O
que acontece quando nos deparamos com um livro que se sente ser uma
bateria de referências buriladas ao ponto de reviverem e cruzarem
linhas de interpretação que se vão confundindo e obrigando a reler
não apenas o texto em si mas toda a cultura que o permite? Uma outra
metáfora seria a de uma pequena colónia de organismos, mais ou
menos identificáveis na sua singularidade, mas que, agregados num
mesmo espaço, acabam por se multiplicar e reproduzir entre si,
criando mutantes que tanto conseguimos identificar como nos lançam
em dúvidas... A única hipótese, de navegação, é
tentarmos alguns dos mapas mais familiares, e esboçar uma rota, e
esperar que possamos chegar a algum porto. É possível, porém, que
os escolhos sejam demasiados e criem antes a ilusão de chegarmos a
algum lado, quando na verdade estamos ainda perdidos. (Mais)
Esta
linguagem não é inocente, e bebe directamente da matéria narrativa
do livro. Duas personagens masculinas, com um aspecto um tanto ou
quanto pateta, e com um comportamento que recordaria o de débeis
mentais ou crianças, passam as férias numa colónia balnear. A
circunstância vai permitir-lhes que embarquem num périplo pelo mar
aberto, cruzando-se com criaturas (todas mulheres, mas que estão a
tomar o lugar de algo que não-somente-mulheres), e vivendo algumas
aventuras (mesmo que apenas nos sonhos deles). Depois desembarcam e
conhecem uma estranha família que dirige um pequeno hotel na praia
e, para asseguraram a sua segurança, recontam as suas aventuras, se
bem que distorcendo hiperbolicamente os eventos, senão mesmo
inventando, e finalmente fogem deles para cair no que parece ser o
recomeço de tudo.
Logo
à partida, toda uma série de elementos estruturais, dos eventos,
das viagens e encontros, irá associar Les incrustacés àquela
literatura, e depois banda desenhada, de grande aventura “para
rapazes” que surgiria com a emergência da burguesia, desde o
século XVII (por hipótese, Les aventures de Télémaque, de
Fénelon, poderia ser um modelo), e teria em Tintin uma
espécie de zénite. Mas há igualmente outras figuras culturais que
surgem como fantasmas ou sombras sobre esta obra. Logo à partida, a
comparação com as personagens Bouvard e Pécuchet, de Flaubert, é
inevitável, mas onde a curiosidade daqueles nos ramos da ciência
era gorada pelos falhanços processuais, estes são recompensados na
sua imbecilidade em novos desvios em direcção à acção. Além
disso, estas personagens assumem também um papel idêntico a de
todos os intrépidos aventureiros navegadores e exploradores de ilhas
selvagens, daquela tipologia textual já citada, de Ulisses a Crusoe,
de Barba Ruiva a Tarzan, passando por toda uma série de, apetece
dizer com Propp, narratemas: o encontro com as “sereias”, a
abordagem das ilhas, o embate com os “selvagens”, etc.
A
autora, em várias entrevistas, refere-se ao facto deste projecto ter
sido despertado por uma impressão geral que ela tinha em relação à
banda desenhada (sobretudo clássica), e como este livro é uma
espécie de resposta criativa a essa situação, sobretudo em relação
ao seu carácter misógino. Pouco importa se a sua atitude estará
mais ou menos desfasada em relação à produção contemporânea,
mas não o estará face à sua própria experiência de leitora,
pertencendo a uma geração que terá sido exposta a todo esse corpo
de banda desenhada clássica, de aventuras, mas que dispensava em
larga medida alguns dos contornos sociais que viriam a ser
conquistados noutras esferas, nomeadamente no que diz respeito à
presença das mulheres, e à sua importância enquanto actrizes,
decisoras, etc. Um tema, de resto, abordado academicamente por Ana
Bravo (mesmo que com limitações), como havíamos discutido.
As
duas personagens são “M.” e outra que não é jamais nomeada. M
é mais activo, toma decisões, é ele quem comanda a palavra falada,
quem reconta as aventuras aos outros, quem distribui funções, quem
tem encontros sexuais. O outro raramente fala, e quando o faz emite
uma expressão incompreenível - “Progok golomol!” -, parece mais
contemplativo e quer é deixar-se estar no seu canto, e segue M.
