Carnet
de Portugal é um pequeno livro de desenhos soltos, apontamentos
de viagem, paisagens, pessoas, colhidos em Portugal pelo autor
francês de descendência portuguesa, Cyril Pedrosa. A associação
imediata deste pequeno volume com o livro Portugal é
inevitável por toda uma série de frentes: editorialmente, ele é
veiculado não apenas pela mesma editora mas na mesma colecção, a
Aire Libre (a qual se tem gradualmente afastado de alguns dos valores
que com se iniciara); autoralmente, por razões óbvias; em termos de
obra, uma vez que haverá pelo menos a “desculpa” de que o
trabalho de pesquisa (e vivência, se se seguir a veia
autobiográfica) para Portugal se encontrará aqui. Além
disso, uma vez que este volume é reproduzido no formato e
materialidade típicas de um Moleskine sensivelmente do tamanho A5,
procura mimar um determinado tipo de intimidade que apenas é
possível ao termos acesso aos verdadeiros cadernos e blocos de
desenho dos artistas. Não há propriamente introduções nem
elementos paratextuais (a edição polaca utiliza um anexo de
traduções, necessário, e que evita “poluir” as imagens em si,
mas devemos vê-la como “externa”), portanto o mergulho é
imediato. (Mais)
Na
verdade, não é totalmente claro que se possa ler o título como
“Carnet de Portugal”, isto é, em que este último termo
se revelaria directamente associado à obra com esse nome, como se
este novo volume fosse um olhar para os bastidores de produção
daquele outro. Será antes um “Carnet de Portugal” no mero (?)
sentido de ser (uma amostra de) um caderno de desenhos feitos no
nosso país quando da(s) passagem(ns) do autor.
Como
dissemos, a edição a que nos reportamos é a polaca, editada pela
Timof comics, de apenas 500 exemplares. A edição francesa original
saiu na mesma colecção de Portugal, e também se trata de uma
edição limitada e numerada, de 1500 exemplares (“limitada”,
portanto, em relação às suas tiragens usuais, uma vez que em
Portugal esse será um número correspondente a um título de
sucesso). No caso da Polónia, estaremos em crer que se trata de um
objecto de interesse relativamente circunscrito a uns quantos
cognoscenti, ou pelo menos amantes da obra de Pedrosa, ao
passo que no caso francês inscreverá antes nas práticas comerciais
mais comuns das tirages de tête, edições com capas
especiais, ou complementos, etc., que preenchem o circuito dos
coleccionadores, essa espécie curiosa de seres que parece confirmar
a noção de Erich Fromm que opõe o “ser” ao “ter”, e que os
próprios cultores transformam em filtro particular para uma espécie
de poder cruzado de “leitura” das obras, quando na verdade não
se trata de uma “leitura” nem crítica nem analítica, mas
somente reificada em termos de objectos dispersos e que atomizam o
significado do texto central.
O
que é que isto quer dizer? A leitura ou estudo de Carnet de
Portugal não tem nenhum elemento que ajude a re-interpretar
Portugal sob qualquer prisma, uma vez que não se trata
propriamente de um dossier de produção, em que pudéssemos
acompanhar a transformação de um esboço na arte-final, uma
hipotética cena descrita ou prevista textualmente sendo transformada
numa prancha de banda desenhada. Nem sequer podemos dizer termos aqui
acesso a um estudo de personagens, de espaços (répérage),
ainda que seja possível debater o grau de adaptabilidade entre os
elementos aqui presentes e aqueles finais no livro. Ou seja, haverá
pouco ou nenhum elemento passível de apoio ao estudo genealógico de
Portugal.
Encontraremos
desenhos elaborados com os mais diversos materiais riscadores, assim
como nos mais variados graus de acabamento ou de “massa”.
Pessoas, animais, árvores ou inteiras paisagens, exteriores e
interiores, desenhadas a esferográfica negra. Nalguns casos, poderá
tratar-se de uma lapiseira de mina fina. Uma dupla página com o
interior da Casa do Alentejo demonstra a particular atenção de
Pedrosa para com os pontos nevrálgicos de uma estrutura e aquilo que
lhe dá carácter. Para mostrar as cercaduras e os medalhões do
tecto, basta uma série de rabiscos volteados, e os candelabros
moldam-se com uma faixa de linhas rectas, contornos de curvas rápidas
e meia-dúzia de pontos negros. Algumas dessas imagens são
complementadas por cores dominadas, que parecem ser aguarelas pelas
flutuações de intensidade e a forma como elas se cruzam entre si.
Noutros casos ainda, o autor parece ter pintado directamente uma
paisagem com as cores, em pinceladas largas, com linhas mais sólidas,
finas, para marcar as estruturas: uma paisagem nocturna do elevador
da Bica, de um avançado rural, de um cantinho das colinas de Lisboa
visto pelo Jardim do Torel são mais densos. Lisboa surge aqui menos
como um local feito de paisagens postalícias do que um antro de
recantos íntimos e descobertas de pormenores muito particulares
(como o pitoresco e proletário restaurante Super Mário, uma
esplanada nos Mártires da Pátria, um canto arborizado numa
calçada).
É
claro que esta obra pode ou deve estar lado a lado a toda uma série
de outros projectos similares, alguns dos quais demos conta, quando
se discutiram os projectos de Eduardo Salavisa, dos Urban Sketchers,
de um título de António Jorge Gonçalves, de Ricardo Cabral, mas
aos quais se poderiam juntar dezenas de outros títulos e autores. Neste caso particular, porém, estamos perante um livro que estabelece uma relação complicada com a banda desenhada, pelas razões genealógicas apontadas e por aspectos pontuais: a inclusão de balões de fala, por exemplo, para projectar o que as pessoas retratadas poderão ter dito, ou apontamentos textuais que são conducentes à escrita. Pois uma dimensão importante nestas folhas é a presença forte de texto, não apenas os nomes dos locais, para os ancorar na realidade e nas circunstâncias, mas igualmente nas considerações, pensamentos e pistas de trabalho que o autor estrutura à volta das imagens, numa caligrafia solta, mas legível.
Pedrosa tem um domínio claro de técnicas aparentemente paradoxais,
como a rápida capacidade de criar personagens caricaturizadas e a
paciente moldagem de paisagens realistas, mas isso não é mais do
que a lição de fundo da tradição franco-belga de banda desenhada,
e inflectida pela experiência no mundo da animação do autor.
Pedrosa é igualmente um autor com uma nítida apetência pela
aguarela, de uma forma controlada e tranquila, inclinada para a
ambiguidade, o cartoonesco, o impressionista, como já
havíamos debatido anteriormente, e existem algumas imagens que, pelo
se carácter urgente, transitório, pessoal, têm aqui uma prestação
mais viva e genuína.
Como
instrumento de trabalho, como repositório pessoal, Carnet não
deixa de ter algumas surpresas, para leitores do autor, ou
apreciadores do desenho.
Nota
final: agradecimentos a Jakub Jankowski, pela oferta do livro na
edição polaca.
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