Se,
quando lemos um livro, estaremos necessariamente a criar elos entre
ele e muitos outros lidos anteriormente, ou que prometemos vir a ler,
como muito bem indica Christian Rosset na sua crítica a este mesmo
título, em du9, elos propostos pela coincidência de um autor, de um
tema, de um estilo, de uma editora, de uma referência ou uma
qualquer idiossincracia do leitor, o que sucede quando percebemos,
logo à partida, que este livro vem desdobrar elementos diegéticos
que provêm de um livro anterior? (Mais)
École
de la misère
tem como protagonista Claire, uma mulher francesa, o seu marido
africano Alain, e o pai de Claire. Estas personagens já haviam
surgido no livro antigo de Alagbé, Nègres
jaunes.
A
vida deste texto é algo atabalhoada, e nasceu no seio de uma
“revolução” no seio da banda desenhada francesa e belga, num
grupo mais ou menos organizado que viria a ser conhecido como
Autarcix Comix, e que reuniu os esforços de plataformas como a
L'Association, ego comme x, assim como a Fréon e a Amok, que se
reuniria na Frémok (entretanto transformada de novo, ainda que
mantenha o nome). Alagbé, juntamente com o seu colega de
universidade (em física) Olivier Marboeuf, fundou a editora francesa
Amok no início dos anos 1990, e a primeira versão de Négres
jaunes foi
serializada entre os números 3 e 5 da revista trimestral dessa
editora, Le
cheval sans tête
(de que Alagbé era também o director),
entre Outubro de 1994 a Maio de 1995. Para a sua edição em formato
de álbum, em 1995 (colecção Feu!), Alagbé acabaria por alterar
radicalmente as pranchas em termos visuais e não só,
considerando-se essa a sua versão final. Por exemplo, os episódios
originais tinham, respectivamente, 16, 16 e 18 páginas, mas a versão
final tem apenas 47 páginas. Em 2000 foi publicada novamente (na
colecção Octave) e em 2012 teve uma outra, aumentada com outras
histórias curtas, algumas das quais inédita. Esta nova versão foi
re-intitulada Nègres
jaunes et autres créatures imaginaires.
Uma tradução portuguesa, “Pretos Amarelos”, foi trazida a lume
por João Paulo Cotrim na efémera mas soberba revista Papéis
97
(Cotovia: Lisboa 1996).
École
de la misère
institui uma intriga mais “doméstica”, por assim dizer. Ao
contrário de Nègres
jaunes,
não se constrói aqui uma rede social entre pessoas de várias
proveniências étnicas, cada qual com associações muito
específicas à política e história colonial francesa e as suas
consequências sociais contemporâneas. Recordemos que nesse outro
livro existia uma formação complexa com a francesa e branca Claire,
o jovem negro e sans
papiers do
Benim Alain, a família deste, e ainda Mario, um veterano argelino
orgulhoso de ter servido a França. O círculo em École
é mais reduzido, já que acompanhamos Claire numa visita à casa da
família por ocasião da morte e funeral dos avós paternos, o que a
obriga a deparar-se precisamente com o pai – de quem se afastara
violentamente pelo racismo dele e por Claire se ter casado com Alain,
por amor, apesar da questão do acesso à cidadania francesa ser um
ponto de rutura ou discussão mesmo entre o casal (Alain é nobre e
recusa-se a casar por essa razão, mas depois é preso por ser
apanhado sem bilhete de metro). Essa visita levará Claire a
rememorar toda uma série de episódios, mais ou menos organizados
anti-cronologicamente: os seus encontros amorosos com Alain, a
captura deste no metro (cena que se repete do livro anterior), a
discussão com o pai por este pensar que ela tem um namorado negro
(idem), o casamento, e sucessivos episódios da sua infância e a
relação com o pai, que vão surgindo ora por ela se passear nos
espaços que o espoletam (mecanismo relativamente comum da memória,
de Proust a Choc),
por encontrar os intervenientes, por olhar uma fotografia, etc. As
“cenas” repetidas do livro anterior são desenhadas de novo, mas
parte dos enquadramentos, as posições dos corpos, os diálogos, são
idênticos, o que nos faz, ao ler aqui pela
primeira vez,
estar a reler
algo do livro anterior.
