Até
certo ponto, Cidade suspensa tem sido “vendida” como uma
espécie de grande regresso, de um retorno significativo de um autor
que andava afastado das lides há cerca de trinta anos.
Concomitantemente, o livro deveria ser visto talvez como uma espécie
de magnum opus que foi sendo criada a lume brando, ou pelo
menos com um ímpeto que acumulava uma vontade de expressão
acalentada durante esse tempo, e que traria logo de imediato uma
patina de valor acrescentado. As mais das vezes isso serve para criar
um discurso hiperbolizado igualmente, e carente de um olhar
analítico, e por isso crítico. O que importa é ler a obra, e
colocar essas questões também elas, de certa forma, suspensas. (Mais)
Talvez
na impossibilidade de fazer jus à complexa trama do livro, que
apresenta uma geometria entre um grupo de amigos de contornos
cambiantes, e facetas que se alteram ao longo de décadas (a acção
em si passa-se balizada pelos anos de 1962 e 2006), qualquer sinopse
seria um exercício de incompletude. Se bem que, como veremos, a
tessitura de Cidade suspensa seja construída por fragmentos,
é essa mesma natureza que lhe permite espraiar-se tão alargadamente
no tempo, tal como a atravessar um espaço que vai desde a cidade de
Lisboa ao Saara tunisino, Berlim e Luanda, mas ainda deixando fiapos
de consequências noutros locais e tempos. E a razão da capa
encontrar-se-á neste perfil, já que nos apresenta uma imagem
compósita com todos os ingredientes da história: os reais (ou
diegéticos) e os imaginários, os experienciados pelas personagens e
aqueles que vivem apenas na superfície do texto. A própria “cidade”
do título não corresponde a nenhuma daquelas atravessadas pelo
protagonista ou os seus amigos, sendo antes um construto mental que
metaforiza uma espécie de “queda” da personagem principal, ao
mesmo tempo que traduz literalmente um sonho e, talvez, sirva de
charneira na mudança de uma sua consciência.
Se
bem que possamos insistir existir uma intriga, até mesmo uma
“intriga internacional”, com alguns contornos a que se poderiam
chamar “empolgantes” e de acção, a verdade é que Cidade
suspensa flui de um modo lento, com uma viscosidade assegurando o
seu certo percurso e a aderência, por assim dizer, a todos os
elementos pelos quais atravessa. Nada do que vai sendo ofertado é
mostrado ao acaso, como se se obrigasse o leitor a dar atenção aos
mais ínfimos detalhes, e estes viessem mais tarde a fazer parte de
um painel final. A existência de uma constante metáfora, também
traduzida visualmente, de um painel de azulejos furtados não é de
forma alguma alheia a essa ideia. De facto, ao início, uma atenção
particular para com pequenos pormenores que fazem a paisagem social
dos tempos a que se refere pode parecer somente uma forma
interessante de criar ambientes, de retratar um Portugal passado, que
alguns de nós experienciaram. Esses pormenores surgem ora traduzidos
nas imagens ora nas legendas, num contrastivo e cumulativo trabalho
de relação entre texto e imagem que aumenta a textura do livro. Mas
numa segunda interpretação veremos que todos esses elementos são
estruturais e sustentam a edificação da narrativa. Eles não são
de forma alguma decorativos, mas constitutivos das personagens e da
tal geometria complexa que os agrega e afasta, conforme as
circunstâncias das acções desenvolvidas.
No
que diz respeito à natureza fragmentária do livro, importa notar
como as vinhetas surgem menos como momentos dinâmicos articulados
entre si do que imagens isoladas, mimando a fotografia. Quase sempre
as personagens aparecem centradas, olhando para o foco do leitor,
como se posassem. Muitas vezes, encontram-se isoladas, sem outro
movimento de transeuntes, cidadãos, trânsito: tudo serve a
personagem em si, assumindo a centralidade. Nalguns casos essa mimese
fotográfica é total, quando emprega uma paleta reduzida (sépia, ou
ocres, ou vermelhos, ou cinzentos), molduras condizentes, a ausência
de texto, mas todas elas são delineadas por uma linha nervosa,
manual que inscreve a acção numa espécie de rememoração
titubeante. A integração de cenas que corresponderão a sonhos,
fantasias ou perspectivas impossíveis (quer dizer, que não
corresponderiam àquela associada a nenhuma das personagens) apenas
complica a diversidade dos “momentos”, aumenta a textura do
texto, mas ao mesmo tempo nos demonstra como, do ponto de vista
narrativo, terão o mesmo peso e consequência na apreciação final
do seu significado global.
