Nos
anos 1970 e 1980, antologias como a Métal
Hurlant apresentavam uma linha muito particular de ficção científica nas
suas páginas que procuravam agregar os princípios temáticos desse género –
especulação científica, questões filosóficas sobre o desenvolvimento
tecnológico e o seu impacto na civilização humana, propostas de novas
realidades – com forças narrativas de outros géneros – características da
epopeia, da aventura romântica, do western, e até mesmo da mais recente
cultura psicadélica e “espiritual”. O historial desse desenvolvimento é
complexo e alongado, e há outras plataformas mais competentes para o fazer, mas
recordemos tão-somente que a banda desenhada não foi alheia a essa
possibilidade, com, por exemplo, a saga de Valérian (escrita por Christin,
neste aspecto mais importante do que o desenho de Méziéres), que influenciaria
parcialmente Star Wars, Os náufragos do Tempo, de Forest e
Gillon, O vagabundo dos Limbos, de
Godard e Ribera, e a de John Difool, que procuraria misturar ainda mais as
linhas “psicadélicas” e New Age. (Mais)
Mas
para além das histórias mais longas e que se tornariam mais famosas,
publicavam-se igualmente toda uma série de histórias curtas que, de uma maneira
ou outra, também marcariam essa época e experimentação. Estamos a falar de
autores como Voss, Alias, Nicollet, Sérgio Macedo, Imbert e Glauckler, mas
também os mais famosos Moebius, Bilal, Druillet, Corben, Jano, os irmãos
Schuiten, Claude Renard, entre outros. Algumas delas teriam mesmo espaço na
publicação periódica portuguesa Jornal da
Bd, mas também, claro está, a Mundo
de Aventuras (onde, por exemplo, saiu, a nosso ver, a melhor história da
dupla Louro-Simões, uma curta envolvendo aliens e Hitler), já para não
falar de outros títulos.
Não
se tratam, portanto, de histórias de “hard science fiction” tais como as 2001 Nights de Yukinobu Hoshino ou Planètes de Makoto Yukimura, ou mesmo
alguns dos títulos de Warren Ellis (Ocean,
Orbiter, Global Frequency). Uma das características deste outro género, e a
obra de Hoshino é particularmente densa nesse aspecto, é que todos os passos
tecnologicamente determinados de forma decisiva são explicados num quadro
verosímil, plausível ou aceitável, ao passo que esta outra abordagem é
ligeiramente mais drástica e rápida: não torna a “explicação” num escolho à
decisão do que se pretende demonstrar, e avança-se para o reinado da fantasia.
Logo, não faria sentido perguntar aqui, nos livros de Simon Roy, porque é que
as várias criaturas alienígenas conseguem articular uma linguagem fonética,
quanto mais falarem inglês (ou espanhol), ou como se conseguiu “traduzir” as
sinapses neuronais para um suporte artificial, e por aí fora.
Já
havíamos falado dessa reminiscência do género a propósito de Prophet, de Brandon Graham e
colaboradores, entre os quais o próprio Roy, que nos traz agora aqui à
colação dois volumes, criados por ele a
solo ou com apoio de companheiros. Jan’s
Atomic Heart recorda-nos por demais precisamente essas mesmas histórias. O
que, afinal de contas, nem sequer é uma ideia particularmente desviante ou
inesperada, já que a história “Good Business”, de sete páginas, foi publicada
precisamente na Heavy Metal. As
restantes seis são inéditas (criadas em contexto escolar, de desafios como o do
“24 hour comic”, etc.) mas encaixar-se-iam na perfeição num contexto similar. Além disso, a sua participação na antologia Island (Image), com Graham e outros, confirma a tendência.
Estas
histórias aliam-se entre si não apenas por uma questão autoral (todas a solo),
mas por se concentrarem numa temática similar: a da ficção científica, cruze-se
ou não este género com noções tais como a utopia, o absurdo, a ficção militar,
o pós-apocalíptico, etc. Em larga medida, estes enquadramentos são apenas uma
desculpa para o autor se entregar ao vultoso prazer de desenhar toda aquela
sorte de frentes tão tipicamente obsessivas nos autores e leitores do género: mecha, criaturas biologicamente
criativas e complexas, armamento, transportes, novos modos tecnológicos, novas
relações entre os humanos entre si, ou com alienígenas ou com maquinaria. O que
é curioso é que, em vez de ser aplicado numa saga épica, sideral, senão
cósmica, como Prophet, a atenção prende-se particularmente com aspectos
quotidianos e quase banais da vida das personagens: relações amorosas, como
receber o seguro de um acidente, que fazer quando se divide espaço com quem não
se gosta numa missão, como nos relacionarmos com os locais numa ocupação, etc.
Temos aqui histórias com enquadramentos mais realistas, como “The Cosmonauts”
até dramas quase-policiais, como a história que dá título à colecção, passando
mesmo por pequenas fábulas quase-moralistas (“Homeward Bound”). “Bar Fight”,
mais anedótica, dá o mote para a capa – que contém personagens de todas as
histórias – e remete os leitores informados para Mos Eisley.
