Qual
a genealogia de um projecto desta natureza? Quando a banda desenhada
é discutida nos nossos dias como um género de literatura – um
erro de palmatória em termos de categorização, mas mais grave
ainda em termos de construção de territórios próprios -, a
característica que mais se salienta é aquela que a aproximará
precisamente à da literatura, a saber, a da sua literariedade.
Mas a atenção para com a “coisa literária” – fabricação
das personagens, psicologização da intriga, estruturação
crono-espacial, a capacidade dos eventos revestirem-se de valores
metafóricos ou metonímicos, as impressões emocionais, etc. –
leva muitas vezes a que se diminua a possibilidade da exploração a
nível artístico: formal, plástico, cromático, material,
espacial-direccional, específico ao sítio, mediático, processual… (Mais) [atenção: imagem pornográfica adiante]
No
entanto, existe uma tradição dessa exploração na banda desenhada.
Thierry Smolderen tem insistido, e com razão, para que se tenha uma
atenção particular para com a primeira fase da banda desenhada
moderna, a partir do segundo quartel do século XIX, informada pela
heterogenia gráfica explorada pelos cultores dessa área. Mas após
a consolidação histórica desta “linguagem” numa mão-cheia de
géneros determinados e até mesmo um espaço predeterminado de
expressão – por um lado, as narrativas infanto-juvenis, por outro,
uma caricatura social domesticada -, ou melhor, necessariamente pela
confirmação desse “espaço próprio”, é que poderiam surgir
diferenças de processo, que pudessem ser vistas como alternativas,
experimentais ou artísticas. É nessa linha que surgem alguns
underground
comix,
sobretudo de cariz psicadélico, é assim que Yoshiharu Tsuge se
distingue mesmo dos seus colegas gekigá
com o seu estilo “screwball”, e é em destaque sobre uma relativa
ideia de narratividade que o trabalho de Martin Vaughn-James, dos
Bazooka, de alguns dos artistas agregados na Raw
de Spiegelman e Mouly, se sublinham. Essa é a outra
tradição
da banda desenhada que daria origem a muitos dos autores que se têm
vindo a publicar em títulos (“especializados” ou não) tais como
Blab!,
Kramer’s
Ergot,
The
Drama,
Ganzfeld,
Lagon
Revue,
pela plataforma Le Dernier Cri, pela editora Fréon, ou pelo
descritivo “art comics”.
Mould
Map
é um projecto editorial que se constitui precisamente como um gesto
nesse sentido. Cada um dos objectos é uma colecção única, que
procura os seus próprios instrumentos gráficos, formais, materiais.
Menos do que uma antologia de certos autores – que podemos ou não
conhecer e seguir, o que é o caso -, Mould
Map
parece ser uma oportunidade de colocar estes trabalhos em relações
novas, de forma a multiplicar o processo de expressão permitido pelo
encontro colectivo.
Vamos
encontrar alguns favoritos, como C.F., Aidan Koch, Lala Albert, Simon
Hanselmann, Yuchi Yokoyama, James Jarvis, Blaise Larmee, Johnny
Negron, Sammy Harkham, Olivier Schrauwen, mas também somos aqui
apresentados a outros autores que não conhecíamos e que nos
fascinam de imediato, desde as intensas fantasias pornográficas de
Dmitry Sergeev [aqui ao lado], ao mangá alucinado de Julien Ceccaldi, ao ambiente
pós-Akira de Joseph P. Kelly [imagem depois da capa da publicação, acima], enquanto que alguns outros
autores contribuem com história curtas que recordam aquela tendência
que discutimos a propósito de Prophet e a obra de Simon Roy:
Lando, Karn Piana, Sammy Harkham, Viktor Hachmang e GHXYK2.
Mould
Map contém ainda intervenções textuais, ensaios fotográficos
e composições gráficas abertas a interpretações disciplinares
complexas. Há o que parece ser um ensaio sobre arquitectura no Rio de Janeiro e outro sobre a arte na era do pós-digital, mas não da forma como poderiam suspeitar. Mesmo as imagens isoladas, sejam ilustração, composições digitais, fotografias ou tudo pelo meio, reflectem de uma forma ou outra esse posicionamento do humano no mundo maior, entendido como "Natureza", "Espaço" ou "Mediasfera".