O
tom inexorável das legendas – não há qualquer balão de diálogo,
e estes tampouco surgem citado entre aspas, com a excepção da cena
final, tornando-os portanto particularmente significativos na
economia da narrativa e no seu impacto, inclusive emocional - , em
que breves textos descritivos se seguem a uma data completa, e o
sublinhar dos nomes e de certas palavras ou expressões, incute ainda
mais esse tom fragmentário, diarístico, ao discurso que o atomiza.
Um exercício que poderá comprovar isso é ler o texto em voz alta,
sem acesso às imagens, e verificar-se-á que “funciona”. As
imagens não são estritamente necessárias, e é preciso então
entendê-las como formando uma complementaridade especial.
Curiosamente, se até um determinado ponto essas informações apenas
se parecem acumular desapaixonadamente, sem fito comum e nítido, vão
ainda assim lentamente convergindo numa tensão narrativa.
Não
é inocente que tenhamos empregue aquela expressão, “intriga
internacional”, entre aspas. A citação do título português de
North by Northwest, de Hitchcock, pretende precisamente
associar Cidade suspensa a algumas das linhas do realizador ou
do género do policial, do noir, mesmo que “lento” como o
é aqui. Sendo o fio vermelho mais gritante o pormenor da mala de
Raúl, cujos conteúdos jamais saberemos, esta é mesmo uma citação
directa daquele mecanismo narrativo a que Hitchcock chamou de
“MacGuffin” e que tantas vezes seria empregue em filmes (a mala
em Pulp Fiction). Aliás, o narrador é claro sobre a sua
função narrativa (menos do o significado diegético, que é deixado
à interpretação dos leitores) quando diz ser “antes de mais, uma
pista, um indício, feito de solidão e mágoa, deixada para
encaminhar os jogadores na direcção da teia”. Não se
podia ser mais claro. Aquilo que parecia ter nascido como uma
narrativa mundana, reminiscente, da amizade longa de um par de
amigos, vai ganhando contornos em torno de conspirações políticas,
tráficos de produtos ilegais e de influências (a dimensão da
arquitectura – área profissional do autor – surge aqui,
parece-nos, não apenas como oportunidade de concretização de
fantasias mas igualmente como plataforma para uma irónica e subtil
demonstração dos entraves políticos, culturais e financeiros no
nosso país) que ganhará uma contundência final, até algo
anti-climática, que não se fazia suspeitar.
Além
disso, quando dissemos que se trata de um noir “lento”,
esta adjectivação não deve ser entendida como pejorativa, como uma
valorização negativa. Se tentarmos identificar alguns dos
ingredientes textuais que usualmente criam um noir, diríamos
que, em Cidade suspensa, não há perseguições de
automóveis, não há troca de tiros, não há conluios sexuais com
femmes fatales. Ou haverá?
Os automóveis estão presentes permanentemente, seja um Peugeot (?)
afundado nas areias do deserto, uma 4L estacionada nas ruas de
Lisboa, o Cadillac (?) dos anos 1950 que atravessa toda a história
como uma espécie de âncora localizada, e que tomba nos sonhos. Dos
tiros, desferem-se um par deles em momentos decisivos, no deserto e
no final da história, mesmo que falhe o alvo. E Joana/Prec, mesmo
que jamais se vislumbre um enleio sexual directo e lascivo, a sua
presença, um certo erotismo no seu olhar e posições, colocam-na
ocupando esse papel, mesmo que ausente.
Para
além destes ingredientes de géneros reconhecíveis de modos
irreconhecíveis e subtis, existe também alguma dimensão
semi-autobiográfica, ou autoficcional, ainda que levíssima.
