Discutivelmente,
Spirou
é uma das séries que compõem a “sagrada trindade” da banda
desenhada franco-belga clássica, com Tintin
e Astérix,
mas provavelmente ocupando um lugar inferior em relação a essas
duas. Em termos de vendas, de influência, de significado histórico
e até de “baptismo” de géneros, Spirou
não teve o mesmo peso do que a obra de Hergé e a de Goscinny e
Uderzo, mas ocupa um lugar extremamente influente na cultura bedéfila
franco-belga, e aquelas que a seguiram, como a portuguesa. E, claro
está, se afunilarmos a atenção para com a dita “escola de
Marcinelle”, mais tarde inflectida da dita “escola Atome”,
então sem dúvida que Spirou,
ou melhor, o Spirou
de Franquin, tem um lugar de particular destaque, senão central (tal
como a de Hergé o teve em relação à escola dita “de Bruxelas”
ou da “linha clara” e a de Goscinny-Uderzo na banda desenhada de
sátira social francesa dos anos 1960). E mais, se tivermos em conta
os seus fãs, mesclando princípios nacionalistas e políticos
sectários, muitas vezes Spirou
é jogado como o herói puro (“o malandro de grande coração”,
como rezava uma publicação durante a 2ª Grande Guerra [ver imagem abaixo; traduzi espiègle, termo valão, por "malandro", mas outras palavras serviriam, significando alguém que faz malandrices sem maldade, e que estará na origem do nome da personagem]) em
contraste com o “colaborador” Tintin... (Mais)
No
entanto, ao contrário dessas outras duas séries, ela tem levado a
um número bem menor de abordagens que se possam chamar de
académicas, de estudo e de análise disciplinar (seja o foco qual
for). A elevação de Tintin
a símbolo belga e de Astérix
a francês impede que esses papéis possam ser ocupados por outras
personagens da mesma forma, mas a verdade é que as efemérides
permitem sempre um outro tipo de abertura, atenção e dedicação.
Ora, estávamos em crer que Spirou
aux sources du S...
(na verdade, possivelmente, poderá ser este título lido como
“Spirou. Aux sources du S...”, o que faz uma grande diferença)
era esse gesto. Porém, mesmo tendo em conta o 75º aniversário da
personagem, que fez de 2013 o “Ano Spirou”, não será este o
caso. A edição de um monumental, extremamente informativo, cuidado
e belo primeiro volume pelo casal Bertrand e Christelle
Pissavy-Yvernault intitulado La
véritable histoire de Spirou,
e um futuro volume de ensaios de um grupo académico (que deveria ter
sido publicado o ano passado), faz apontar que este é o momento
certo desse balanço, mas não acreditamos que este livro de
Tomblaine faça parte desse conjunto.
Apesar
do seu sub-título - “Uma análise da mitologia e das referências
internas da série
Spirou e Fantásio”
- o livro é mais um compêndio de ideias do que propriamente um
discurso analítico.
Não há propriamente a eleição de um conceito central – por
hipótese, a “mitologia” - que depois seria consolidado
teoricamente e perseguido de forma conduzida. Na verdade, o “mito”
surge aqui na sua acepção mais simplificada, a de “história”,
com os seus elementos soltos. Ou pior, é como se a mitificação
fosse criada pelo próprio autor, em vez de lida. À luz de um volume
como Mythe
et bande dessinée,
não estamos perante propriamente um território em que esteja tudo
por fazer. Nesse volume, no ensaio de Fresnault-Deruelle, na esteira
de um Barthes, escreve aproximadamente como “não é menos verdade
que as bandas desenhadas, apesar da sua escala modesta, tomaram o
lugar dessas histórias que as sociedades inventam para se
reflectirem”. Seja. Como é que Spirou,
então, ao longo de quase oito décadas, tem espelhado a sua
sociedade? A resposta tarda, na leitura destas páginas.
