Um sketchbook é
sempre um objecto bizarro, pois ele concatena em si mesmo muitas
linhas de fuga de sentido que provêm de outros objectos ou
categorias, como se se tratasse de um cadinho onde essas
características aproveitadas fossem destiladas. Uma galeria, um
diário, um estaleiro de trabalho, ou outras configurações, como já
havíamos aprendido e debatido com Drawing From Life. Trama,
de João Fazenda, não escapa dessas noções. (Mais)
Em 2001, a Bedeteca de
Lisboa produziu uma colecção de cinco sketchbooks de cinco
autores internacionais e nacionais, tendo sido publicado StarHunters,
de João Fazenda, o qual também reunia um conjunto de trabalhos
heteróclitos. Na época, Fazenda era uma estrela sobretudo graças
ao seu (então) surpreendente Tu és a mulher da minha vida, ela é
a mulher dos meus sonhos, escrito e lavrado com Pedro Brito, se
bem que já as colaborações com Marte e alguma da sua emergente
ilustração o prometia a uma produção valente em termos
quantitativas e qualitativos. Em mais de uma década, essa promessa
viu-se cumprida, reiterada e ultrapassada mesmo. Tendo coligido uma
parte substancial da sua obra, acompanhado pelos textos iluminadores
de João Paulo Cotrim, em Combo (Assírio & Alvim: 2009),
este Trama recupera esse mesmo gesto de lavrar o desenho.
Contendo alguns desenhos que Fazenda apresentara no seu antigo blog,
que usara para treinar a mão, que podem ou não prometer histórias,
é uma oportunidade para os seus admiradores olharem para dentro,
pelo menos em parte, de um processo.
Alguns autores
contemporâneos, portugueses, como António Jorge Gonçalves, Ricardo
Cabral, Nuno Saraiva, e cada qual a seu modo, têm nos novos meios
digitais uma ferramenta quase completa para a criação das suas
imagens. Nalguns casos, essa interacção foi profunda ao ponto de
re-escrever-lhes os estilos (mais no caso de Gonçalves, talvez),
noutros, tratar-se-á somente de um meio que lhe permite uma maior
celeridade e suavidade na finalização do trabalho (o caso de
Saraiva). Mas em todos os casos, nenhum destes autores se “afogou”
na ferramenta de modo a perder a sua própria assinatura. Na verdade,
eles apenas confirmam esses meios precisamente como ferramentas de
trabalho, sendo eles próprios quem ditam as regras da construção
visual, e não o contrário (exactamente a forma de descobrirmos que
autores se deixam subsumir pelas potencialidades/limitações da
máquina e quais os que as empregam de forma livre). E pensamos não
estar (demasiado) errados se dissermos que parte desse controlo,
dessa mestria, desafogo e assinatura se contém nos pequenos
movimentos holísticos e absolutamente pessoais que se coordenam
entre os dedos, o pulso, o olho e a mente. É ainda nos mais simples
gestos do lápis sobre o papel que encontraremos as raízes desses
gestos. São eles que revelam a “trama”, ou aquilo que Barthes
chamou de “grão” no campo musical: o que há de mais empático,
unificado ao corpo do artista, o qual é difícil de semiotizar de
forma cabal, mas ainda assim nos convida à análise.
A oportunidade que Trama
nos dá – e até pela qualidade de reprodução há uma grande
diferença de StarHunters que sublinha essa vantagem - é a de
podermos vasculhar em pormenor como se comporta esse “grão” das
linhas desenhadas por João Fazenda. Existem desenhos a lápis ou
carvão onde o valor se altera por maior ou menos pressão do
material riscador. Há outros que, feitos a marcador, mostram as
passagens da tinta excessiva pela ponta de feltro, mostrando onde se
repetiram os riscos. Há outros em que a sujidade do carvão espalha
uma pequeníssima sombra, terminando a figura, ou ofertando-lhe
textura e presença. Existem aguadas, passagens de pincel semi-seco,
talvez aplicações de ecolines, aguarelas ou mesmo pretos e cor
digital (depois transformada aqui em grayscale), mas todas
revelando a mão do autor, transformando-se assim em índices da sua
passagem real, contigente, física.
Não existem propriamente
temas recorrentes, nem sequer uma estrutura temática – como, por
exemplo, poderemos encontrar nos diários gráficos de Joann Sfar. Se
há algo repetente são as personagens, mas também estas não se
parecem repetir: não se tratam de auto-retratos, pessoas que rodeiem
o artista, observações “reais” dos espaços que habita, se bem
que alguns dos desenhos possam corresponder a essas realidades.
Aliás, um dos desenhos parece ser uma personagem que se
auto-constrói através de fragmentos de desenhos, o que poderia ser
lido como uma acabada metáfora autobiográfica de um desenhador.
Se bem que se poderá
dizer que é inevitável que todas as personagens estejam a “fazer
qualquer coisa”, a verdade é que essas actividades convidam sempre
à ideia de companhia. Mesmo as personagens isoladas parecem estar
sempre a cruzar o seu olhar com alguém, ora fora de cena (como o
guitarrista) ou directamente com o leitor-espectador (como a mulher a
fumar, ou a outra encostada ao parapeito). A quantidade de figuras ao
colo umas das outras, sentadas juntas, dançando (recordemos o livro
a solo do autor, Dança, da Pato Lógico), também leva a encontrar aqui uma espécie de
pesquisa da forma como os corpos se tocam entre si. Isto, se cruzam,
de delineiam uns aos outros, se sobrepõem. Tal qual as linhas,
criando tramas.
Nota final: agradecimentos
a João Fazenda, pela oferta do livro.
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