A atenção para com um outro tipo de
produção teórica que não necessária e exclusivamente focada na
banda desenhada é método fundamental para garantir não apenas a
saúde da produção de saber afecta a esta área artística, como
medida de controlo da qualidade desse mesmo pensamento. Afinal de
contas, e como temos repetido a propósito de outras esferas e
circunstâncias, se queremos pensar na banda desenhada como uma área
de produção e invenção artística, literária, cultural, ou
outra, tão digna como as demais, devemos compreender que ela é
cultivada no seio de um panorama bastante alargado e que deve ser
atento às múltiplas dimensões do pensamento humano. (Mais)
O autor apresenta duas formas de definir
textos, que têm informado esta área de estudos: por um lado, a
ideia de um objecto sujeito a meios de reprodução, por outro, como
algo que está enquadrado por vários paratextos, o que leva
necessariamente ao entendimento respectivo dos textos como produções
e como reproduções. No primeiro caso, cada edição
apresenta-se como um original, isto é, que em si conterá
características suficientes e significativas a serem vistas
por si, e não apenas como acesso transparente ao texto que lhe
subjaz, passando a equivaler texto a medial, o que
ocorre no segundo caso. Isto é o que permitirá Bredehoft a aliar a
cultura que criou os manuscritos da Alta Idade Média à da banda
desenhada, ao passo que a cultura tardo-medieval e depois a era da
impressão daria maior importância à manutenção de uma mesma
matriz textual, sob a lógica da reprodução. Esta ideia de “lógica”
informará as discussões em torno de opções textuais, opondo-se
“edição” a “cópia” e “fac-simile” (o qual,
parafraseando o autor, “não se lê mas se consulta”, 123), o que
permitirá uma discussão (acesa, seguramente) em torno das ideias,
já no campo da banda desenhada, do papel da dita “arte original”,
das edições em revista, pré-publicação e livro, etc. Para
Bredehoft, o grande busílis está na sua diferença em tratar a
banda desenhada não tanto como existindo um texto central, que
atravessa de modo transparente um meio determinado, mas focar-se na
negociação, tensão e criação permanente que os autores cumprem
entre “o texto” e todo o aparato da publicação (seja qual for),
criando assim uma produção localizada e “opaca”, que torna todo
e qualquer trabalho numa edição. É isso o que lhe permitirá
afirmar que, exemplificando com Chris Ware, Spiegelman, mas também
Watchmen e He Done Her Wrong, de Milt Gross (que se
poderiam considerar “suspeitos do costume” e não propriamente
território novo e interpelante da diversidade da banda desenhada),
duas edições (num sentido banal do termo) diferentes não são
“cópias” com diferenças de um mesmo texto, mas dois textos
diferentes, mesmo que a diferença esteja “enterrada”, como é o
caso de Ware, nos paratextos e notas de rodapé nas páginas em torno
daquilo que consideraríamos a “banda desenhada central”. Mas,
como o autor adverte, é uma questão ideológica que “hoje molda
os livros impressos [e, consequentemente] entender a variação como
um problema textual, um 'bug', em vez de uma característica”
(102).
Todavia, apresenta-se desde logo aí um
problema pragmático. Se não tomarmos essas variações como tal,
mas antes como edições distintas, isto é, textos que merecem uma
atenção idêntica, o que fazer em casos de variação
superficial-comercial como, por exemplo, as “capas variantes”? Se
seguirmos Bredehoft neste ponto, e não as considerarmos as “mesmas”
edições, isso poderia levar a um problema de análise. Pensando
num caso em concreto de inquirição e arquivismo, correr-se-ia o
risco de repetir o mesmo “texto” num determinado corpus,
duplicando se não mesmo multiplicando ao máximo o orçamento para
compras de uma série e/ou título individual. Em vez de
comprar somente um número de Spider-Verse # 1, apesar de
sabermos que fora vendido com x capas diferentes, comprar-se-iam x
exemplares do mesmo texto interior, impedindo talvez que se
utilizasse esse valor para compras diferenciadas. E estes problemas
pragmáticos colocam-se no dia a dia de projectos em curso. Mesmo
tendo em conta que o estudo das capas destes objectos, comerciais ou
não, são muitas vezes de extrema importância, já que as capas são
elementos paratextuais particularmente cruciais. Por outro lado, já
seria uma discussão de uma natureza totalmente diferente se existem
“capas variantes” para comic books e para graphic
novels, que parecem distanciar-se cada vez mais em determinados
discursos, mormente académicos. Na verdade, no segundo caso, capas
diferentes não seriam vistas como “variantes”, já que essa
palavra é empregue sobretudo para as revistas (comic books)
que são lançadas num mesmo dia, com o mesmo conteúdo físico, e
apenas uma diferente imagem na capa exterior – a qual pode ou não
ser significante para a história em si mesma, ou o projeto em que se
insere.
Esta posição de Bredehoft é algo
controversa, uma vez que está Bredehoft a evitar uma leitura de um
suposto Ur-texto da
banda desenhada, ontologicamente anterior à sua existência enquanto
objecto material, para se cingir, à la lógica benjaminiana, numa
obra reprodutível tecnicamente, “sem original”. É apenas “o
nosso hábito em os tornar em textos mesmo antes de começarmos o
trabalho de interpretação” que informa a atitude usual, a qual “é
mais uma questão de conveniência que exerce alguma violência à
sua materialidade original” (47), que é como que descartada em
nome de um suposto cerne interpretável, e à margem dessa
concretude.