Existem
– ou será esta uma imposição nossa? - alguns temas que se
coalescem numa direcção coerente: a relação entre os humanos e a
arquitectura, a tecnologia (fala-se aqui de teleportação, splicing
genético, câmaras de criogenização, níveis ocultos da internet),
os rituais de transformação do corpo numa qualquer imagem ideal,
seja esta informada pela pornografia, publicidade, desporto, ou mesmo
ideais religiosos (sendo o satanismo um desses ideais), e “gender
confusion”, com a sua bateria de problemas psicológicos. Há
também histórias e materiais que se revestem de características
comuns: um certo fascínio pelo conflito físico, o niilismo, a
destruição, mas também a forma como todas essas acções conduzem
a uma compreensão, nem que seja (ironicamente) momentânea, sobre a
fugacidade da existência humana, o que tem por consequência a
apreciação de um pormenor mundano: um vaso partido, uma relação
acabada, o espaço fantasmático que é criado por uma ausência.
Esta
coerência poderá ser uma ilusão, mas também poderá ser fruto da
precisa direcção de arte de Hugh Frost e Leon Sadler, já que, como
reza no site da publicação, “[o] novo trabalho é produzido para
cada novo livro em resposta a um texto e uma colecção de imagens
que actuam como direcção de arte”.
E
essas respostas são extremamente curiosas. Limitando-nos às peças mais "narrativas", O. Schrauwen, por exemplo,
cria uma hilariante parábola da necessidade de comunicação dos
seres humanos e as rápidas frustações que se atingem se não se
cumprem os objectivos mesmo das fantasias. Stefan Sadler e Jon
Chandler mostram-nos uma personagem patética que se isola da pior
forma por um simples ataque de ciúmes e despeito, mostrando que
pouco importa o avanço da tecnologia face à intrínseca mesquinhez
humana. Simon Hanselmann, abandonando o território fantasiasta de Megg, Mogg & Owl, coloca-nas nas mãos, possivelmente, um episódio
autobiográfico, a um só tempo libertador e melancólico.
Materialmente,
a publicação é um imenso luxo (a palavra é empregue pelos
editores), com mais de duzentas páginas coladas directamente na
espinha, permitindo variedade de formatos, gramagem e consistência
de papel, existindo mesmo cadernos de folhas prateadas. Em termos
cromáticos, estamos em crer que para além da quadricromia usual do
offset, há uma intervenção de uma quinta cor, o que ajudaria a
explicar os tons metálicos prístinos, e o brilho das cores
assombroso [fomos informados que são tintas fluorescentes], dando a
Mould Map uma qualidade próxima do glamour de revistas
de moda high end (comparação que não é de todo estranha,
se considerarmos igualmente as “interrupções” das partes mais
narrativas/figurativas com composições que nos poderiam fazer
pensar em anúncios de cosmética daqui a 20 anos). Os valores de
produção são, portanto, altos, o que justifica os seus elevados
preço e procura, levando a que se esgotem rapidamente.
O
título é intrigante, e estamos em crer que aquele “mould” tem
menos a ver com um molde, uma qualquer estrutura de fabrico
que conduz à produção massiva de objectos idênticos, mas antes ao
bolor, cujo crescimento por filamentos pode obedecer aos mais
variados factores externos, levando à impossibilidade de prever um
padrão fechado, mas a alastramentos e contaminações inesperadas. A
conjunção de todos estes factores leva, no interior do livro, a um
objecto inusual e magnífico. Em termos conceptuais, possivelmente, a
consequências mais livres.
Nota
final: agradecimentos a Hugo Almeida, pelo empréstimo do seu
exemplar. Indicamos ainda, a título informativo, que os editores, britânicos, estarão em Portugal na Feira Pangeia, dias 10 e 11 de Outubro, com o 4º número.