Quanto é necessário, porém, acaba por cumprir acções, ainda que
ocultas a M., que terão grandes consequências nos avanços de
ambos. E, o mais importante, é que toda a trilha verbal do livro é
escrita por ele mesmo, na primeira pessoa.
Um
dos pontos fortes do livro é que, no meio de tanto absurdo e
fantasia, é por vezes complexo estar seguro até que medida é que
poderemos pensar em termos de “verdade” em relação aos eventos
passados. Por exemplo, já num momento avançado do livro, quando
ambos desembarcam junto à família do hotel, como dissemos M.
conta-lhes a história das suas navegações (como Ulisses aos
Faécios, ou Vasco da Gama ao rei de Melinde e Paulo da Gama ao
Catual, associando-se portanto ao género épico). Ora, tendo sido
testemunhas (leitores) do que se passou na viagem, sabemos que o que
ele conta não é verdade, ou é distorcido a um ponto de
irreconhecimento total. O que sucede, porém, também para o leitor,
é que o conto de M. tem uma “tradução visual”, ou uma presença
gráfica, no livro, idêntica a tudo o resto, ou seja, nós acabamos
por ter acesso a mais um episódio, mesmo que ele não seja
“real”. Não é, portanto, na economia da banda desenhada em si,
um “desperdício”, é mesmo um remendo de roupa velha com pano
novo, trazendo uma camada adicional a Les incrustacés.
Rita
Mercédès é uma ilustradora, com trabalho espalhado por toda a
espécie de publicações, e também tem alguma produção de banda
desenhada no seu currículo, tendo começado auspiciosamente em
fanzines de Charlie Schlingo, mas aparentemente sem se ter entregue
de forma exclusiva ou particular a este território. Treinada em
artes e arquitectura, e aliando-se às suas aparentes inclinações
literárias – não apenas em termos de referências, mas igualmente
de fraseado, já que o seu francês é requintado, complexo e
floreado, variando-se os momentos de diálogos com as descrições
esforçadas e alucinadas do protagonista -, Mercédès parece
recuperar uma abordagem ao desenho que recordará a ilustração dos
séculos XVIII e XIX, cuja transformação para impressão passava
pela gravura, que permite linhas absolutamente finas e um efeito de
manchas e texturas diferenciadas (sobretudo a água-forte?). Por
isso, também a nível visual as referências parecem acumular-se,
recuperando essas práticas antigas, mas também se aproximando de
artistas modernos da banda desenhada que partilham essa “obsessão”
por texturas, como Edward Gorey, Roland Topor ou Francis Masse: uma
abordagem muito cheia, de traços delicados e finos para os contornos
que depois quase se diluem sob a avalanche de um obsessivo e quase
excessivo trabalho de tramas, diferenciadas para cada superfície,
face de um objecto, padrão de veste, canto de vegetação, etc. A
autora estará próxima ainda de Gorey na sua forma de paginação e
articulação entre imagens e textos: não existem balões de fala,
mas somente legendas, incorporando por vezes diálogos entre aspas,
sob as imagens, as quais se estendem nas páginas sob a forma de
manchas mais ou menos disformes no fundo branco, oscilando entre uma
imagem enorme e as personagens repetidas 5 vezes (a esmagadora
maioria tem apenas 2 e 3 vinhetas “flutuantes”). Mas onde o autor
norte-americano trabalhava quase exclusivamente num formato oblongo
de uma imagem por página, Mercédès tenta aproximar-se do formato
clássico do “álbum”, mais uma vez remetendo à tradição a que
parece responder.
No
entanto, em termos de figuração a autor trabalha num arco mais
concentrado, em que todas as personagens, tenham ou não relações
familiares entre si, parecem nascer de uma mesma modulação, o que é
menos um defeito de estilo do que uma forma de traduzir uma espécie
de imbecilidade associada à consanguinidade, que é patente enquanto
tema em Les incrustacés.
