Já
noutras ocasiões falámos sobre a possibilidade de pensar a banda
desenhada não tanto enquanto arte, uma disciplina expressiva
passível de ser empregue para a criação de objectos estéticos,
ora mais ora menos controlados por limites genéricos e experiências
tradicionais, ou informados pelas mais díspares noções advindas de
todo o campo cultural, mas como linguagem. Isto é, um
conjunto mais ou menos expectável de elementos formais que pode ser
empregue para outros fins, tais como os comunicacionais. É isso o
que nos leva a compreender, por exemplo, certos usos de um estilo
“industrial” ou “simples” menos numa ideia de reescrever a
própria disciplina do que para fazer passar uma vontade (propaganda,
publicidade, informação institucional). El Deafo viverá num
território entre essas duas atitudes, que de resto jamais são
estanques ou absolutas. (Mais)
Este
é um livro dirigido a um público infantil, mas que já seja capaz
de ler autonomamente e também capaz de começar a tomar decisões
profundas de forma autónoma, decisões que digam respeito às suas
formações enquanto cidadãos e pessoas. O livro segue uma menina de
uns 5 anos chamada Cece que ensurdece aos quatro anos. Rapidamente
ela terá acesso a um mecanismo, pesado mas eficaz, que lhe dá
acesso ao mundo dos sons, o Phonic Ear (uma marca registada), mas que
lhe traz um sinal de “diferença”. Aos poucos, essa “diferença”
torna-se um problema para a sua relação com os colegas da escola,
os amigos na rua, mas Cece construirá dois caminhos, também eles
eficazes, para superar esses aparentes obstáculos: a imaginação,
em que ela se transforma numa super-heroína chamada El Deafo
(apropriando-se e re-empregando, portanto, um dos nomes que lhe
haviam chamado) e a perseverança, através da qual não hesita em
procurar estabelecer fortes laços com aquelas que ela considera
serem as suas melhores amigas.
Em
larga medida, este é um projecto autobiográfico, mas o qual toma um
número de liberdades criativas (necessárias?) para tornar o texto
num edifício literário. Algumas dessas liberdades são
conta-corrente da prática autobiográfica, como a alteração de
nomes e circunstâncias, de forma a providenciar uma mínima
distância (e defesa de implicações legais, igualmente). Outras já
a aproximam de outros métodos da banda desenhada, como a escolha,
por exemplo, de representar todas as personagens como coelhos. Esta
escolha de personagens teriomórficas recordará as práticas da
Disney, de Crumb, de Maus e de uma mão-cheia de outros
projectos, cada qual com os seus propósitos bem distintos, uma vez
que são pautados por outras vontades políticas e estéticas. Se de
art spiegelman se poderia dizer que há uma herança – ou pelo
menos um trabalho num espaço de possibilidade que foi inaugurado por
ele – da revisitação da memória através destes filtros, já a
relativa falta de gravidade e humor presente em todo o livro o
aproxima sem pejo de géneros infanto-juvenis. Na verdade, El
Deafo pretende desdramatizar a situação de Cece,
transformando-o num testemunho de uma vida sem entraves de maior,
sobretudo no que diz respeito à sua identidade e imaginação.
O
que queremos dizer com isto? É que, apesar de haver um ponto central
no livro – a surdez de Cece, que a afectou aos quatro anos -, ela
recusa-se que seja essa surdez o traço definidor da sua
pessoa. É quase inevitável que quando falamos de alguém, que
utilizemos aquele traço que, à nossa visão, é o que mais
rapidamente a descreve, mas as mais das vezes esses descritivos são
precisamente os sinais que estabelecem uma espécie de diferença
ontológica entre essa pessoa e todas as outras, que carregarão
sinais de “normalidade”: poderá estar associado a deficiências
físicas (surdez, coxear, cegueira), a uma nacionalidade (o “russo”,
o “brazuca”, o “franciú”), a sexualidade (a lésbica, o
gay), ou mesmo a cor de pele (o “preto”, o “chinês”). Mas é
sequer uma definição? Diz-se alguma coisa em concreto da pessoa em
si ao se usarem essas palavras tão gerais? Cece sabe que a
esmagadora maioria dos olhares dos outros se concentrarão na sua
surdez, e que esse traço será, em primeiríssimo lugar, um
obstáculo, quer de afastamento – as pessoas que se recusam
a falar com ela ou a escolhê-la para um jogo por causa da surdez –
quer de aproximação exagerada – aquelas que querem parecer
simpáticas mas não lhe falam de outra coisa que não a surdez, a
sua “diferença”, ou que se mostram insistentes sobre essa
dimensão, sem querer sequer procurar outras.
