No
Tratado
sobre a origem da linguagem,
de 1771, J. G. von Herder propõe uma noção da relação entre a
natureza e a civilização (tudo o que é fruto da tarefa do homem)
que vai além de uma mera oposição, como o havia sido no caso de
Rousseau. Há a um só tempo um grau de identidade e um grau de
diferença entre o ser humano e a natureza, e é na conjunção deles
que se dá o efeito que dá origem à linguagem e à literatura (e a
toda a arte, quando o filósofo fala da Kunstgeschöpf,
ou “capacidade para a arte” do homem). O cerne dessa relação é
aquilo que Herder chama de Besonnenheit,
usualmente traduzido como “clareza de consciência”, a faculdade
de separar a impressão sensível da materialidade do dado. Podemos
dizer que a paisagem
existe fisicamente, numa determinada posição topológica, com
coordenadas “exactas” ou relacionais, mas ao mesmo tempo que ela
é apenas fundada num determinado momento relativo ao acto de
observação, cujas condições, se alteradas, alteram também a
própria paisagem. (Mais)
Cette
beauté que s'en va trata precisamente de um acto de observação
muito particular de uma paisagem. Esta última é, do ponto de vista
cartografável, o vale onde se encontra a vila de Sierre, no cantão
de Valais, Suíça (e em torno). Do ponto de vista experiencial, a
partir da perspectiva do protagonista e narrador, é o seu local
natal, ao qual regressa, ainda que não de forma definitiva, depois
de trinta anos. Quanto ao acto de observação, ele está
profundamente aliado a esse breve retorno, que implica ainda o
reencontro com uma namorada antiga, Macha, cujo tumor cerebral os
colocará numa redescoberta de uma espécie de intimidade e pautará
as visitas regulares.
Não
havendo indicações directas, explícitas, de que este livro se
trata de um texto autobiográfico, a utilização da primeira pessoa
na camada verbal, a inscrição mais ou menos “desviada” do
protagonista, e algumas estratégias narrativas que já poderão ser
vistas como típicas deste género, pelo menos aproximam-no dele. É
possível que a corroboração de elementos paratextuais
(entrevistas, etc.) se possa verificar, mas não a seguimos de forma
alguma nesta nossa recepção, limitada ao texto em si. Contudo, é
também notável como algumas das outras estratégias, sobretudo
metatextuais, estão ausentes, ou pelo menos de maneira concreta e
nítida. Não vemos jamais o protagonista a desenhar, a manipular
elementos que pudessem ser vistos como metonímias da própria obra
que estamos a ler, mise en abîmes desse trabalho, e por aí
fora. Existem diferenciações visuais distintas entre um prólogo e
um epílogo e o “miolo” principal (de uma forma simples: esses
extremos têm apenas uma segunda cor, num cinzento desmaiado, ao
passo que os quatro capítulos centrais têm uma segunda ou mesmo
terceira cores, ligeiramente mais vivas, ainda que entre os ocres,
azuis e castanhos). E quando o narrador (que nunca é nomeado), mais
a sua amiga Macha, visitam um museu de arte moderna e contemporânea,
todos os quadros são reproduzidos num estilo sumário, de breves
riscos azuis sobre branco, como se desejasse representar as obras de
arte não apenas de forma esquemática, mas fantasmática,
transparente e reduzida a uma espécie de brisa estrutural de outras
paisagens que estabelecem um estranho diálogo com a maior em que se
passeia.
Num
outro ensaio que lida com a noção de paisagem, “Paysage avec
dépaysement”, Jean-Luc Nancy fala também daquela distância a que
aventámos ao início, quando escreve, “A paisagem começa por uma
noção, mesmo que vaga ou confusa, de uma distanciação e de um
perder de vista que tanto diz respeito ao olho físico como àquele
do espírito” in Au fond des images:
103). Mais à frente, acrescenta o seguinte, confirmando o
local especial da paisagem: “o país [pays,
na sua valência de “terra”, “lar”] representa a ordem do
sentido imposta à própria terra, afastada tanto da ordem da
linguagem como da da natureza” (109). A paisagem, então, é algo
que tanto pertence ao mundo do qual somos também parte como é
resultado de uma operação de abstracção totalmente humana,
informada que é pelo nosso pensamento, emoções, ou acções. O
narrador deste livro, ao regressar à terra, vai fazendo toda uma
série de considerações que se prendem com tradições, costumes,
usos da terra e comportamentos agrícolas e ritualísticos, e as
várias funções que as pessoas com que se cruza, sejam antigos
amigos, colegas ou desconhecidos, cumprem, e que são ora mais ora
menos contrastantes com a distância da sua vida, longe da terra.