Por
uma razão de conveniência e conhecimento, não abordaremos
naturalmente as discussões do autor em torno de manuscritos
medievais, as relações entre textos medievais britânicos e
emblemas, a segunda edição impressa por Caxton dos Canterbury
Tales,
ou o Folio
de Shakespeare e a edição, “born-printed”, como diz tão
elegantemente Bredehoft, de Leaves
of Grass
impressa pelo próprio Whitman. A sua leitura tridimensional do texto
presente no chamado “Franks Casket” é magnífica, mas não
conhecemos os contornos à sua problemática. Apaixonantes, complexas
e demonstradoras da forma como o autor esgrime conhecimentos de todo
um tecido sócio-cultural contemporâneo que demonstra como “ler o
texto” não é suficiente (lição para que, de resto, já Steiner
alertara há muito), suspendemos a atenção para pensar na banda
desenhada.
Para Bredehoft, a lógica que opera
sobre a banda desenhada é a da justaposição, que ele
contrasta com a da acumulação ou agregação, própria
do álbum ou scrapbook, na acepção inglesa de espaço em que
se coleccionam imagens díspares (v. 135). Nesse sentido, segue o
sentido gramatical desses vocábulos, em que na primeira se preserva
a integridade dos dois termos originais, e na segunda se subordinam
alguns elementos, transformados. Mas o ponto mais importante da sua
discussão tem a ver com as opções de materialidade, que ele
sublinha de forma vincada: “... a materialidade radical da
textualidade da banda desenhada” (149). “A configuração única
das ideias e conceitos que associam o trabalho da banda desenhada aos
processos e ideologia de reprodução age de modo bastante contrário
ao funcionamento ideológico dos facsímiles, que associam a
autenticidade com uma versão anterior ou importante (e visível, ou
visivelmente reprodutível) de um texto” (137). A consequência é,
portanto, a de que “uma banda desenhada reproduzida é, em si
mesma, o resultado de um acto de produção de banda desenhada”
(138).
Parece ser esse o ponto principal que
leva o autor a considerar que não seria possível fazer uma edição
crítica, tal como ela é entendida noutros contextos textuais,
nomeadamente o literário, no campo da banda desenhada. Neste ponto,
gostaríamos de remeter o leitor interessado aos textos em que
tecemos as possibilidades várias que se oferecem nessa direcção, a
propósito de The From Hell Companion, MetaMaus e The Daniel Clowes Reader. Para Bredehoft, isso dever-se-á sobretudo
à dimensão visual: “[c]ertamente que os componentes
não-linguísticos e desenhados de uma obra de banda desenhada
manter-se-ão incompatíveis com uma versão 'correcta' projectada
[imaged] ou ideal da sua realidade desenhada” (141). Mas
qual é a razão que leva o autor a fazer uma tal afirmação?
Sobretudo sem apresentar mais exemplos concretos para além de uma
página de Gross, quer de tentativas de “aproximação” a esse
ideal ou mesmo experiências “falhadas”, sob a sua perspectiva ou
outra. Compreende-se perfeitamente o que Bredehoft deseja sublinhar:
a banda desenhada em si “não existe” antes
da sua reprodução, isto é, nos desenhos originais, por mais
que estes se aparentem com a forma final publicada (o que era o caso
clássico da reprodução histórica, mas hoje se torna complicado já
que mesmo os autores que ainda desenham com tinta sobre papel podem
optar por colorir, colocar as artes-finais e correcções, ou
legendar no computador, etc.). A impressão é o momento simultâneo
da produção e reprodução; estas coincidem. “É a
impressão [It is print] que nos incita a ver o livro impresso
e os materiais preliminares como que reflectindo um texto ideal; mais
uma vez, porém, a banda desenhada é real, e não existe nenhuma
forma ideal subjacente” (141). Por outras palavras, é apenas por
impressão retrospectiva, depois do facto, com a banda
desenhada/objecto impresso, que pensamos nos outros materiais como a
banda desenhada por vir. Mas esta distinção não é jamais
pacífica, sobretudo quando estamos a falar em círculos de exposição
galerística, decisões editoriais, manipulação para impressão,
etc.: há decisões tomadas sobre os materiais preliminares que fazem
agir, desde logo, decisões que tomam esse “texto ideal”, mesmo
que projectado no futuro... Qual é o objectivo de mostrar esses
materiais, se não é o “texto”? Que se está a operar sobre
o texto antes dele existir?
Esta atitude abre ainda mais alguns
paradoxos, que são informados em parte pelo facto de os exemplos
principais de Bredehoft nascerem de um círculo de trabalhos
mono-autorais, já para não dizer de “banda desenhada de autor”.
Isto é, seguindo aquela esteira dos títulos usuais e afunilando a
diversidade num só circuito, sem sequer prestar atenção a
modalidades da banda desenhada que, sendo mais “banais”,
“usuais”, “comerciais” ou outros termos, preenchem mais
a sua realidade material e social.
A leitura de Bredehoft não pode servir
a uma simples direcção de “com ele concordar” ou “discordar”,
mas antes tentar compreender como estas duas lógicas textuais, que
se estabelecem como as grandes tensões, ou pólos, que informam a
história da textualidade – pelo menos, no interior da narrativa
que o autor tece neste pequeno volume – podem informar duas (ou
mais) formas de ler e ver a banda desenhada, passando a compreender
os contornos das possibilidades do seu trabalho e exploração
material e textual (que é uma e a mesma coisa). Como pensamos ter já
confessado noutra ocasião, a ideia original de baptizar este espaço
era a de utilizar uma letra que tanto valesse de “v” e “l”
para criar um novo verbo. Uma ideia que não medrou, mas traduzia o
desejo de fundir estas acções que The Visible Text. Textual Production and Reproduction from Beowulf to Maus. também
deseja atingir.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro; exceptuando a capa, imagens colhidas na internet.
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