Tal como no caso de TheVisible Text, também este livro, de uma das mais conhecidas teóricas de
livros de artista, mas também da teoria visual e textual e seus cruzamentos mais estimulantes e perturbadores, terá determinados
elementos que se podem tornar interpelantes e úteis para a reflexão sobre o
papel da banda desenhada, ilustração e outras áreas contíguas
na paisagem editorial e da materialidade das artes do livro. Bebendo do design,
da estética, da história editorial, da história da ilustração ou da imagem, e
da sua poderosa relação com o objecto-livro e a cultura do texto, e
subintitulado Visual Forms of Knowledge Production, este volume não é
tanto um conjunto de novas ideias ou propostas de Drucker, mas uma espécie de
curto balanço de algum do seu trabalho dos últimos anos, que se concentra na
conjunção da visualização do conhecimento, ou como é que a apresentação visual
de elementos conduz necessariamente à produção de conhecimento determinado. Por
outras palavras, a escolha formal em relação ao conhecimento a
apresentar é, logo, determinante da natureza desse mesmo conhecimento. (Mais)
Como torna evidente
Drucker, “[e]stes vários formalismos criam uma divisão entre aqueles que
acreditam numa qualidade inerente na própria expressão gráfica (qualidades
efectivas das linhas, formas, movimento) e aqueles que seguem antes uma
abordagem estruturalista na valorização dos signos gráficos num sistema de
convenções (a semiótica)” (pg. 43). Drucker, naturalmente, construindo a sua
visão numa sólida formação semiótica, abandona os dogmas dessa abordagem para
se colocar na esteira dos primeiros. Este posicionamento permite que a autora,
e outros com ela, a olharem (a lerem-verem, poder-se-ia dizer com Bredehoft)
para “além” das formas dadas, que correm muitas vezes o risco de serem
encaradas como “naturais”, “verdadeiras”, “objectivas”: “Estão tão
naturalizadas [formas tais como] os mapas e as barras geradas por folhas de
Excel [spread sheets] que passam por representações inquestionáveis de
'o que é'. É esta a grande marca dos modelos realistas do conhecimento, e
precisam de ser submetidas a uma crítica radical, que nos permita fazer
regressar para primeiro plano os princípios humanistas da constructabilidade e
da interpretação” (125). Assim, Drucker chega ao mantra que informará as
páginas de Graphesis: data é capta, isto é, “[a informação] é
feita [taken] e não dada [given], construída como uma
interpretação do mundo fenoménico, e não é inerente a ele” (128).
O livro é apresentado
com uma estrutura relativamente original. Está dividido em capítulos
temáticos-disciplinares, mas têm extensões diferenciadas, e são “interrompidos”
com várias folhas duplas que agem como focalizações mais específicas sobre
determinados instrumentos. Uma dessas partes, mais curtas e especializadas,
intitula-se “janelas” [Windows], bebendo tanto de Alberti como da
Microsoft, e debate de forma sumária alguns dos instrumentos de visualização
que perfazem a matéria da discussão de Graphesis:
a árvore de Walter Crane, os diagramas Gestalt, o de Jesse James Garrett sobre
design de interfaces, as variáveis gráficas de Jacques Bertin, etc., o que
inclui as “conexões” entre imagens distintas, que agrega Scott McCloud e
Eisenstein. Profusamente ilustrado, de uma maneira tanto pertinente como
informativa, Graphesis é um excelente
manual de consulta e leitura rápida que servirá como primeira paragem a quem
deseje navegar estas águas turbulentas que são a convergência da semiótica
visual, os estudos culturais, a crítica humanista pós-estruturalista. E um
excelente antídoto à ideia de que é possível falar de forma sem atender ao seu
conteúdo ou imaginar um conteúdo veiculado sem forma.
