Permitam-nos
uma história enlatada das transformações da memória da banda
desenhada.
O
facto da banda desenhada se ter desenvolvido, numa larga fatia da sua
história, associada à imprensa, levou à noção de que ela mesma
seria uma forma de arte necessariamente efémera, ou essencialmente
constituída nessa sua efemeridade. À margem dos luxuosos álbuns
publicados na Europa do século XIX que marcaram a sua primeira
presença, e depois as acções de coleccionadores de tiras ou
páginas de jornais durante a primeira metade do século XX, e
algumas antologias em capas cartonadas, a esmagadora maioria da
produção era votada à leitura de um só dia, e não propriamente a
serem recompensadas pela possibilidade da releitura. Isso levou a que
durante muito tempo a banda desenhada fosse sofrendo de uma espécie
de amnésia, como escreveu Groensteen num seu livro, em que apenas
fãs especializados conhecessem algo para além da produção da sua
própria geração ou a anterior, muitas vezes até de modo diferente
dos autores. Com as transformações editoriais, económicas e
sobretudo estéticas que viriam a moldar uma nova vida da banda
desenhada sob os formatos de livro, essa existência passou a ter
outros contornos, mas a relação com o passado ainda se mantinha
algo complexa, desagregada, isolada. Apenas mais recentemente é que
uma tendência mais certeira tem assegurado uma recuperaçãoda memória,
sobretudo através do acesso a edições integrais de determinadas
séries, títulos ou autores. Mas a acessibilidade crescente aos
textos que compõem essa história também implica a obrigatoriedade
de um mapa. Comics,
a Global History,
é um desses mapas possíveis, e promete uma navegação suave e
lata. (Mais)
Qualquer
novo leitor, ou mais experienciado também, que deseje hoje procurar
informar-se e aprender sobre a história da banda desenhada tem muito
por onde escolher, conforme o foco que deseje. Existem monografias
nacionais, livros focados num período ou género ou tema, artigos
que perscrutam pormenores de grande importância, guias e listas
breves, etc. E mesmo colocando de lado os volumes de escrita e
investigação académica, que não chegam a um público muito
alargado, há uma grande escolha por volumes mais populares e de
qualidade. The
Great Comic Book Heroes
de Jules Feiffer continua a ser um excelente relato pessoal do
advento do mainstream
nos anos 1930 e 1940 das revistas de banda desenhada. O projecto 1001de Gravett
isola os objectos, mas poderá criar uma ideia de “wish list” que
não é de todo displicente. Se o leitor se interessar
particularmente pelas tiras de banda desenhada norte-americanas, tem
uma concatenação de informação de excelência, em The
Comics
de Brian Walker, e se for fã da Pilote,
ou da Métal
Hurlant,
ou da (A
Suivre),
da EC Comics, da Marvel ou DC, tem uma série de volumes que lhes são
exclusivamente dedicados. Não é de surpreender porém o
afunilamento a um só território desses projectos, o que, no fundo,
contribui pouco para o advento de uma memória global, integrada, que
demonstre o trânsito que se verificou em termos criativos, mesmo na
ausência de verdadeiros canais de distribuição e tradução. Este
volume tenta precisamente criar essas pontes necessárias.
Acreditamos
intensamente que a emergência de uma consciência de arte da parte
da banda desenhada ainda se encontra em desenvolvimento. Apesar de em
muitos lugares se dizer da boca para fora que se trata da “9º
arte”, o seu comportamento e estruturação conceptual enquanto tal
ainda não está garantido. E parte do trabalho que há a fazer passa
necessariamente pelo pensamento que lhe poderá estar associado:
analítico, crítico, histórico. Mas por história
entendemos uma passagem por verdadeiros instrumentos históricos, de
contextualização local e global, por integrações em sistemas de
produção, económicos, sociais e políticos, e sobretudo
enraizamentos culturais. Não é simplesmente criar listas e
arrolamentos de informação.
Dan
Mazur e Alexander Danner citam o modelo de H. W. Janson com a sua
monumental História
da Arte
(que muitos alunos das faculdades de belas-artes, e outros,
reconhecerão como, durante largo tempo, a maior referência livresca
dos cursos). Isto poderia levar a uma discussão sobre os méritos da
obra de Janson e as diferenças com outros projectos (Gombrich, por
exemplo), mas a ideia seria criar um volume concentrado, com imagens
da melhor qualidade possível, e que pudesse servir de referência
global. Uma perspectiva sobre a produção da banda desenhada em todo
o planeta, apresentada em textos corridos, legíveis e agradáveis, e
que procure não tanto apresentar uma versão definitiva nem uma
história única e absoluta desta forma de arte, mas que providencie
com um caminho equilibrado e digno, atento à sua diversidade.