El
Deafo, então, é o relato da forma como nesses primeiros anos de
transformação física e de relação com o ambiente circundante, e
as pessoas que o habitam, Cece foi batalhando, mais do que negociar,
para ocupar um espaço decisivo, singular e pessoal. Susan Sontag, no
parágrafo introdutório a A doença como metáfora, escreve o
seguinte: “A doença é o lado sombrio da vida, uma cidadania bem
pesada. Ao nascer, todos nós adquirimos uma dupla cidadania: a do
reino da saúde e a do reino da doença. E muito embora todos
preferíssemos usar o bom passaporte, mais tarde ou mais cedo cada um
de nós se vê obrigado, ainda que momentaneamente, a identificar-se
como cidadão da outra zona”. Este livro combaterá precisamente a
utilização das doenças como metáforas, que se tornam como portais
que permitem juízos de valor, morais, políticos sobre os cidadãos
“saudáveis” que momentaneamente utilizam o “mau passaporte”.
Todavia, é ainda mais grave que certo número de pessoas atravesse
essa fronteira cedo na vida de maneira a que quase sejam
permanentemente identificados com essa outra cidadania. El Deafo
quer mostrar como, mesmo habitando-se a zona de uma doença, ela é
isso mesmo, apenas uma doença, que pode ou não ser superada em si
mesma, mas que não implica necessariamente problemas em nenhuma das
outras facetas do ser humano, sobretudo aquelas que dão acesso à
dignidade humana e a certas necessidades básicas como as da amizade.
E é esta última necessidade o grande objecto da busca incessante de
Cece, ao longo da história.
Uma
vez que se trata de um livro cujo público-chave são leitores mais
jovens (digamos entre os oito a dez, onze anos de idade), não se
pode esperar que a autora procure ambivalências e zonas cinzentas.
Bem pelo contrário, tudo é bastante nítido e claro e afirmativo.
Claro está que se poderia imaginar que trabalhar a ambivalência é
uma mais-valia mesmo junto a um público mais jovem. Sem dúvida, e
bastas vezes falámos aqui de autores que o fazem com uma mestria
inigualável, de Shaun Tan a Oliver Jeffers, ou Maurice Sendak. Mas
este em particular quer precisamente criar uma narrativa clara e
positiva sobre o tal traço de Cece, que sendo aquilo que a funda
enquanto personagem, rapidamente se torna algo a se dissipar.
Compreender-se-á, então, o desejo que o livro terá em contribuir
de uma forma programática, mais do que em termos de revolução
estética. Por isso a figuração é clara, as cores são límpidas,
a construção das páginas de uma navegabilidade muito evidente e
sem grandes complicações. Mesmo assim, a autora deixa claros os
momentos de fantasia (as acções de El Deafo), jamais permitindo que
a personagem perca o pé da realidade. As projecções das suas
fantasias, os seus medos e sonhos, são permanentemente apresentados,
fazendo parte igualmente da matéria com que vai crescendo, mas não
invadem de forma disruptiva a sua vida de vigília. E os
momentos-chave em que isso acontece servem para mostrar, também de
forma clara, que são mecanismos de diálogo entre ela e o mundo.
Assim sendo, estamos longe do tipo de discursos que fundaria quase este género, de Binky Brown a Spiral Cage, de L'ascension du Haut Mal a Cancer Year e Stitches. Nada disto significa que essas outras obras - maiores, na verdade, em termos culturais e em enquadramentos mais alargados - não sejam correctas na sua exploração dos aspectos menos felizes, das crises despertadas pela presença de uma doença e a incompreensão dos demais. Simplesmente as experiências das pessoas são sempre, sempre singulares, e haverá aquelas que não resultaram em destruições em torno, caminhos minados para o resto da vida, divórcios completos da felicidade. El Deafo é, nesse caminho, um relato positivo.
Livro
simples mas inspirador, de uma linguagem clara mas para pôr os
leitores a caminho de alguma realidade dura, sem tragédia mas
coragem em ser directo, El Deafo poderá não revolucionar a
arte em si, mas é um gesto que traz sem dúvida alguma um aumento da
linguagem da banda desenhada, enquanto canal para todas as vozes.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta de uma prova do livro;
imagens a cores fornecidas pela mesma.
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