Na esteira do
trabalho do próprio historiador David Kunzle, que abriu as condições para uma
verdadeira investigação do objecto da banda desenhada sob a perspectiva
disciplinar e rigorosa da história, como quase ninguém antes dele, e muitos
poucos depois dele (não sem a possibilidade de perspectivas críticas sobre esse
mesmo trabalho, claro), eis que surge mais um desses objectos incontornáveis na
construção de um complexo, matizado e ainda por definir edifício. (Mais)
A idealização de
Gustave Doré não é, de forma alguma, exagerada. O seu papel como ilustrador, de
pena leve e veloz, a sua produção, hercúlea e espraiada, a sua capacidade de
visualização, tanto de movimentos épicos e monumentais como das mais esquálidas
esquinas das urbes, mas também os mitemas que se lhe agregaram, e as suas frustrações,
foram moldando a sua imagem. Philippe Kaenel, por exemplo, importante
historiador desta área larga que é a da criação de imagens afectas ao desenho
narrativo (termo algo redutor, mas aceitemo-lo heuristicamente), assinala o
nome de Doré, juntamente com o de Töpffer e de Grandville numa sua obra
fundamental: Le métier d’illustrateur.
Todavia, e se bem
que todos os leitores da grande Histoire pittoresque,
dramatique et caricaturale de la sainte Russie inscrevam imediata e
indelevelmente Doré nos anais dos grandes percursores da banda desenhada
moderna, e para mais de um inventabilidade gráfica incontornável, a verdade é
que eram poucos os gestos de “recuperação da memória” da sua obra
quadrinística, de modo sustentado, contextualizado e organizado. Ei-la.
Na década de 1980, a Pierre Horay
tentou reunir alguns títulos de autores do século XIX, a própria História da
Rússia tem algumas edições em francês e inglês algo acessíveis, mas não os
outros álbuns de Doré, nem sequer em edições “pirata”, e muito menos as
histórias mais pequenas, que jamais tinham sido restituídas sequer em estudos
e/ou as muitas biografias existentes de Doré desde o final do século XIX. Os títulos do autor francês reunidos aqui são os
seguintes (empregamos ponto e vírgula para se compreenderem as divisões): Les Travaux d'Hercule; Le Communisme en tableau; Le vie en province, histoire d'une
invitation à la campagne; L'Homme aux
Cent Mille Écus; Trois Artistes
Incompris et Mécontents; Voyage en
Allemagne/Voyage sur le Rhin; Les
Trains de Plaisir de Môsieu Godard;
Les Dés-Agréments d'un Voyage d'Agrément;
Une Ascension au Mont Blanc; Vacances du Collégien; Une Heureuse Vocation; e La Conscription.
Alguns destes trabalhos são extremamente
curtos, e como dissemos, não eram sequer mencionados pelo título há muito, como
La Conscription, por exemplo, a
última inclusão neste volume, que consiste em somente duas páginas de quatro
vinhetas cada. Com a excepção dos álbuns, naturalmente, são todos os trabalhos
curtos do Journal pour Rire. Quando
aos álbuns são, a saber, Hercule
(1847), Trois Artistes (1850), Dés-Agréments (1851). Apenas falta então
Histoire de la Sainte Russie (de
1854), uma vez que existem as tais traduções mais ou menos acessíveis, ao
contrário do material reunido neste novo volume.
Hercule é, claro está, a entrada apoteótica do
autor na “cena” da altura. Doré tinha apenas 15 ou 16 anos, e a própria forma
como ele conquistou o seu espaço na casa Aubert parece anedótica e fantástica,
mas foi garante da construção da sua fama de desenhador exímio, rápido,
flexível, sarcástico e genial (no sentido de personalidade vincada). Hercule é ainda extremamente devedor à
“fórmula Töpffer” (Kunzle tem um capítulo específico sobre isso no seu livro History of the Comic Strip), em que o
próprio formato do livro, a disposição das imagens, a relação entre texto e
imagem, e até a matéria narrativa e o desejo em criar uma moralidade explícita
que é automaticamente derrotada pelo humor efectivo da obra são sinais herdados
da sequência dos livros de grande influência do autor suíço. No entanto, é logo
nas peças curtas para o Journal pour Rire
que começarão a surgir soluções gráficas inusitadas, e até anti-narrativas, se
nos é permitido dizer, que vão mostrando a inventabilidade visual, comunicativa
e criativa de Doré, e que alimentarão aquilo que Smolderen viria a chamar de
heterogeneidade gráfica no seu livro Naissances de la Bande Dessinée. Muitas das sequências são interrompidas por vinhetas
que mostram um objecto isolado, menos para “mostrar um pormenor”, isto é,
imaginando-se um eixo de representação, do que uma interrupção ontológica no
ritmo da história e no nível diegético. Esta heterogenia vai explodir, claro
está, na sua grande obra, a História da
Rússia, cujos mecanismos chegariam a ser imitados por Bordallo Pinheiro no
seu próprio álbum do Imperador do Rsasilb
(conforme um brevíssimo artigo da nossa autoria no primeiro jornal da Oficina
do Cego).