Tiger Lung é quase diametralmente oposto. Em
primeiro lugar, pois em vez do futuro, olha para o passado longínquo. Tiger
Lung é um nome de um xamã do Paleolítico Superior, e as histórias aqui reunidas
espraiam-se num mundo geograficamente mais contido, mas não por isso menos
“fechado” em termos de género ou de experiências fantásticas. Por isso a
relação entre géneros é idêntica, já que o apoio na realidade é apenas a
catapulta para uma fantasia mais eficaz. Roy, que aqui conta com o apoio de Jason
Wordie na escrita de uma história, e nas cores de duas delas (inclusive a
co-autorada), terá cumprido alguma investigação, mas sem tornar essa mesma
pesquisa numa espécie de obsessão que pesasse em demasia o possível
desenvolvimento, leveza, ou concentração da(s) história(s). Há uma preocupação
por inscrevê-lo, ao protagonista, no conhecimento actual desse período
histórico em termos de rituais para com os comportamentos sociais e elos
familiares, hábitos de caça, estadia, recolha de alimentos, organização de
actividades, movimento, de tratamento dos mortos, equipamento e até mesmo o que
poderia passar por “artístico”.
Aliás,
os autores criam uma espécie de mapa do território coberto pelas personagens
destas histórias, para que entendamos as relações crono-tópicas dessas mesmas
aventuras. Mas o mais importante encontra-se na dimensão fantástica das duas
histórias inéditas. Ao ler-se “Beneath the Ice” na sua versão serializada –
esta havia saído na antologia Dark Horse Presents, que até certo ponto
cumpre o papel da Heavy Metal na sua época de ouro, mas com resultados
muito flutuantes - , e até em contraste com todas as outras histórias da
antologia onde o elemento maravilhoso fazia parte da textura narrativa, uma das
grandes diferenças residia na ideia de que as histórias de Tiger Lung seriam
“realistas”. Mesmo nos momentos em que o xamã-à-experiência se encontra na
parte mais profunda da caverna, e luta contra o pai-zombie, e observa as almas
dos deuses, poder-se-ia acreditar que se trataria de uma alucinação informada
pela sua dieta, cultura própria e, quem sabe, substâncias especiais. É mesmo
essa a “teoria xamânica” avançada por David Lewis-Williams para a origem e
desenvolvimento da arte parietal (cf. The
Mind in the Cave, a qual não parece ser uma fonte dos autores, e é posta em
causa por outras observações e posições). Mas as duas outras histórias, “The
Hyena’s Daugther” e “Song for the Dead”, confirmam a dimensão fantasiosa: os
deuses, as criaturas transmorfas, a magia, existe de facto, e não é apenas uma
projecção das crenças. Por outro lado, colocar as coisas deste modo é algo
patético, uma vez que, se de facto alimentam essa crença, nessa mundivisão elas
passam-se nesse mesmo mundo, não é? “Song for the Dead” é na realidade, uma
belíssima história, e pungente, de um sentimento, emoção e dor que os seres
humanos partilhariam desde sempre.
Tiger Lung reúne então essas três histórias, que a
um só tempo se estendem, confundem e complicam mutuamente neste universo
referencial. O mapa inicial do livro indica ainda uma série de outras
histórias, pelo que fica a promessa de que virão a ser debuxada e apresentadas
no futuro.
Seja
aplicado a ficção científica ou seja na ficção pré-histórica, para além destas
características de fantasia e concentração num “herói” relativamente solitário
face ao mundo em seu torno, o estilo do desenho de Roy tem uma qualidade muito
urgente, nervosa, pregueada, em que as linhas parecem excessivas nos contornos,
e aparentam uma qualidade próxima do primeiro esboço a lápis que se lança no
papel. Isso talvez explique a rapidez do seu trabalho. Jan's Atomic Heart
é totalmente pintado a aguadas cinzentas, ao passo que Tiger Lung tem
história cromaticamente ricas, com uma paleta limitada ou novamente em aguadas.
Se essas características fazem ganhar novas dimensões, esta tal urgência e
vivacidade do desenho de Roy não se perde. Já em termos de composição, é o
segundo livro que, aqui e ali apresenta soluções um pouco mais arrojadas e
adequadas à questão “psicadélica” aventada. Simon Roy pertence a uma nova
geração de autores que são irmanáveis por este estilo “nervoso”, como James
Stokoe (cujo Wonton Soup se inscreve
naquela “retro psico-scifi”) ou Farel Dalrymple, e parece ser uma força na
natureza pelo nível de produção.
Aproveitaríamos
a ocasião para somente mencionar um
outro livro, The Field (Image)
escrito por Ed Brisson. Espécie de episódio da Quinta Dimensão, mais
simples no tratamento, mais parece uma história curta estendida apenas no que
diz respeito à acção. Não sendo um livro significativo sequer na sua área
genérica particular, ainda assim poderá ser vista como uma experiência de
solidez de Roy na sua capacidade célere de trabalho. Isto não quer dizer que
seja desprovido de interesse em si mesmo, enquanto variação dos paradoxos das
viagens no tempo, da temática de Groundhog
Day (referido), dos Time Twisters de Alan Moore et al., mas
o centro da atenção está mais no conflito em si do que na exploração das suas
consequências.
Nota
final: imagens de ficheiros digitais.
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