2 de agosto de 2014

Spirou aux sources du S... Philippe Tombaline (L'Harmattan)

Discutivelmente, Spirou é uma das séries que compõem a “sagrada trindade” da banda desenhada franco-belga clássica, com Tintin e Astérix, mas provavelmente ocupando um lugar inferior em relação a essas duas. Em termos de vendas, de influência, de significado histórico e até de “baptismo” de géneros, Spirou não teve o mesmo peso do que a obra de Hergé e a de Goscinny e Uderzo, mas ocupa um lugar extremamente influente na cultura bedéfila franco-belga, e aquelas que a seguiram, como a portuguesa. E, claro está, se afunilarmos a atenção para com a dita “escola de Marcinelle”, mais tarde inflectida da dita “escola Atome”, então sem dúvida que Spirou, ou melhor, o Spirou de Franquin, tem um lugar de particular destaque, senão central (tal como a de Hergé o teve em relação à escola dita “de Bruxelas” ou da “linha clara” e a de Goscinny-Uderzo na banda desenhada de sátira social francesa dos anos 1960). E mais, se tivermos em conta os seus fãs, mesclando princípios nacionalistas e políticos sectários, muitas vezes Spirou é jogado como o herói puro (“o malandro de grande coração”, como rezava uma publicação durante a 2ª Grande Guerra [ver imagem abaixo; traduzi espiègle, termo valão, por "malandro", mas outras palavras serviriam, significando alguém que faz malandrices sem maldade, e que estará na origem do nome da personagem]) em contraste com o “colaborador” Tintin... (Mais) 

No entanto, ao contrário dessas outras duas séries, ela tem levado a um número bem menor de abordagens que se possam chamar de académicas, de estudo e de análise disciplinar (seja o foco qual for). A elevação de Tintin a símbolo belga e de Astérix a francês impede que esses papéis possam ser ocupados por outras personagens da mesma forma, mas a verdade é que as efemérides permitem sempre um outro tipo de abertura, atenção e dedicação. Ora, estávamos em crer que Spirou aux sources du S... (na verdade, possivelmente, poderá ser este título lido como “Spirou. Aux sources du S...”, o que faz uma grande diferença) era esse gesto. Porém, mesmo tendo em conta o 75º aniversário da personagem, que fez de 2013 o “Ano Spirou”, não será este o caso. A edição de um monumental, extremamente informativo, cuidado e belo primeiro volume pelo casal Bertrand e Christelle Pissavy-Yvernault intitulado La véritable histoire de Spirou, e um futuro volume de ensaios de um grupo académico (que deveria ter sido publicado o ano passado), faz apontar que este é o momento certo desse balanço, mas não acreditamos que este livro de Tomblaine faça parte desse conjunto.

Apesar do seu sub-título - “Uma análise da mitologia e das referências internas da série Spirou e Fantásio” - o livro é mais um compêndio de ideias do que propriamente um discurso analítico. Não há propriamente a eleição de um conceito central – por hipótese, a “mitologia” - que depois seria consolidado teoricamente e perseguido de forma conduzida. Na verdade, o “mito” surge aqui na sua acepção mais simplificada, a de “história”, com os seus elementos soltos. Ou pior, é como se a mitificação fosse criada pelo próprio autor, em vez de lida. À luz de um volume como Mythe et bande dessinée, não estamos perante propriamente um território em que esteja tudo por fazer. Nesse volume, no ensaio de Fresnault-Deruelle, na esteira de um Barthes, escreve aproximadamente como “não é menos verdade que as bandas desenhadas, apesar da sua escala modesta, tomaram o lugar dessas histórias que as sociedades inventam para se reflectirem”. Seja. Como é que Spirou, então, ao longo de quase oito décadas, tem espelhado a sua sociedade? A resposta tarda, na leitura destas páginas.
Não sendo tampouco uma colecção e listagem de eventos, personagens e objectos, mas antes de textos onde o autor vai tecendo alguma impressões que foram sido colhidas ao longo de anos, imaginamos que aturados, de leituras, eles nunca chegam a um ponto, todavia, em que se possa dizer trazerem leituras novas e iluminadoras. De “tese”, digamos assim.

O facto do autor ser um fã nota-se em todas as dimensões do livro. Isso não é necessariamente um aspecto negativo, pois devemos sempre escrever movidos por algum tipo de paixão, mesmo que essa paixão se exprima até por alguma distância e desmontagem do objecto de amor. No entanto, é preciso ser-se consciente também que esse posicionamento irá tingir o discurso de formas, estratégias e recursos que o tornarão precisamente um discurso de fã, e não de análise ou de crítica. A utilização de uma certa manipulação da linguagem para efeitos de humor e surpresa, de uma retórica enfática recorrente, e sobretudo o tratamento do mundo ficcional criado pelo conjunto dos livros como se um mundo numénico e real se tratasse, leva à emergência dessa ideia. Ora, um exercício desse tipo pode mesmo ser curioso e producente no reino da literatura, mas se se pretende servir uma abordagem crítica, a contextualização específica é necessária. E numa série que atravessou décadas, contextos editoriais e equipas criativas diferentes, estruturas internas a cada livro bem distintas entre si, etc., levaria a que houvesse algum cuidado a pensar que estas personagens têm uma vida “real” que atravessa os livros. O estudo de um certo efeito do real, das formas de referencialidade, etc., são fulcrais, mas não devem servir de ilusão em relação à sua construção fictícia.