Num
episódio – na verdade, poderíamos dividir o texto em partes,
apesar se ser uma “aventura corrida”, e poder-se-ia encontrar
algum desequilíbrio nas relações entre essas partes, uma menor
conquista de elegância em termos gerais - , o protagonista sonha ser
prisioneiro da sua cama de rede, senão mesmo vítima dela, como se
de uma criatura viva se tratasse e mergulha num sonho e no fundo do
mar, encontrando-se com criaturas fantásticas. Estas cenas, mesmo
que de forma breve, recordam o trabalho sistemático de Ernst
Haeckel. Além disso, essas criaturas com que se encontram, sejam as
“reais” sejam as “imaginadas” no sonho do protagonista, e
depois até mesmo os vocábulos e nomes empregues, farão recordar os
leitores de, novamente, toda uma bateria de referências, de A
caça ao Snark às Viagens de Gulliver, mas acima de tudo
às “viagens” de Henri Michaux (reunidas em Ailleurs). É
possível que este exercício de associações pudesse continuar, até
mesmo propondo-se As férias do Senhor Hulot como um possível
enquadramento social do ponto de partida narrativo. Mas tentemos
apenas mais uma.
Em
1979, David Macaulay, autor de toda uma série de livros ilustrados
cujo objectivo é explicarem visualmente estruturas arquitectónicas,
fez o seu livro mais mirabolante, Motel
of the Mysteries,
em um arqueólogo do ano 4000 descobre as ruínas de um pequeno motel
estado-unidense do final do século XX e, através dos vários
objectos, faz interpretações plausíveis, mas erradas e risíveis:
o tampo de retrete seria um colar, a televisão uma forma de
comunicação com os deuses, etc. As imagens deste livro são
suficientemente conhecidas ou têm uma circulação especial, mesmo
que na ignorância da sua proveniência. São daquelas imagens que
compõem um material “disponível”, mesmo que não se conheçam
as suas circunstâncias específicas. Mas o tipo de mal-entendido que
elas representam serve de modelo para algumas das escolhas de
Mercédès. Pois quer as culturas “exóticas” com que M. e o
amigo se cruzam – comentário, sem dúvida, de todas aquelas
transformações operadas na banda desenhada clássica sobre culturas
reais – quer a cultura a que eles pertencem parecem respigar de
objectos comuns, para nós, para os transformar em algo maravilhoso
(e, mais uma vez, isso remeteria aos usos surreais de Topor ou ao
Avalanche de Masse). A um só tempo, porém, estes estranhos e desviantes usos
parecem querer comentar sobre o nosso mundo mas também a
imbecilidade geral das personagens.
Perguntamo-nos
se, numa abordagem ainda mais profunda, analítica e filosófica, não
seria possível estudar este livro à luz das teorias da “semelhança
informe” de Georges Bataille, estudada por Georges Didi-Huberman,
uma forma material de mesclar formas, com consequências estéticas
mas igualmente antropológicas. Uma violência operada sobre as
formas que confunde origens e proveniências e categorias, do baixo
ao alto, do vivo ao inanimado, provocando um caos, uma “dialéctica
sem síntese”. Repare-se que o próprio título é paradoxal,
traduzível como os “incrustáceos” (e que tanto poderá ser
aplicado somente aos protagonistas, como à tribo que vemos na capa e
que corresponde à história falsa de M., como ainda a todas as
personagens). A nomenclatura zoológica remete à ideia de “crosta”,
a couraça que serve de exoesqueleto aos animais. O uso do prefixo
“in”, por sua vez, implica a ideia de negação ou mesmo de
inversão. Se for apenas a ideia de privação, significará que
estas personagens não têm a protecção que lhes seria devida? Ou,
no sentido da inversão, tratar-se-á de mais um disparate, à
Bouvard e Pécuchet, de uma descoberta científica que não faz
sentido, ou que é absolutamente supérflua face à forma como já
descrevemos o mundo? Ou ainda, como já citámos tantas vezes neste
espaço, podemos pensar em Luís Cília, e servirá isto para
sublinhar as parecenças entre a lagosta e os homens, que estão
“unidos para a eternidade, por terem ambos merda na cabeça”.
Agradecimentos
a T.F. pelo empréstimo do livro.
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