Um
dos pontos de pormenor curiosos é a breve história da relação
destes povos com as montanhas – e o seu símbolo metonímico, a
flor conhecida por Edelweiss, ou “flor das neves” - que encerram
o vale como se uma caixa se tratasse. Os aldeões pouca ou nenhuma
importância lhe davam, uma vez que se tratada de um terreno
incultivável, áspero, imprestável, “habitado pelo diabo”, e
onde se perdiam de quando em vez algumas almas. Foi necessário que
uma nova classe de cidadãos, mais endinheirados, com tempo livre, no
século dezanove, e provindo de outras paragens, e paisagens
(nomeadamente, “a vidade”), trouxessem um interesse totalmente
diferenciado do “uso imediato” dos locais: interesses
científicos, informados pela geografia, geologia, botânica, etc.,
ou mesmo o desporto. Mas seria esse interesse que influenciaria a
transformação da paisagem, precisamente, erguendo o olhar, digamos
assim, e que levaria à construção de hotéis, viagens organizadas,
e a emergência do jardim alpino assim como o uso, quase doentio e
obsessivo, da edelweiss como símbolo das mais distintas organizações
(de divisões militares nazis a queijos). Nancy escreve que “a
paisagem é o contrário de um fundo: o 'país' é totalmente
superfície” (112). Este símbolo é, assim, uma superfície muito
fina, capaz de ser reempregue vezes sem conta, não tendo em si mesma
qualquer significado que se sustente autonomamente para além dos
seus usos. O mesmo poderá ser dito de toda a paisagem desta vila:
afinal, não existe nenhum sentido profundo, verdadeiro e inalienável
em relação a quem o molda. Não estamos a acompanhar o narrador
para descobrir a “verdadeira Sierre”, mas antes a Sierre “dele”,
moldada pelo regresso e reencontro.
A
relação com Macha é explorada de modo bastante simples. Não há
propriamente efeitos de dramatismo com a doença dela, nem tampouco
um final decidido. Na verdade, fica-se num espaço de grande
ambivalência sobre o “fim” dessa história. Ainda assim, os
prólogo e epílogo criam um arco bem delineado, com a chegada e a
partida do narrador daquele lugar, apesar da estrutura do livro dar a
entender que várias viagens se efectuaram, uma vez que cada capítulo
é intitulado com o nome de meses desirmanados (Fevereiro,
Maio, Agosto, Novembro). As elipses não são
estudadas, pura e simplesmente dividem essas visitas, cada uma delas
marcada por considerações associadas ao clima do momento, às
acções sazonais, ao estado de Macha, e às opções de visitas e
passeios das personagens.
No
tal museu de arte moderna, o narrador observa trabalhos de autores
mais tradicionais e outros mais contemporâneos, alguns seguindo
regras clássicas de representação, outros procurando instrumentos
mais experimentais. Assim temos Caspar Wolf, Oskar Kokoschka, Equipo
57, Alois Lichtsteiner, Thomas Ruff, Walter Niedermayr, a dupla
Monica Studer e Christoph van den Berg, etc. Como dissemos também, o
autor representa-os a todos, no interior do seu traço, em linhas
quase diáfanas, azuis, sob fundos brancos, mas não imaculados
(nota-se uma espécie de névoa da sujidade do lápis azul). Essa é
uma maneira de os colocar num mesmo plano de representação e
aproximá-los nos seus gestos, o que é corroborado pelas palavras:
“os autores destas peças perpetuam a grande tradição dos
predecessores, entregando-nos ainda uma interpretação monumental da
coisa. É verdade que se trata de uma montanha reinventada, mas ainda
assim é uma montanha que nos é enfiada pela garganta abaixo”.
Os
próprios desenhos de Berthod, que mais se assumem como breves,
sumários rascunhos que servem para garantir a presença do que
representam iconicamente (recordando abordagens tão diversas como as
Jules Feiffer ou de António Pedro Monteiro Ribeiro), parecem querer
descartar qualquer possibilidade do monumental, para antes sublinhar
o passageiro, tanto o das coisas quotidianas, mundanas e mortais
(que podem ou não ser vistos como sinónimos, sendo esse um dos
temas ocultos do livro) como daqueles objectos que poderão parecer,
à primeira vista, teoricamente desarmada, como perenes (tal como a
própria “paisagem”).
De
facto, o narrador não quer dar-nos mais uma “narrativa da
montanha”. Por isso centra-se nos gestos mais quotidianos no sopé
da montanha, nas esplanadas dos cafés e nos balcões dos bares, ou
nos possíveis pequenos confortos dos encontros com Macha. Não é
que ele abdique de passear na montanha ou vislumbrar um panorama
rasgado e alto sobre a vila, mas procura ganhar (e devolver-nos) uma
outra perspectiva. Incorporam-se e citam-se documentos “externos”
à obra, como mapas e vistas da aldeia dos séculos XVII-XVIII,
poemas de Rilke, cujo túmulo é visitado e um dos poemas sobre a
paisagem é desmontado com um misto de ódio e admiração. Quando
ele visita uma casa-escultura-instalação dos artistas irmãos
Chapuisat, o narrador pensa que a estranha estrutura erigida, que
derruba todas as noções de escala, direcção e orientação
espacial, se trata de um comentário político, mas um dos artistas
diz antes tratar-se de uma espécie de “fantasia de miúdo”, um
espaço apartado dos demais. Ainda assim, o narrador considera que o
resultado – seja por uma via ou outra – é o mesmo, e isso acaba
por ser também um comentário sobre o próprio acto de criação de
Berthod: um livro que é uma forma de dar a ver uma paisagem,
constituindo-a como tal, para a alterar nessa constituição.
Nota
final: agradecimentos a Jan Baetens, pela oferta do livro.
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