O autor acumula os temas, e identifica-os ao longo dos títulos, mas nunca parte para a análise. Por exemplo, indicar que o “tema” da viagem a países exóticos existe no título x e y, de equipas criativas diferentes, em momentos diferentes, não é uma equivalência, se não se estuda na sua especificidade que tipo de papel actancial se joga na diegese em específico. A indicação de que “o vermelho é simbólico”, e depois discorrer sem integração do seu uso, não é nada mais do que uma léria impressionista. Franquin pode ter sido um génio nas suas formas, sem dúvida, mas quando Tome e Janry fazem Le rayon noir, não deixam de estar a colocar questões sobre as representações raciais e racistas para as quais os autores clássicos, inclusive Franquin, contribuíram. E se Panade à Champignac é uma espécie de eco d'As jóias de Castafiore na série, a “domesticidade” e “arquivo” ali previstos não são de forma alguma tratados da mesma maneira que sacode todo o edifício ficcional como em Aux sources du Z, de Morvan, Yann e Munuera...

Nalguns momentos, mesmo, Tomblaine raia a generalização superficial, como numa brevíssima citação da oposição chinesa Yin/Yang para contrastar os títulos de Tintin e Spirou (e, por mais voltas que se dê, ou possíveis influências, estamos a falar de autores e séries belgas, não chinesas). E os exercícios de ler as aliterações entre “S” e “Z” de livro para livro, e até um bem forçado “V” aproxima o discurso de uma alucinação pouco produtiva, pois não é acompanhada nem por um génio literário à la Tom McCarthy (Tintinand the Secret of Literature) nem da obsessão semiológica sólida e iluminadora de um Jean-Marie Floch (Une lecture de Tintin au Tibet) ou de um Benoît Peeters (Les Bijoux Ravis). Qual a razão, perguntamo-nos, de Tintin ter chamado tantas leituras intensas e magistralmente tecidas, em diferenciação quase absoluta de outras séries ou autores franco-belgas?

Numa segunda parte substancial do livro, encontraremos toda uma série de curtas e médias entrevistas com muitos dos autores envolvidos nas várias vidas de Spirou, quer aqueles que criaram longos momentos da sua história oficial, (Jean-Claude Fournier, Jean-David Morvan e José-Luis Munuera, Fabien Vehlmann e Yoann), outros mais curtos (Raoul Cauvin), outros ainda com os títulos da colecção “extra-oficial” Le Spirou de... ou outros projectos laterais (Frank le Gall, Yann, Olivier Schwartz, Fabrice Tarrin, Lewis Trondheim e Fabrice Parme) ou ainda pessoas com funções a nível editorial que iluminam facetas importantes na economia de produção desta personagem (Benoît Fripiat). Todos eles são pessoas que tiveram responsabilidades numa ou outra dimensão da banda desenhada franco-belga, e as questões são conduzidas para permitir um contributo ao grande puzzle de referências do livro. No entanto, não deixa de ser surpreendente que pela qualidade diversificada destas entrevistas, haja também ausências injustificadas e não explicadas, como as de Tome and Janry, que tantas novas dimensões contribuíram para a série, Émile Bravo, indiscutivelmente o promotor do livro com maior sucesso crítico com a personagem dos últimos anos, se não mesmo de sempre, entre algumas outras personalidades que poderiam ter algo interessante a dizer. Na verdade as entrevistas também se revestem de um tom leve – como as perguntas que nascem de uma afirmação ou uma indicação, e depois se pede um comentário, e não propriamente uma questão estrategicamente colocada para desdobrar um tema ou um processo de trabalho ou pensamento do entrevistado, ou algumas discussões oblíquas que não são totalmente claras para o leitor que não acompanhe todos os fóruns, etc. - o que lhes incutem uma forma cujo contributo é discutível.

Nas páginas finais, o autor apresenta fontes bibliográficas, algumas propostas temático-pedagógicas que permitem integrar os livros da série em várias disciplinas escolares (à luz dos programas oficiais), e ainda alguns exercícios de leitura analítica, se bem que estes fiquem muito aquém dos quadros desenvolvidos por outros teóricos. Mais, na ausência de qualquer diálogo ou entrosamento precisamente com esse trabalho desenvolvido (por Groensteen, Peeters, Baetens, Chavanne, Lecigne, etc.), e até por alguns “recados” ou “bocas” com que o autor vai apimentando a sua escrita em relação a analistas (“exegetas e semióticos da obra”, escreve ele na página 104), fica-se com a ideia de que existirá uma atitude melindrada para com essas abordagens mais intelectuais e informadas culturalmente, apesar de também espargirem algumas das suas ideias. [Mas se se conhecer, por hipótese, o ensaio de Bart Beaty sobre esta serigrafia de Émile Bravo, apercebermo-nos-emos da razão de utilizar instrumentos verdadeiramente densos e qual a sua recompensa].

A paginação e arranjo de design do livro também não é dos mais conseguidos, uma vez que não existe um equilíbrio feliz entre o que está a ser discutido e o que é mostrado. Existem, sobretudo nas entrevistas, alguns materiais excelentes, sobretudo sob a forma de esboços e estudos de personagens, de páginas, apontamentos de produção, etc., mas em termos gerais a dimensão visual do livro é mais decorativa do que significativa.

Dito tudo isto, não se aprenderá nada de novo com o livro? Bom, claro que sim, mas apenas em termos de informações “brutas” e soltas, e que dependerão do nível de conhecimento dessas mesmas informações pela parte do leitor. Em termos de método, que é o que deveria contar, em suma, é que o estímulo é algo reduzido. Não chegámos, então, pelo menos por este caminho, às “fontes do S”...
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. Com excepção da capa, todas as outras imagens deste artigo são colhidas da internet, e sofrerão do mesmo factor “decorativo”. 

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