É óbvio, porém, que temos aqui uma
narrativa diferente, e é discutível se é necessário, até mesmo
obrigatório, ler o livro anterior. Talvez não. Mas tendo-o lido, é
inevitável encontrar aqui uma expansão e diferenciação dessa
outra história, mesmo que se compreenda serem livros independentes,
algo que ocorre também em relação a, por exemplo, Souvenirs
d'une journée parfaite e Faire semblant est mentir de
Dominique Goblet, ou a obra de Justin Green ou de Edmond Baudoin. O
que é bem diverso de, por outro lado, La Guerre d'Alan
e L'enfance d'Alan
de Emmanuel Guibert, ou a trilogia L'Oud
de Farid Boudjelall, ou L'ascension
du haut mal
de David B., títulos progressivamente constituindo unidades mais
coesas.
Em
vários momentos Alagbé revela ser um homem espiritual, ou pelo
menos alguém com uma compreensão da existência humana como numa
qualquer relação com o transcendente. Isso não torna propriamente
as suas obras em textos “religiosos”, mesmo que haja sem dúvida
uma tentativa de conexão entre essas duas hipotéticas esferas
ontológicas. As conexões, porém, não são feitas de uma forma
dogmática, segundo princípios estabelecidos por hierarquias
institucionais, mas algo mais imanente ao ser humano: acima de tudo,
ou melhor dizendo, na base de tudo, o corpo humano. Num outro texto,
a ser publicado pela plataforma Buala, abordamos a obra imediatamente
anterior e base desta presente, Nègres
jaunes et autres créatures imaginaires.
O foco em que abordamos esse título é precisamente o dos corpos,
mas não é menos verdadeiro que eles ganham novos contornos,
literalmente, em École
de la misère.
Claire,
à medida que vai contactando os seus familiares ou os espaços da
infância, é como que “assaltada” por imagens “imaginárias”:
algumas pertencem a fotografias (às quais voltaremos), outras a
memórias de infância, outras às memórias associadas ao seu
encontro com Alain, sobretudo sexual. São variadíssimas as imagens
em que encontramos imagens do casal a abraçar-se, a fazer amor,
algumas cenas mesmo podendo ser consideradas pornográficas. No
entanto, o objectivo dessas cenas não é titilar o leitor, mas abrir
os corpos a uma nudez votiva,
se assim se pode dizer. A palavra “nu”, em português, tem origem
no lati nudus,
que significa “sem vestes” ou “desprovido de (qualquer coisa)”.
Michela Marzano, em La
pornographie ou l'épuisement du désir,
escreve que, para além da usual distinção entre erotismo e
pornografia residir na escolha da representação explícita de actos
sexuais, se prende a uma forma de apresentar os corpos nus. Uma
representação “obscena” destes é vista como “sem mistério”,
em relação a uma nudez que “abre ao olhar voyeur
[que pode ter tanto o valor neutro de 'observador' como o mais denso
da pulsão escópica] a possibilidade de captar um corpo desprovido
de toda a protecção”. Num “estado de fragilidade”, acrescenta
a autora numa nota. Na verdade, o obsceno “apaga” a nudez para
revelar partes de corpos, funcionais, com finalidades fora deles
mesmos, e é essa a razão pela qual a autora, e nós seguimo-la, de
entender como mais obscenos certos empregos na publicidade, na ficção
cinematográfica ou da banda desenhada dita “comercial”, do que
propriamente em formas congéneres às de Alagbé neste livro. As
cenas de nudez, de actos sexuais, do parto, de Claire servem como
forma de ir revelando e expondo a fragilidade psicológica da
protagonista, tornando-a uma superfície sensível à rememoração
de uma cena traumática e, necessariamente, a uma hipótese de fuga
dessa cena “primordial”.