E o grande cerne do
contributo de Drucker, neste pequeno manual, é esse mesmo: a ideia de como
estas apresentações visuais de conhecimento não podem ser consideradas jamais
de forma inocente ou transparente, mas sim como objectos construídos e formados
por subjectividades enunciadas, no seio das quais se articulam relações de
poder e estruturações ideológicas, tudo o que “requer saltos significativos no
emolduramento cognitivo” (152). Uma leitura contrastiva com a teoria multimodal
de um Leeuwen e Kress seria bastante pertinente, mas uma das vantagens de
Drucker é que ela é menos determinista que os outros teóricos de semiótica
social, libertando as produções visuais de predeterminações linguísticas,
culturais e até mesmo políticas. Bem pelo contrário, a crítica desta autora
permite re-politizar a leitura destas
construções visuais: “Ler sempre foi uma performace de um texto ou obra,
sempre foi um refazer activo através de uma instanciação” (154). Aliás, a
autora informa-se com o trabalho famoso dos biólogos chilenos Francesco Varela e
Humberto Maturana, para sublinhar a maneira como “nenhuma experiência existe a
priori, o mundo e a sua leitura formam-se [come into being] numa relação codependente de affordances
[traduzível como “possibilidades de agir”, ou mais filosoficamente, através de
Kant, “condições de possibilidade”] (155).
Outro aspecto admirável
do livro de Drucker, e uma situação passível de se empregar o cliché de “lufada
de ar fresco” é a atitude da autora para com a “coisa digital”. Num momento em
que o aparente entusiasmo cego e celebratório sem visão histórica, contextual,
integradora e até mesmo sem distância crítica, informa a esmagadora maioria dos
defensores da “especificidade dos meios” do digital, Drucker traz um imenso caveat que revela a sua inteligência
cultural e analítica. Em vez de julgar um “texto” pela sua especificidade
material ou pelos traços inerentes e essencialistas do seu meio (o que não quer
dizer que não haja uma atenção analítica para com as especificidades formais,
mas tão-somente não as arvorar em essências intransponíveis e com valorização
em si mesmas), o valor (moral, estético ou intelectual, como diria Noël
Carroll) encontra-se alhures, sem lhe retirar os méritos próprios. Uma dimensão
possível é que a leitura de Drucker da realidade digital é menos de uma
autonomia e ultrapassagem específica do que encontrar pontos em comum com
outros meios (não-digitais), sobretudo no que diz respeito ao busílis de Graphesis, isto é, as funções e relações
entre apresentação e cognição. Os instrumentos materiais podem ser, ou são-no
de facto, distintos, mas as questões de apresentação,
representação, processamento, navegação,
orientação, referência e troca social – os termos que Drucker debate –
são comuns.
No que diz respeito à
banda desenhada e/ou ilustração, apesar desses não serem objectos de estudo
privilegiados ou imediatos no volume, o que se pode compreender é algo que
escapa somente à gravidade da produção (a vontade do(s) autor(es)) ou à
interpretação selvagem do(s) leitor(es), mas antes à combinação complexa,
cultural, mutante e tensional, entre aspectos formais e escolhas ideológicas. O
uso de determinado tipo de caricaturas, de esquemas cromáticos, de espessuras
mesmo de linhas e escolhas de importância da matéria verbal e a sua colocação
dinâmica (ou não) no espaço de composição, tudo isso ditará os afectos
implicados pela obra junto ao espectador-leitor. Isso corrigirá a ideia de que
existiriam “estilos universais” ou “simples de ler”, e a que há uma escolha
politizável e aderente a uma perspectiva do mundo desde logo presente no
estilo, levando inevitavelmente a uma apresentação do conhecimento enviesada e
informada.
Graphesis é, então, menos um instrumento de mera análise formal
visual do que uma defesa ideológica de discursos hegemónicos que se disfarçam
de “formas naturais” e “objectivas”. Ao se atender o facto de que a informação
é “graficamente constituída” e que essa apresentação visual implica “qualidades
expressivas”, valida-se acima de tudo a “natureza interpretativa do
conhecimento” (129).
Nota final:
agradecimentos à editora, pela oferta do livro. Com a excepção da capa, imagens retiradas da internet.
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