Se bem que esta não seja a primeira experiência da escrita
de Cliver Barker na banda desenhada, e ele próprio tenha-a criado já
directamente, em tempos recentes com a continuação oficial das personagens
originais de Hellraiser/The Hellbound
Heart, este é o primeiro título em que apresenta material original e
exclusivo para este meio expressivo. Next
Testament não se baseia em nenhum livro ou esboço para filme, tendo nascido
exclusivamente para a banda desenhada (no quadro dos desejos do editor da
Boom). Na verdade, Barker conta com a ajuda de Mark Miller, um veterano da
criação de cinema mas também de banda desenhada, e que já havia trabalhado nas
versões de banda desenhada de Hellraiser.
Neste caso particular, a personagem principal nasceu da imaginação de Barker
mas com uma ajuda preciosa de Miller, e a escrita em si, o desenvolvimento da
intriga e dos pormenores diegéticos foram lavrados por ambos. (Mais)
O livro parte de um ponto de partida simples. Deus existe, é
um ser físico, palpável, que teve um papel na criação do mundo mas após o
embate que teve com dois outros deuses, seus irmãos, foi aprisionado durante
dois mil anos. Um milionário, Julian Demond, tem uma visão que lhe permite libertar
este ser, que descobrimos chamar-se Wick. Então: Deus regressa à Terra. Aleluia.
Problema é que Deus se comporta mais como o Diabo ou uma criança mimada.
A ideia dos autores é explorar uma figura de deus que de
benévolo não tem nada. E, presumimos, tentar compreender como é que o mundo
responderia face à existência efectiva de um deus, menos metafísico e mais
mãos-na-terra, cruel, déspota e com um défice de atenção. Um casal jovem, o
filho do milionário e a sua namorada, são os únicos sobreviventes do primeiro
momento de interacção com humanos de Wick, e a partir daí assumem precisamente
esse papel: o de sobreviventes num novo mundo que vai sendo destruído aos poucos,
fruto de uma potência e consciência de imensa escala, ainda que jamais seja “omni-“.
Os limites de Wick apenas permitem sempre uma nesga de possibilidade de escape.
A artista sul-coreana, Haemi Jang, é algo devedora de toda
uma série de traços, dinamismos e composições mais próximos da mangá de terror
contemporânea do que dos comics
norte-americanos. No entanto existem inflexões típicas deste outro mercado,
como a cor, a estruturação da acção, mais célere e concentrada. Em muitos
aspectos, as feições e expressões das personagens obedecem mais a fórmulas
consabidas do que propriamente a uma investigação muito pessoal, mas são
suficientemente claras e nítidas nesse mesmo propósito. Podemos mesmo dizer que
é algo inevitável criar comparações imediatas com alguns autores, tais como Minetaro
Mochizuki, de Dragon Head: também
essa história apresentava um jovem casal deambulando por um mundo destruído e
derrotado “por dentro”, onde as dicotomias do bem e do mal são jogadas de
maneira clara.
Mas esse é precisamente um dos problemas com Next Testament. Talvez seja mesmo uma
impossibilidade lidar com temas desta natureza sem criar dicotomias claras, um
problema que já havíamos identificado como o que impedia a série Testament de se tornar algo mais
interessante. Muitas séries existem que lidam com temas idênticos, em que Deus
ou “Deus” ou deus (ou outra variação) são protagonistas, mas quase sempre se
procuram estratégias de choque (Preacher),
violência total (Supergods) ou
literalismos desinteressantes. Já havíamos falado disto quando mencionámos Punk Jesus e God is Dead.
Este Deus, Wick, em vez de se tornar uma criatura de
insondáveis mistérios, acaba por ser apenas uma besta-quadrada, mimada e
facilmente aborrecida, virando a sua violência de menino malcomportado para com
os seres humanos. Portanto, tal qual o pirralho do Deus dos primeiros livros da
Bíblia, ou o dito Deus abrâmico. Das birras,
exigências, pedidos insanos, que tanto cria as coisas como as destrói, e parece
estar apenas interessado em que o amem praticamente sem desvio de atenção. Só ficará
ofendido com essa descrição quem nunca leu o dito Antigo Testamento de
ponta-a-ponta, os seus vários livros e as histórias pejadas de violência
infundada, sexo, morticínio, guerras sagradas, genocídio, torturas, traições,
ditos-por-não-ditos, incesto, luxúria, e bastas vezes, bastas vezes pelas
personagens que noutros descritivos seriam chamados de “heróis”. Quando não
pelo próprio Deus. Não há qualquer plano estranho escondido, e apenas uma
constante birra por atenção. A personagem em si, portanto, não evoluiu um
quanta, e se isso poderia ser algo mais do que expectável num ser divinal e
eterno, claro está, não constitui boa matéria para uma história longa de 12
números. A solução encontrada para a resolução da sua maléfica presença na
Terra não traz quaisquer surpresas: se há mecanismo digno do nome de deus ex machina, é o que sucede em Next Testament, ainda que os deuses
venham aos pares.