Pois
sem querer revelar demasiado, Claire rememora – e nós, leitores do
texto anterior, “descobrimos” esta nova dimensão, chocante,
traumática, impossível de compreender, violenta – algo que
ocorreu na sua infância, e que torna a sua relação com o pai, e a
própria infância, ainda mais dolorosa. É muito problemática
qualquer decisão que possamos aqui tomar em relação à maneira
como o autor revela este “facto” (sendo objectos de ficção, a
verdade é que em parte estas personagens bebem das experiências
reais e vividas por Alagbé); talvez haja um melodrama desnecessário,
um aproveitamento de certos mecanismos de choque na organização
textual, um abismo quase abusivo, mas como abordar estes temas senão
da forma mais disruptiva possível? Como enfrentar o choque sem
derrubar uma elegância formal ou narrativa que apenas existe na
mente de um desejo normalizador, burguês e bem-pensante? As
condições de análise e “fruição”s se nos atrevemos a
dizê-lo, deste texto, serão morosas...
Nada
nos impede de, desapaixonadamente, quem sabe, abordar a dimensão
formal. E se Alagbé é um cultor de uma abordagem pictural que
mostra uma conjunção entre corpo e expressão, bem distinta das
ferramentas gráficas da banda desenhada de entretenimento, não há
um abandono total de certas estruturas de clareza figurativa e
narrativa. Há uma materalidade de cada desenho – as vinhetas são
enormes, duas por página, e mostram todo o comportamento das
aguadas, a rugosidade regular do papel, as manchas de tinta e as
fronteiras com o branco imaculado, um uso nervoso de linhas para
desenhar contornos e rostos, pequenas decisões para garantir um
espaço, etc. - que ultrapassa a ideia de representação para
existir como superfície, traço, mancha, cor – cinzentos e negros
- e ausência dela. Uma assunção do preto-e-branco que vai além de
questões técnicas para levantar questões quase de um modo
brutalmente simplista sobre as tensões raciais, os tabus diluídos,
o amor do casal, as limitações conceptuais das personagens
antagónicas.
Tendo
esta estrutura de duas imagens por página, todas de um tamanho
constante (salvo raras excepções de imagens que ocupam ainda mais
espaço), o “protocolo de leitura” não terá porém um ritmo
idêntico, já que, mesmo sem a ajuda de cartografias de significado
asseguradas pelo trabalho de composição (onde a alteração do
tamanho ou forma de uma vinheta, a sua disposição na página, a sua
relação com as outras, etc., insufla desde logo uma qualquer função
de leitura), o leitor saberá, por inferências internas à diegese,
entender quando há momentos de maior celeridade, quando de maior
calma, ou quais cenas correspondem ao “presente da história”, à
acção, quais às memórias, etc. O autor não deixa de criar
situações em que nos faz ir numa direcção e depois nos rouba essa
hipótese. No final do livro, quando a bebé de Claire nasce, a
médica pergunta pelo pai da criança, e ela diz lamentar quando
Claire lhe responde que o pai está ausente. O contraste entre o
rosto sério da médica e a apresentação da bebé, em baixo, poderá
criar a ideia de que o seu “lamento” diz respeito não apenas a
essa ausência mas igualmente ao nascimento de uma menina negra de
uma mãe branca, em que a marca da cor da pele – a obsessão da cor
negra pela parte do branco, como escreveu Frantz Fanon, e assinalado
em relação a Nègres
jaunes por
Domingos Isabelinho e Hugo Frey – assinalará sempre uma pergunta
adicional... mas o autor resolve fechar o livro com um sorriso da
criança, mostrando dessa outra forma como a redenção e a graça
está presente na continuidade da vida.
