publicada numa revista chamada Young Guard. Depois são elementos dessa
mesma criação que são puxados para o mundo real de Nagai. Isto complica-se,
porém, quando descobrimos que esse “mundo real” de Nagai não passa em si mesmo
de um outro mundo ficcional que se encontra no interior de outro nível de
existência “controlado” por Satoshi Kon, aquele que partilha a sua existência
com o nosso mundo. No entanto, esta nova “passagem” apenas acontece no
episódio “recuperado”, e por finalizar, levando a pensar em que termos é que o
poderemos articular com o material efectivamente publicado.
Além disso, a
estratégia meta-textual permite que se crie um discurso auto-reflexivo, ou
confessional até, se se desejar, dos termos criativos. Através dos pequenos
jogos de referência ao próprio trabalho dos mangakas, mesmo que não de uma
forma tão directa quanto os autores da gekigá (ou outros pólos de produção) o
fizeram nas suas autobiografias ou auto-ficções, Kon permite que se instituam
uma pequena linha de inquirição sobre o seu mundo social.
Acima de tudo,
porém, está a grande finalidade desta estratégia textual: a de demonstrar como
toda a fábula é ficcional. Até ao ponto, quase, de que isso iluminará a própria
construtividade, ficcionalidade, fabricação da nossa própria realidade: quer
dizer, leva-nos a que reflictamos sobre o nosso próprio plano de existência.
Não percamos o fio à meada: o mundo do Kon que lemos no último capítulo é,
afinal, ainda ficção. A ficção, portanto, como espelho.
As dinâmicas do
livro nascem, obviamente, do inconsútil cruzamento entre a dimensão diegética –
a perseguição e/ou fuga mútua entre a detective Satoko Miura e o misterioso
Masque (por demais recordando-nos o “Amigo” de Urasawa), arrastando todos os
demais –, a ontológica, que os leva a atravessar os planos da realidade, da
ficção e dos “pretéritos” e/ou “volumes anteriores” de Resonance, e
ainda a dimensão visual: atravessamos túneis, paredes, edifícios, descem-se
escadas, atravessam-se bairros bidimensionais e inacabados, deparamo-nos com
páginas apenas esboçadas (no início, marcando uma diferença diegética e de
processo; no fim, no capítulo recuperado, presos à contingência fenoménica do
estado das pranchas após a morte de Kon). E descem-se ruas e avenidas,
quebram-se vinhetas “no solo” para surgirmos nos céus, joga-se com escalas,
perspectiva e travessia de planos.
O desenho de Kon é
absolutamente sólido e límpido, próximo do primeiro Taniguchi “comercial” e de
Urasawa, em que há um domínio das linhas que moldam as figuras, pouco
preenchimento com sombras ou linhas interiores (à la Ikegami), um uso de
paisagens urbanas e tramas muito convencional e profissional mas que ancora
essas mesmas figuras, e um uso judicioso, elegante, dos momentos de “excesso
emocional”. A composição das páginas é convencional e regular, uma vez que os
desvios e distorções já se encontram no seu interior. E a estrutura serial é
também expectável para com uma série publicada numa revista, com cada capítulo
apresentando uma folha de rosto, com uma qualquer representação icónica, mas
não-narrativa, das suas personagens. É portanto um veículo bastante clássico e
convencional, para “romper” por outras frentes.
Aliás, essa é
mesmo uma característica do trabalho de Kon, parece-nos, que se transmite
depois para o cinema, mas onde o autor teve a oportunidade de ir tornando cada
vez mais subtil, elegante e acabada. Mesmo em retrospectiva, os momentos mais
estranhos, confusos e mesclados são apresentados de uma maneira suave, onde o
efeito caleidoscópio nasce dos eventos retratados e não de efeitos de
superfície. Não buscando formas espectaculares à la Keiichi Koike, existem
porém momentos de grande complexidade visual.
Em termos sociais,
Opus não é uma obra tão complexa como aquelas ofertadas pelos autores da
gekigá mais clássica, pelos cultores da autobiografia ou da maturidade da
nouvelle mangá, mas isso não significa que, mesmo no interior da mangá de
género (Resonance, shonen) Kon não procure formas alternativas de
criar os tecidos das personagens. Apenas a título de exemplo, Kon complica a
relação sexual (não no sentido de “coito”, mas de interacção entre dois seres
onde o factor sexual tem o seu peso) entre criador masculino e personagem
feminina, isto é, Nagai e a detective Satoko, ao demonstrar como ela se baseia
na namorada real de Nagai. A diferença, muito subtil, entre Satoko e a mulher
real baseiam-se no facto de que a primeira é uma versão ideal, mais magra, da
segunda, o que apenas em si falaria volumes sobre a projecção masculina do
desejo. Mas não há uma exploração directa pelo sexo nesta história, como
poderia esperar-se, talvez, de fantasias ocidentais (não faltarão exemplos de
homens criadores a terem relações com as suas mulheres-criações num quadro
fantasioso idêntico), optando-se antes por formas de distribuição de agência. O
que é verificado, de resto, com todas as outras personagens com quem o mangaka
se cruza, no interior da sua obra. E essas formas são talvez uma sombra daquilo
que o próprio Kon desejaria que se estabelecesse entre todas as suas
personagens e ele mesmo, ou entre elas e os seus leitores. Opus cria um
labirinto, talvez menos talvez mais complexo do que aquele que aqui pintamos,
mas um labirinto que nos convida a perder algum tempo nele, sem pressa de sair.
Nota final:
agradecimentos a The Comics Alternative, pelo acesso a uma cópia digital
do livro.
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