Não
sendo tampouco uma colecção e listagem de eventos, personagens e
objectos, mas antes de textos onde o autor vai tecendo alguma
impressões que foram sido colhidas ao longo de anos, imaginamos que
aturados, de leituras, eles nunca chegam a um ponto, todavia, em que
se possa dizer trazerem leituras novas e iluminadoras. De “tese”,
digamos assim.
O
facto do autor ser um fã nota-se em todas as dimensões do livro.
Isso não é necessariamente um aspecto negativo, pois devemos sempre
escrever movidos por algum tipo de paixão, mesmo que essa paixão se
exprima até por alguma distância e desmontagem do objecto de amor.
No entanto, é preciso ser-se consciente também que esse
posicionamento irá tingir o discurso de formas, estratégias e
recursos que o tornarão precisamente um discurso de fã, e não de
análise ou de crítica. A utilização de uma certa manipulação da
linguagem para efeitos de humor e surpresa, de uma retórica enfática
recorrente, e sobretudo o tratamento do mundo ficcional criado pelo
conjunto dos livros como se um mundo numénico e real se tratasse,
leva à emergência dessa ideia. Ora, um exercício desse tipo pode
mesmo ser curioso e producente no reino da literatura, mas se se
pretende servir uma abordagem crítica, a contextualização
específica é necessária. E numa série que atravessou décadas,
contextos editoriais e equipas criativas diferentes, estruturas
internas a cada livro bem distintas entre si, etc., levaria a que
houvesse algum cuidado a pensar que estas personagens têm uma vida
“real” que atravessa os livros. O estudo de um certo efeito do
real, das formas de referencialidade, etc., são fulcrais, mas não
devem servir de ilusão em relação à sua construção fictícia.
O
autor acumula os temas, e identifica-os ao longo dos títulos, mas
nunca parte para a análise. Por exemplo, indicar que o “tema” da
viagem a países exóticos existe no título x
e y,
de equipas criativas diferentes, em momentos diferentes, não é uma
equivalência, se não se estuda na sua especificidade que tipo de
papel actancial se joga na diegese em específico. A indicação de
que “o vermelho é simbólico”, e depois discorrer sem integração
do seu uso, não é nada mais do que uma léria impressionista.
Franquin pode ter sido um génio nas suas formas, sem dúvida, mas
quando Tome e Janry fazem Le
rayon noir,
não deixam de estar a colocar questões sobre as representações
raciais e racistas para as quais os autores clássicos, inclusive
Franquin, contribuíram. E se Panade
à Champignac é
uma espécie de eco d'As
jóias de Castafiore
na série, a “domesticidade” e “arquivo” ali previstos não
são de forma alguma tratados da mesma maneira que sacode todo o
edifício ficcional como em Aux
sources du Z,
de Morvan, Yann e Munuera...
Nalguns
momentos, mesmo, Tomblaine raia a generalização superficial, como
numa brevíssima citação da oposição chinesa Yin/Yang para
contrastar os títulos de Tintin
e Spirou
(e, por mais voltas que se dê, ou possíveis influências, estamos a
falar de autores e séries belgas, não chinesas). E os exercícios
de ler as aliterações entre “S” e “Z” de livro para livro,
e até um bem forçado “V” aproxima o discurso de uma alucinação
pouco produtiva, pois não é acompanhada nem por um génio literário
à la Tom McCarthy (Tintinand the Secret of Literature)
nem da obsessão semiológica sólida e iluminadora de um Jean-Marie
Floch (Une
lecture de Tintin au Tibet)
ou de um Benoît Peeters (Les
Bijoux Ravis).
Qual a razão, perguntamo-nos, de Tintin
ter chamado tantas leituras intensas e magistralmente tecidas, em
diferenciação quase absoluta de outras séries ou autores
franco-belgas?