Como
havíamos dito acima, existe um episódio na história em que surgem
algumas fotografias. Essas fotografias vêm da “África colonial”
onde os avós viveram e, imaginamos, fizeram parte da fortuna e
instituíram parte da cultura que depois trouxeram – se se
compreende bem a informação elíptica, eles exploravam em França,
antes de morrer, um bordel de clientela sobretudo magrebina e
africana. Não são feitos quaisquer comentários sobre as
fotografias. Comentários verbais, entenda-se; há apenas uma
contextualização factual. Algumas das fotografias (cujas
delimitações da moldura coincidem com as das vinhetas, não se
criando nenhuma ilusão de distância, manipulação, “volume” no
interior do mundo narrativo) mostram mulheres, de seios nus, mas se
numa primeira vista poderemos imaginar que se trata do “usual”,
de um “olhar antropológico neutro” - o qual, de resto, é
impossível de existir, claro - que capta a vida “tal como ela
era”, uma segunda foto mostra duas mulheres, uma das quais
levantando a camisa, revelando os seios. Como se respondesse a um
pedido de quem fotografa. Esta pequena acção, apenas presente nessa
imagem, dá cor a tudo o resto, e faz-nos imaginar uma economia
comportamental da parte do fotógrafo que possivelmente terá passado
pela esfera da sexualidade, quer em termos de factor de poder de quem
comanda e de animalização daquelas mulheres quer em termos de,
talvez, “uso” sexual delas. Como dissemos, não se fazem
comentários verbais, mas a forma como estas fotografias vão
regressar várias vezes, em ritmos internos distintos e em diálogo
com o passeio de Claire, um passeio que na verdade é uma fuga para
espairecer e respirar ar limpo, leva à ideia de que elas são um
gatilho de emoções, e memórias, de extrema turbulência para a
protagonista.
As
fotografias, tal como as cenas diegéticas, as memórias, etc. surgem
todas num mesmo nível visual e estrutural da página: são todas
“assinadas” com os mesmos instrumentos pictóricos, são todas
apresentadas como vinhetas de idênticos valor e presença. Isso
reforça a ideia do esforço do leitor, mas também permite a que
haja uma porosidade entre essas diferenças. Em vez de termos uma
vinheta onde veríamos as mãos da protagonista a segurar as
fotografias, com uma perspectiva ocular mais ou menos idêntica ou
próxima àquela que corresponderia à dela, é apenas nossa
a decisão de ligarmos as fotos à cadeia narrativa em curso, e
sobretudo o como
dessa visão.
Na
contracapa do livro, onde vemos o que parece ser o padrão de um
papel de parede antiquado (da casa dos avós?) ou um velho caderno
escolar ou diário (de Claire?), um pequeno autocolante apresenta o
que parece ser uma espécie de colecção de títulos: “Coeur
dévorante,/Amour,/Église de la chair,/École de la misère”.
Trata-se de uma lista? E de quê, sinónimos, facetas de uma mesma
realidade, hipóteses descritivas, elementos de uma imagem maior que
as partes? Ou pequeno poema, hino, canção? De novo, regressa-se ao
corpo, ao mais fundo dos âmagos – o coração, a carne, uma
“igreja” - assim como a ideia de emoções desabridas, passagens
excessivas de paixão, uma organização institucional, talvez falha.
A miséria é funda, um talho que corta a pele de Claire – a
violência, não, as violências do pai, a família desagregada, a
aparente ausência de Alain, a fúria deste quando sabe do segredo, o
isolamento de Claire, o assalto das memórias e dos segredos e das
experiências que deveriam ser enterradas. Tudo isso acumula-se e
confunde-se numa mole que vai oprimindo Claire. Mas o sorriso da
filha “devora” tudo no fim num amor desmesurado. E é uma óbvia
promessa de futuro, de uma nova vida, onde a concentração da mãe
(e do pai?) se depositará, enterrando de vez os fantasmas miseráveis
de um passado miserável.
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