Independentemente de notas paratextuais, que devem ser tomadas com
cuidado na recepção do texto propriamente dito, não nos parece que
ele possa ser lido à luz desse género, e muito menos da forma como
ele tem sido experimentado e construído brilhantemente nos últimos
anos. Afinal, o foco aqui não
é a vida de Penim Loureiro no mais pleno “pacto autobiográfico”.
É da prerrogativa do autor munir-se de argumentos – sendo o da
“experiência pessoal” um dos mais repetidos – para arrastar o
texto para um território determinado, mas é o da leitura crítica
interrogar o texto, em busca dessas mesmas inscrições. E a nosso
ver, essa em particular é problemática e nada clara em Cidade
suspensa. Seja como for, numa fotografia final, o “eu” que
narra, que até ali jamais havia sido nomeado ou identificado de
alguma forma, surge na fotografia, por inferência, já que o nome
“Penim” aparece associado a uma personagem que não víramos
antes. E um perfil, mais tarde, coincide com o do autor empírico.
Caberá ao leitor fazer uma associação então entre o narrador e o
autor do próprio livro, ainda que nada mais nos permita falar de
autobiografia propriamente dita.
Regressando
à questão inicial, está fora de questão fazer aqui um historial,
com factos e ponderação, sobre a (acabada de baptizar) “Geração
1980”, a que o autor pertencerá. De facto, nessa época, com
experiências falhadas de uma emergência moderna (Visão)
e com um espaço quase minúsculo na Tintin
para autores portugueses (duas páginas no caderno a preto-e-branco –
mas sendo uma das suas histórias, de seis páginas, uma das que mais
impressionou este vosso leitor, na sua infância), um irregular
espaço na Se7e, entre
outros títulos, a vida em fanzines (“clássicos”, já que as
opções de impressão e circulação não eram de todo as mesmas dos
nossos dias) era a única garantida, mas que pautaria igualmente uma
recepção cada vez mais diminuta. A forma como se tem anunciado este
“regresso” tem sido um tanto ou quanto hiperbolizada, a nosso
ver, mas essa é também a estratégia da publicidade.
As
estratégias de Penim Loureiro têm aqui um sabor relativamente
nostálgico, já que em larga medida há uma forte influência do
Loustal daquela época. Menos na figuração, como é evidente, mas
clara na vinhetas-não-dinâmicas, no uso de legendas corridas
associadas a cada uma, nalgumas opções cromáticas e até, se
quisermos, nalguns temas e paisagens recorrentes. A figuração,
essa, é menos estilizada do que o autor francês, e procura uma
espécie de naturalismo pouco refinado, espontâneo, cru, como que
saído de um bloco de desenho de esboços feitos ao vivo, no momento,
antes que as sombras se dissipassem, sempre contribuindo para aquele
tom diarístico aventado acima. As linhas são finíssimas aqui, e
enclausuradas num filamento grosso e negro ali, incutindo às figuras
uma espécie de hieratização plastificada. Em todas estas
características, Loureiro unir-se-á a um grupo relativamente
alargado e transgeracional que tanto abarcaria Pedro Morais e os
irmãos Colombo (da mesma geração) como Filipe Abranches, António
Jorge Gonçalves e Diniz Conefrey (da geração imediatamente a
seguir), se bem que estes dariam continuidade a experiências visuais
que os tornariam cada vez mais expressivos, idiossincráticos e até
experimentais. Mas haverá outras sombras de influência, claro, que
não importa tanto identificar – a queda onírica do
Penim-personagem na cidade suspensa lembra por demais a icónica
queda original de John Difool – e afinidades criativas a
cartografar – uma leitura paralela entre Cidade suspensa
e Ana,
de Nuno Artur Silva e AJ Gonçalves, decerto que revelaria um
qualquer imaginário comum de uma hipotética Lisboa passada pelos
filtros de Moebius, Cadelo e Caza, entre outros - como a compreender
que se há suspensão, sê-lo-á precisamente numa teia sólida.
Nota
final: agradecimentos ao editor, pela oferta do livro.
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