A
grande comparação seria feita com os dois monumentais volumes de
David Kunzle, The
History of the Comic Strip,
de que um terceiro havia sido prometido nos anos 1990 mas jamais
viria a ser concretizado (nem nunca o será). Em parte, poder-se-ia
dizer que este livro ocuparia uma metade do nicho que esse terceiro
hipotético volume viria a tratar. A grande diferença é que parte
do trabalho de Kunzle, sobretudo no que diz respeito ao primeiro
volume, era fruto de investigação primária e original, e Kunzle é
um historiador propriamente dito, com todos os instrumentos dessa
prática disciplinar. Um terceiro volume, que compreendesse a
produção do século XX, teria de balizar-se por entre todo um
conjunto imenso de documentação existente, igualmente histórica, e
possivelmente não viria trazer propriamente dimensões de nova
informação. Não é esse, porém, o objectivo deste livro. O seu
fito é providenciar um texto claro e possível de ser lido
organicamente, e com o qual ter uma perspectiva, o mais alargada
possível, da produção mundial de banda desenhada. Não é um
“coffee table book” no sentido de ter contornos físicos de luxo
e textos de consulta rápida (se bem que isso seja possível), mas
para leitores interessados em ler uma narrativa desse
desenvolvimento.
Em
primeiro lugar, os capítulos estão organizados por ordem
cronológica, mas geograficamente vão-se revezando entre si,
estruturando-se numa espiral cujos três centros são, como não
poderia deixar de ser, os Estados Unidos, o Japão e a Europa (se bem
que esta seja entendida maioritariamente como França e Bélgica,
sobretudo a primeira, uma vez que estamos a falar de pós-1968). Um
capítulo versa os underground comix e seus herdeiros, outro a mangá
mainstream,
outro ainda o advento da banda desenhada adulta no espaço
francófono, uns quantos dedicando-se quase com exclusividade à
Garo,
mais à frente à dita “Invasão Britânica” no mercado
mainstream
norte-americano na segunda metade dos anos 1980, e ainda aos
“alternativos” dos anos 1990. Esta escolha não deixa de ser
acertada, uma vez que esses são, sem qualquer dúvida, os principais
pólos de produção em termos de quantidade e influência, mesmo que
possamos encontrar noutros locais grupos de extrema importância em
termos dos contributos estéticos e/ou políticos nesta forma de arte
(pensemos na escola argentina e nos italianos de Veneza, na Espanha e
na Inglaterra dos anos 1980, a Coreia dos anos 2010), que também são
mencionados. Não é este ainda o gesto que atrairia outros centros
de produção – o português, inclusive – para um foco
verdadeiramente internacional e desapaixonado, mas perguntamo-nos se
alguma vez o será. Por isso é que convém sempre estar atento a
antologias e/ou monografias nacionais, como asde que falámos noutro texto.
As lições desses, e de outros, volumes, não se repetem aqui, mas
também se compreende que parte da razão reside no facto de que não
existe um acesso a versões traduzidas, e os idiomas são ainda um
obstáculo entre países. Uma arte como o cinema tem mecanismos de
circulação e divulgação com os quais não há comparação no que
diz respeito à banda desenhada, apesar das supostas afinidades
sociais. A título de curiosidade dos leitores, com a excepção de
Pedro Burgos e João Paulo Cotrim, cujos nomes são colhidos por
terem sido publicados na magnífica Le
cheval sans tête
(Amok), nenhum outro autor português é citado.
Os
exemplos passam necessariamente pelos grandes nomes que têm ocupado
a atenção da esmagadora maioria dos livros e canais, como Pratt,
Moebius, Moore e Burns, mas também se incluem aqueles projectos mais
experimentais que têm angariado uma atenção crítica mais
especializada, como The
Cage,
de Martin Vaughn-James, ou títulos algo obscuros mas que são
excelentes exemplos de livros “esquecidos”, como Clan
Apis
de Jay Hosler. Existem muitos exemplos, claro está, que alguns
leitores – incluindo o que escreve estas linhas – não
conhecerão, mas uma atenção ou dietas regulares e variadas de
banda desenhada são um garante que as “diferenças” entre os
conhecimentos serão menos vincadas do que junto àqueles leitores
que se tenham atreito a determinados géneros, pólos de produção
ou canais de distribuição.