David Kunzle, naturalmente, dá aqui
continuidade ao trabalho que iniciara nos anos 1970, em torno dos grandes
percursores da banda desenhada do século XVIII e XIX, sempre informado pelos
seus grandes princípios organizadores, isto é, um entendimento de que a banda
desenhada se trata de uma linguagem ou disciplina artística de presença num
meio de comunicação social de grande reprodução, que transmite narrativas de
cariz moral, e que se reveste de elementos tópicos e relativamente
humorísticos. Se é isso o que sublinha as grandes características fortes do seu
trabalho – uma atenção rigorosa para com informações afectas à história de um
meio e tecnologia de impressão, a contextualização político-social histórica,
um entendimento materialista-marxista do papel da banda desenhada na cultura da
época – são eles também que podem trazer alguns escolhos, como indicámos logo
ao início. Thierry Smolderen, por exemplo, é extremamente crítico de alguns dos
posicionamentos de Kunzle (e de outros investigadores e/ou escritores, acusação
a que, possivelmente, não escaparíamos), que é a de olhar para o passado com as
categorias do presente, isto é, em vez de considerar parte da produção gráfica
da época como porosa, fluida, transdisciplinar, procuram-se somente os objectos
e/ou textos que correspondem às categorias criadas ou correntes nos nossos
dias. Por hipótese, pranchas que apresentem divisões alinhadas num eixo
narrativo, composições organizadas subsumidas a uma ideia de representação
temática, imagens múltiplas, algum grau de coerência gráfica (“manutenção do
estilo”, dir-se-ia), etc. Ora, olhando para a colecção disponibilizada por Kunzle
neste volume, surgiria a pergunta se não existiriam outros materiais passíveis
de serem colectados sob a mesma óptica que a conduz? Não estamos, naturalmente,
a referir-nos às ilustrações literárias que Doré criou (para textos de
Rabelais, Dante, Cervantes, Tennyson, fábulas e a Bíblia, etc.) mas desenhos
humorísticos, caricaturas, cartoons
isolados, etc. que ainda poderiam fazer
parte da produção quadrinística, narrativa até, de Doré. Em que medida
haveria alguma “diferença” no gesto criativo, de desenho gráfico, de pesquisa
da heterogenia apontada por Smolderen (leia-se o seu fundamental “A Chapter on
Methodology”, acessível singularmente)? Provavelmente, pouca.
Seja como for, como seria de esperar, Kunzle
apresenta um breve ensaio de introdução, que vem reforçar as traduções das
obras em si, as quais são complementadas com uma mão-cheia de notas que ajudam
a compreender algumas referências e contextos. Esse ensaio ilumina várias
dimensões, desde a relação entre a caricatura e o romance, ou o romance
serializado, o papel crucial de toda a imprensa da época, ilustrada, literária
ou os seus cruzamentos, e até aspectos que têm a ver com o domínio da política,
como por exemplo a forma extremamente curiosa como Kunzle coordena leituras de Un Autre Monde, de Grandville, Max und Moritz, de Busch e a obra de
Doré em relação à noção da “mobilidade social” e as posições relativamente
conservadoras (ou muito conservadoras, dependendo talvez, da própria leitura)
do autor francês. Esse texto também ajuda a ver,
de forma mais clara, uma certa curva de transformações internas no estilo e
desenho de Doré, que parte de um caricaturismo exagerado, para uma abordagem
mais contida, clássica, literária, se desejarem.
A reprodução das imagens em si, e o arranjo
gráfico das mesmas, infelizmente, não é das melhores em nenhum aspecto. As
imagens são pequenas, e por vezes “sujas”, como se se tratassem de reproduções
de reproduções (micro-filmes, fotocópias?; isso não é tornando explícito). O
texto francês não é apagado, e ainda bem, mas é de leitura difícil (pelo menos,
para míopes, como nós). O arranjo gráfico, dizíamos, dispõe pranchas
horizontais em páginas verticais – bem diferente do que víramos na obra de
Kunzle dedicada às histoires en estampes
de Rodolphe Töpffer, The Complete Comic
Strips –, criando espaços e margens que menos do que generosas são
deselegantes, sobretudo pois as tiras das obras “menores” têm distribuições e
extensões distintas, e que aparecem nestas páginas de forma desarrumada. Travaux d'Hercule é a única que parece
melhor apresentada, onde apenas a linha negra fica destacada do fundo branco,
mas tememos que alguns dos pormenores tenham sido “carcomidos” pela
digitalização e, mais uma vez, a disposição de duas pranchas/páginas originais
por página neste volume leva a que a leitura seja deselegante e pouco feliz (o
texto original é particularmente difícil de se ler).
Isto leva a sonhar com uma re-edição, ou
uma edição em francês mais cuidada, mas por enquanto, este volume é obrigatório
– e sê-lo-á pela contextualização de Kunzle – para ler Doré outra vez, pela
primeira vez.
Nota final: agradecimentos à editora, pela
oferta do livro.
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