6 comentários:
Pedro, não tenho a certeza que "art comics" ainda seja uma designação útil. Lendo textos anteriores, percebo o que queres dizer, pois reporta ao conjunto de artistas que anda de liana em liana nas publicações que bem soubeste identificar. Contudo, que nos diz a expressão? Fala-nos do posicionamento de mercado das publicações? Certamente que sim, pois em larga medida elas são dirigidas a "art fairs" e uma audiência de nicho, mas não creio que esta publicação, tal com outras que referiste sob a mesma expressão, possa recair como "art".
Sabemos bem que a banda desenhada é uma arte, independentemente dos objectivos dos autores, portanto, pelo menos a nível a pujança, do fenómeno que pretende descrever, a expressão é limitada. Acredito que qualquer um dos artistas que mencionas faz bd, quer apareça na galeria ou no poster do autocarro. "Art comics", talvez por oposição aos "indie comics", onde o objectivo passa por criar uma demarcação face ao "mainstream", quando tipos como o CF ou a Lala Albert sabem que seu o potencial "mainstream" nunca será a Image, mas sim a audiência da New Yorker. Mas isso diz-nos mais sobre a natureza actual do "mainstream" do que sobre um "art comic".
Olá, João. Obrigado pelo teu comentário, mas reporto-te à introdução que fiz precisamente quando discuti outros tantos trabalhos desta natureza, aqui: http://lerbd.blogspot.pt/2013/10/art-comics.html
A expressão é tão problemática como "graphic novel" e, por essa razão de ideias, de "underground comix", "alternative", "indie" e até "mainstream".
Espero que no texto que indico seja claro no que pretendo assinalar ao usar essa expressão quase já consolidada, e que vai ao encontro precisamente do que dizes.
Dito isto, não me importa nada de regressar ao tema.
Abraços,
pedro
"Mas a atenção para com a “coisa literária” – fabricação das personagens, psicologização da intriga, estruturação crono-espacial, a capacidade dos eventos revestirem-se de valores metafóricos ou metonímicos, as impressões emocionais, etc. – leva muitas vezes a que se diminua a possibilidade da exploração a nível artístico: formal, plástico, cromático, material, espacial-direccional, específico ao sítio, mediático, processual…"
Sabemos como todas as categorizações são problemáticas, mas a tua demarcação acima é-o especialmente. Isto porque nada do que descreves na primeira parte é alheio à visualidade e quase nada do que descreves na segunda parte é alheio ao literário propriamente dito. O problema é que por detrás da tua afirmação está uma visão modernista essencialista (Greenbergiana, sem dúvida, mas podemos ir ainda mais atrás, até à segunda metade do século XIX) que já há muito deveria ter desapareciso.
Olá, Domingos.
Si, tens razão, estou a fazer uma divisão demasiado clara e essencialista, mas dar-me-ás o benefício da dúvida, espero, e o jogo de cintura, de não poder estar sempre a esmiuçar a cada passo argumentações passadas e, poder, de quando em vez, ser mais impressionista e sumário, mesmo correndo o perigo da imprecisão. Penso que textos passados deixam sempre claro que nenhuma destas afirmações vai para além do valor heurístico do momento, e que as dicotomias aparentes serve sempre como forma de avançar, abertas à sua própria construção.
Sim, claro, pode-se sempre "partir do princípio" como forma utilitária de proceder. Não há mal nenhum nisso desde que sejamos críticos, ou seja, desde que tenhamos um distanciamento em relação aos processos. Ser crítico é estar constantemente "de fora" embora saibamos que isso é completamente impossível (Derrida tanto diria que todas as dicotomias são falsas como que da linguagem não se sai). Não sou um "Derridadiano" radical (até porque não percebo 90 % do que ele escreveu :) e por isso acredito que todos somos subjectivos, mas alguns são mais subjectivos do que outros.
Sem dúvida alguma, e em Portugal, se me é permitido, é contigo com quem sempre tenho aprendido a procurar essa perspectiva de lonjura crítica. Porém, tendo como vontade ir escrevendo sobre os mais diversos objectos - e não apenas a "nata" ou, por outro lado, "as novidades em Portugal" - é natural que, de quando em vez, escorregue para formas mais impressionistas e menos exactas. Mas ainda bem que temos leitores também eles críticos! Mas quanto às dicotomias, só há dois tipos de pessoas: os parvos que acreditam nelas, e os outros. :) 'Nuff said?
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