Não
se tratando de uma história alternativa, também não se pode dizer
que as escolhas revelem um provincianismo demasiado vincado. Há um
equilíbrio nítido entre as produções mainstream
e alternativas norte-americanas e francófonas, os muitos géneros da
mangá, e uma listagem de autores italianos, espanhóis, alemães,
argentinos, britânicos que torna Comics,
a Global History
num projecto competente. Claro está que podemos apontar ausências
de focos preferenciais, como o pólo de Belgrado, a produção
brasileira, alguns super-heróis mainstream
de tempos mais recentes, um autor finlandês ou tendências globais
contemporâneas, mas essas distribuições terão sempre lugar, e
importam menos do que compreender a fluidez, concertação e justiça
que se consegue criar com os elementos presentes. Isso, parece-nos, é
conseguido.
Existe
um bom número de questões que são apresentadas de forma sumária
que necessitariam de uma maior contextualização crítica, é
inevitável. Apenas a título de exemplo, a velha questão da
nomenclatura de “linha clara” para falar do estilo de Hergé e de
outros artistas. Mazur e Danner não têm oportunidade para explicar
a fundação e uso irónico desse termo, que apenas posteriormente
seria empregue com maior seriedade e com valor académico, mas também
se compreende que nesta abordagem mais reduzida, não se trata tanto
de um acto redutor em si, como de abreviação das questões, sem as
complicar. Os leitores serão sempre remetidos para outras leituras,
uma vez que os autores vão fazendo uso explícito de outras fontes,
como os livros de Lecigne ou de Menu, Waughn ou Hatfield, como
ilustração disso. E a bibliografia não deixa de ser
impressionante.
Todavia,
estas abreviações não impedem os autores de mencionar e expor
alguns dos aspectos controversos associados às histórias integradas
na narrativa que criam: as censuras, as inimizades, os
descontentamentos, os aproveitamentos, pela parte das editoras
comerciais, das tendências criadas por círculos mais independentes,
mostrando como o desenvolvimento estético pode ser absorvido e
depois emasculado pelas forças económicas, etc. E a escrita dos
autores não deixa de ter alguns momentos de análise concentrada,
belamente apresentada e pejada de referências intra ou
inter-disciplinares, o que permite uma navegação por uma larga
cultura não apenas condizente à matéria como convidativa a uma
compreensão enquadrada num panorama bem alargado.
Poder-se-ia
dizer que, apesar de nas últimas páginas se abrir um espaço para a
discussão de webcomics,
que este tema é sub-aproveitado. No entanto, apenas um outro volume
poderia fazer jus à produção deste “capítulo” (dizemo-lo
assim pois “género”, “formato”, “veículo” ou
“tecnologia” não são termos suficientemente claros ou exactos;
o que estamos a empregar tampouco, que é porém vago de maneira a
admitir elementos de todos os outros de um modo culturalmente
complexo, ou precisamente traduzindo essa ideia: a de uma cultura).
Tal como ocorre em relação a outros temas ou famílias, o que os
autores escrevem sobre estes trabalhos é claro, pertinente e
apontando às questões principais, e os exemplos dados são
estimulantes e variados, se bem que posam estar, como sempre,
ausentes exemplos preferidos por leitores individuais.
Uma
vez que o espaço é reduzido, não esperamos que haja momentos de
descrição exaustiva ou um empilhamento de informação. Mesmo assim
os autores conseguem numa frase dizer o que realmente importa
memorizar sobre um autor ou um título. Desta maneira, evitando as
entradas à la dicionário e/ou enciclopédia, mas permitindo alguma
fluidez narrativa e integrada, a leitura dos textos é muito mais
fluida do que se poderia esperar. As legendas alargadas das imagens,
as quais podem ocupar uma página inteira, e as mais das vezes sempre
representando pranchas completas, são outros excelentes exercícios
de breves análises formais e críticas. Os leitores são assim
convidados a lerem este volume de três maneiras possíveis: em
rápidas consultas focalizadas, no interior de cada um dos capítulos,
ou na sua inteireza.
Dependendo
do sucesso deste projecto, é possível que haja um “primeiro”
volume (até 1968), ou até mesmo novas versões deste volume, que
pudessem expandir alguns dos temas e pontos de fuga,e corrigir
eventuais erros ou omissões demasiado criticadas. Seguramente que
também poderá vir a estimular outros autores a tentar projectos
similares, construídos a partir de perspectivas diferentes ou até
mesmo descentradas, o que seria importantíssimo.
Como
é hábito no Lerbd,
conduzimos uma curta entrevista por email com os autores. No entanto,
não a traduziremos, disponibilizando-a somente no inglês original
no The
Comics Alternative,
a que podem aceder directamente aqui.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro, e aos
autores, pelas respostas à entrevista.
Sem comentários:
Enviar um comentário