Numa
segunda parte substancial do livro, encontraremos toda uma série de
curtas e médias entrevistas com muitos dos autores envolvidos nas
várias vidas de Spirou,
quer aqueles que criaram longos momentos da sua história oficial,
(Jean-Claude Fournier, Jean-David Morvan e José-Luis Munuera, Fabien
Vehlmann e Yoann), outros mais curtos (Raoul Cauvin), outros ainda
com os títulos da colecção “extra-oficial” Le
Spirou de... ou
outros projectos laterais (Frank
le Gall, Yann, Olivier Schwartz, Fabrice Tarrin, Lewis Trondheim e
Fabrice Parme) ou ainda pessoas com funções a nível editorial que
iluminam facetas importantes na economia de produção desta
personagem (Benoît Fripiat). Todos eles são pessoas que tiveram
responsabilidades numa ou outra dimensão da banda desenhada
franco-belga, e as questões são conduzidas para permitir um
contributo ao grande puzzle de referências do livro. No entanto, não
deixa de ser surpreendente que pela qualidade diversificada destas
entrevistas, haja também ausências injustificadas e não
explicadas, como as de Tome and Janry, que tantas novas dimensões
contribuíram para a série, Émile Bravo, indiscutivelmente o
promotor do livro com maior sucesso crítico com a personagem dos
últimos anos, se não mesmo de sempre, entre algumas outras
personalidades que poderiam ter algo interessante a dizer. Na verdade
as entrevistas também se revestem de um tom leve – como as
perguntas que nascem de uma afirmação ou uma indicação, e depois
se pede um comentário, e não propriamente uma questão
estrategicamente colocada para desdobrar um tema ou um processo de
trabalho ou pensamento do entrevistado, ou algumas discussões
oblíquas que não são totalmente claras para o leitor que não
acompanhe todos os fóruns, etc. - o que lhes incutem uma forma cujo
contributo é discutível.
Nas
páginas finais, o autor apresenta fontes bibliográficas, algumas
propostas temático-pedagógicas que permitem integrar os livros da
série em várias disciplinas escolares (à luz dos programas
oficiais), e ainda alguns exercícios de leitura analítica, se bem
que estes fiquem muito aquém dos quadros desenvolvidos por outros
teóricos. Mais, na ausência de qualquer diálogo ou entrosamento
precisamente com esse trabalho desenvolvido (por Groensteen, Peeters,
Baetens, Chavanne, Lecigne, etc.), e até por alguns “recados” ou
“bocas” com que o autor vai apimentando a sua escrita em relação
a analistas (“exegetas e semióticos da obra”, escreve ele na
página 104), fica-se com a ideia de que existirá uma atitude
melindrada para com essas abordagens mais intelectuais e informadas
culturalmente, apesar de também espargirem algumas das suas ideias. [Mas se se conhecer, por hipótese, o ensaio de Bart Beaty sobre esta serigrafia de Émile Bravo, apercebermo-nos-emos da razão de utilizar instrumentos verdadeiramente densos e qual a sua recompensa].
A
paginação e arranjo de design do livro também não é dos
mais conseguidos, uma vez que não existe um equilíbrio feliz entre
o que está a ser discutido e o que é mostrado. Existem, sobretudo
nas entrevistas, alguns materiais excelentes, sobretudo sob a forma
de esboços e estudos de personagens, de páginas, apontamentos de
produção, etc., mas em termos gerais a dimensão visual do livro é
mais decorativa do que significativa.
Dito
tudo isto, não se aprenderá nada de novo com o livro? Bom, claro
que sim, mas apenas em termos de informações “brutas” e soltas,
e que dependerão do nível de conhecimento dessas mesmas informações
pela parte do leitor. Em termos de método, que é o que deveria
contar, em suma, é que o estímulo é algo reduzido. Não chegámos,
então, pelo menos por este caminho, às “fontes do S”...
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. Com excepção
da capa, todas as outras imagens deste artigo são colhidas da
internet, e sofrerão do mesmo factor “decorativo”.
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