21 de agosto de 2015

Trama. João Fazenda (Abysmo)

Um sketchbook é sempre um objecto bizarro, pois ele concatena em si mesmo muitas linhas de fuga de sentido que provêm de outros objectos ou categorias, como se se tratasse de um cadinho onde essas características aproveitadas fossem destiladas. Uma galeria, um diário, um estaleiro de trabalho, ou outras configurações, como já havíamos aprendido e debatido com Drawing From Life. Trama, de João Fazenda, não escapa dessas noções. (Mais)

Em 2001, a Bedeteca de Lisboa produziu uma colecção de cinco sketchbooks de cinco autores internacionais e nacionais, tendo sido publicado StarHunters, de João Fazenda, o qual também reunia um conjunto de trabalhos heteróclitos. Na época, Fazenda era uma estrela sobretudo graças ao seu (então) surpreendente Tu és a mulher da minha vida, ela é a mulher dos meus sonhos, escrito e lavrado com Pedro Brito, se bem que já as colaborações com Marte e alguma da sua emergente ilustração o prometia a uma produção valente em termos quantitativas e qualitativos. Em mais de uma década, essa promessa viu-se cumprida, reiterada e ultrapassada mesmo. Tendo coligido uma parte substancial da sua obra, acompanhado pelos textos iluminadores de João Paulo Cotrim, em Combo (Assírio & Alvim: 2009), este Trama recupera esse mesmo gesto de lavrar o desenho. Contendo alguns desenhos que Fazenda apresentara no seu antigo blog, que usara para treinar a mão, que podem ou não prometer histórias, é uma oportunidade para os seus admiradores olharem para dentro, pelo menos em parte, de um processo.

Alguns autores contemporâneos, portugueses, como António Jorge Gonçalves, Ricardo Cabral, Nuno Saraiva, e cada qual a seu modo, têm nos novos meios digitais uma ferramenta quase completa para a criação das suas imagens. Nalguns casos, essa interacção foi profunda ao ponto de re-escrever-lhes os estilos (mais no caso de Gonçalves, talvez), noutros, tratar-se-á somente de um meio que lhe permite uma maior celeridade e suavidade na finalização do trabalho (o caso de Saraiva). Mas em todos os casos, nenhum destes autores se “afogou” na ferramenta de modo a perder a sua própria assinatura. Na verdade, eles apenas confirmam esses meios precisamente como ferramentas de trabalho, sendo eles próprios quem ditam as regras da construção visual, e não o contrário (exactamente a forma de descobrirmos que autores se deixam subsumir pelas potencialidades/limitações da máquina e quais os que as empregam de forma livre). E pensamos não estar (demasiado) errados se dissermos que parte desse controlo, dessa mestria, desafogo e assinatura se contém nos pequenos movimentos holísticos e absolutamente pessoais que se coordenam entre os dedos, o pulso, o olho e a mente. É ainda nos mais simples gestos do lápis sobre o papel que encontraremos as raízes desses gestos. São eles que revelam a “trama”, ou aquilo que Barthes chamou de “grão” no campo musical: o que há de mais empático, unificado ao corpo do artista, o qual é difícil de semiotizar de forma cabal, mas ainda assim nos convida à análise.

A oportunidade que Trama nos dá – e até pela qualidade de reprodução há uma grande diferença de StarHunters que sublinha essa vantagem - é a de podermos vasculhar em pormenor como se comporta esse “grão” das linhas desenhadas por João Fazenda. Existem desenhos a lápis ou carvão onde o valor se altera por maior ou menos pressão do material riscador. Há outros que, feitos a marcador, mostram as passagens da tinta excessiva pela ponta de feltro, mostrando onde se repetiram os riscos. Há outros em que a sujidade do carvão espalha uma pequeníssima sombra, terminando a figura, ou ofertando-lhe textura e presença. Existem aguadas, passagens de pincel semi-seco, talvez aplicações de ecolines, aguarelas ou mesmo pretos e cor digital (depois transformada aqui em grayscale), mas todas revelando a mão do autor, transformando-se assim em índices da sua passagem real, contigente, física.

Não existem propriamente temas recorrentes, nem sequer uma estrutura temática – como, por exemplo, poderemos encontrar nos diários gráficos de Joann Sfar. Se há algo repetente são as personagens, mas também estas não se parecem repetir: não se tratam de auto-retratos, pessoas que rodeiem o artista, observações “reais” dos espaços que habita, se bem que alguns dos desenhos possam corresponder a essas realidades. Aliás, um dos desenhos parece ser uma personagem que se auto-constrói através de fragmentos de desenhos, o que poderia ser lido como uma acabada metáfora autobiográfica de um desenhador.

Se bem que se poderá dizer que é inevitável que todas as personagens estejam a “fazer qualquer coisa”, a verdade é que essas actividades convidam sempre à ideia de companhia. Mesmo as personagens isoladas parecem estar sempre a cruzar o seu olhar com alguém, ora fora de cena (como o guitarrista) ou directamente com o leitor-espectador (como a mulher a fumar, ou a outra encostada ao parapeito). A quantidade de figuras ao colo umas das outras, sentadas juntas, dançando (recordemos o livro a solo do autor, Dança, da Pato Lógico), também leva a encontrar aqui uma espécie de pesquisa da forma como os corpos se tocam entre si. Isto, se cruzam, de delineiam uns aos outros, se sobrepõem. Tal qual as linhas, criando tramas.
Nota final: agradecimentos a João Fazenda, pela oferta do livro.  

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