Como se sabe, deux ex
machina é a expressão que se emprega usualmente na crítica literária (e/ou
outra) quando ocorre um elemento na diegese que contribui significativamente
para o desenlace de uma situação, mas cuja presença não era nem adivinhada nem
preparada pelos elementos anteriormente presentes. Isto é, em vez de ser algo
que surgisse como fazendo intrinsecamente parte dos elementos iniciais ou fruto
do desenvolvimento deles no interior da intriga (por via psicológica, valoração
ou outra), trata-se de uma adenda, vinda do exterior, que cortasse o nó górdio.
Next Testament recorre a isso duas
vezes, pelo menos: num primeiro momento, como forma de explicatio da origem dos nomes dos três entes divinos que
testemunharemos como reais nesta história, e depois na chegada e manifestação
dos dois outros, Filt e Unan, que combaterão a força magnífica e terrífica de
Wick. Gostaríamos de dizer que essas três entidades encetariam discursos
ontológicos e filosóficos entre si, descobrindo as necessidades das suas
naturezas e poderes, mas a única coisa que sucede é uma sessão de porrada. Pouco mais.
As cenas finais de acção são isso mesmo, embates físicos –
estes seres são vistos menos como entidades metafísicas e mais como criaturas
de um imenso poder – que em mais do que um aspecto se assemelharão a combates
de super-heróis, com a agravante de que o que se passa em pormenor nunca é
claro. Os poderes de cada um não são claros, e apesar de haver uma ou duas
estratégias de combate adivinhadas, nada é nítido: apenas sabemos que tem
início o combate, que há momentos de tensão maior e uma conclusão. Pouco mais.
Tristan e Elspeth, o tal casal, são as personagens humanas,
à flor da humanidade até, que servem de foco ao que vai acontecendo na Terra,
mas também acabam por se tornar o espartilho de atenção da história – jamais estudaremos
verdadeiramente o que vai tendo lugar no resto do mundo – e serão eles a chave
da libertação ou chamamento dos outros dois deuses criadores, que aprisionaram
Wick no passado e que com ele novamente combaterão para salvar a existência.
Outro problema geral de Next
Testament é que, afinal, o padrão da trindade é mantido, e todos os papéis
mais ou menos expectáveis de uma imagem tardia e que tenta organizar uma
multiplicidade de imagens: a de um deus tribal semita das montanhas, a de outras
figuras mais menos derivadas da mesma área e quadro regional-étnico, da antiga
Babilónia, desenvolvimentos ainda mais tardios (o diabo europeu, entidades mais
benfazejas e espirituais do Oriente mais distante), as várias linhas de desenvolvimento
do texto bíblico, etc. A criação de uma nova mitologia, da qual derivaria por
distorção a que herdámos apenas acrescenta à confusão. Claro que não é papel
desta série de banda desenhada fazer hermenêutica séria, ou criar um quadro
verosímil das origens da religião (ou religiões) monoteísta em voga nos nossos
dias, nem tampouco é o seu papel fornecer-nos com um sólido argumento
teológico, mas uma espécie de consistência e capacidade de absorver e manipular
pela ficção essa mesma matéria existente tornaria o projecto mais maduro e
apelativo a um público mais informado, julgamos nós. Assim sendo, ficamo-nos
pela aventura de grandes paradas cósmicas (ou pelo menos, planetárias), mas
cujas reverberações se mantêm à tona da superfície. No fundo, o foco
concentrado num número tão reduzido de personagens, apesar do envolvimento de
toda a escala do mundo, acaba por o tornar uma aventura de consequências
individuais.
A obra de Cliver Barker parece ser marcada precisamente por “hit
and misses”, e se há momentos em que o seu contributo para o género do horror e
da fantasia, e além deles, de um certo imaginário que acabaria por influenciar
outras esferas, é inegável, outros projectos são algo mais negligenciáveis. E se
houve ainda tentativas na banda desenhada que eram bem cumpridas artisticamente
(com John Bolton, Scott Hampton, Craig Russell, Brereton), outras houve que
levantavam questões de limites do bom gosto (Primal). Next Testament
tem uma abordagem visual interessante, e um princípio promissor, mas
infelizmente o seu desenvolvimento leva à conclusão anterior: é uma boa ideia e
pouco mais.
Nota final: já tendo sido lançado o primeiro trade, o segundo adivinha-se no início
de 2015 e, mais tarde, talvez apenas um só volume. A série em si, sob a forma
de comic books, chegou ao fim no
passado mês de Setembro. Imagens usadas da internet.
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