Joost
Swarte é um daqueles nomes que fazem uma história alternativa da
banda desenhada, na medida em que a celebração de uma espécie de
cânone central quase impede que se forme uma memória mais
diversificada dos seus autores, e até um artista deste calibre,
famoso, vê a sua circulação algo rarefeita. Poder-se-ia
enclausurar Swarte na sua Holanda natal, agregando-o a um punhado de
outros nomes com quem partilha afinidades criativas e editoriais
(como Peter Pontiac, Evert Geradts e Theo van den Boogaard), ou a uma
época determinada (os anos 1980 – algumas das técnicas de
“decorativismo” foram tentadas por muitos dos seus
contemporâneos, como François Schuiten e Gérald Poussin) mas o seu
nome foi internacionalizado muito rapidamente, e a sua
responsabilidade, de certa forma, num recrudescimento por uma banda
desenhada consciente da ideia de design, é quase exclusivamente sua.
Recordemos que uma das suas imagens mais famosas, que mostra a
criação de uma banda desenhada como se de um estúdio industrial de
cinema/fotonovelas se tratasse, foi não apenas feita para ser capa
de uma das míticas Raw (a no. 2) como foi recuperada há
pouco por Paul Gravett para estar na capa de Comics Art,
de que falaremos. (Mais)
Este
livro reúne a totalidade da sua obra de banda desenhada, constituída
sobretudo de histórias curtas, excluindo somente uma série juvenil
mais convencional (Katoen en Pinball). Mas além de ser uma
antologia, é também uma oportunidade do autor retocar a arte no que
diz respeito à cor, ou a uma adaptação aos métodos actuais de
impressão, ainda que ele não abdique de métodos que imitam as
técnicas quando da sua publicação original: o que é bastante
claro ou nas histórias cujo formato menor é adaptado ao do livro,
ou tramas são criadas através de um “pontilismo” gráfico hoje
obsoleto. Obsoleto no sentido técnico da palavra, claro está, já
que ele ganha uma dimensão nostálgica que lhe incute uma camada de
significação adicional a esta distância temporal, em relação a
uma obra que quando surgiu pela primeira vez já criava uma ilusão
de nostalgia para um passado mítico (uns anos 1950 que nunca tiveram
lugar).
Pois
esta é uma das primeiras dimensões que é necessário ter em conta
na leitura dos seus trabalhos. Não se trata somente de uma união
entre uma “história” e um “desenho”, mas uma preocupação
holística, global, em todos e quaisquer aspectos relativos à sua
produção, artística e literária, claro está, mas igualmente
mediológica, técnica, objectual, enfim, numa atitude que toma todas
essas facetas que levam de uma ideia ao objecto que o leitor tem nas
mãos um movimento fluido e coeso.
Chris
Ware, que escreve a introdução a este livro, no seu expectável tom
mortiço e auto-derisório, apresenta uma curiosa oposição límpida
entre os caminhos que se lhe apresentavam nos seus próprios
primeiros passos enquanto artista de banda desenhada: por um lado o
“sentido do claro e legível”, por outro o “túrbido [messy]
e expressivo”. Como sabemos, Ware seguiria o primeiro caminho,
afastando-se das suas primeiras histórias, em que usava linhas mais
sobrepostas e tramas (ainda que de quando em vez retornasse a essa
técnica em determinados momentos), e ele próprio chega aqui a falar
de “plágio” em relação a Swarte. Esse sentido de legibilidade
quase absoluta que Ware cultiva, portanto, tem em Swarte um dos seus
grandes modelos, e encontra-se precisamente numa inflexão de uma
escola a que se poderia chamar de “clássica” e a “moderna”,
que o autor holandês ajudaria mesmo a fundir, entendido de forma
geral como uma charneira dos anos 1960 que transformou esta arte
social, cultural e intelectualmente.
Essa
hipotética escola a que Swarte se integraria não apenas conteria
autores europeus (a escola belga dos anos 1930-40). É necessário
olhar para origens ainda mais recuadas, sobretudo no que diz respeito
à penetração, por assim dizer, de um design de linhas
simplificadas e estilizadas, geométricas e limpas de tramas, que
emergiu pelos anos 1920 e 1930 em muitos autores do cartoon,
um pouco por todo o mundo. Assim sendo, Saint-Ogan, George McManus,
Otto Soglow, Gluyas Williams, algum Gus Bofa, os nossos Emmerico
Nunes e Stuart, etc. seriam concorrentes a esse complexo e misturado
feixe de criatividade. Aliás, sobre o papel directo de Swarte na
história da banda desenhada europeia, haveria muito que dizer, já
que o seu papel ultrapassa aquele de autor para abarcar o de editor,
tradutor e até mesmo “publicador” (afinal, a Oog & Blik,
discutivelmente a mais arguta editora holandesa, é fruto do seu
trabalho).
As
mais das vezes, a reacção automática é dizer que Swarte é um dos
expoentes da “linha clara”, mas há uma história bastante
complexa por detrás dessa noção. Ainda que tenhamos de ser
sumários, a verdade histórica é que esse termo, aplicado a Hergé
e alguns dos seus companheiros, é na verdade um termo a-histórico
e aplicado somente a posteriori. Foi
em 1977 que Swarte, com alguns críticos de banda e editores de
desenhada, entre os quais os irmãos Pasamonik, cunhou essa
expressão, assim como o arrolamento de algumas das características
que a definiriam (ausência de gradientes de cor e de sombras, linha
de contorno fechada e sempre idêntica independentemente dos planos,
que são tratados sem diferença gráfica, etc.). No entanto, podemos
dizer que Swarte, assim como outros autores da sua geração, como
Yves Chaland e Ted Benoît, trouxeram uma dimensão “moderna” ou
mesmo “modernista” (ainda que num outro uso anacrónico do termo)
a esse estilo, notável sobretudo pela sua capacidade de surgir
claramente como citação, como dispositivo auto-reflexivo, ao
contrário da “linha clara original”, que se pretendia o mais
transparente possível. Citemos Bruno Lecigne, do livro Les
héritiers d'Hergé (precisamente
publicado pela Magic Strip, dos Pasamonik, que pretendiam criar uma
colecção de ensaios reflexivos): “a citação não é comunicação
mas sim, por exemplo, a confusão [brouillage],
a ambiguidade. É por isso que a arte clássica combate a
heterogeneidade e transmite o seu ideal de pureza e de legibilidade,
do qual o ritual é a história, a narratividade mais do que a
narração”.
Estes
últimos termos de Lecigne mereceriam um maior desdobramento, e na
verdade não podemos dizer que Swarte abandone totalmente a narrativa
em nome de uma experimentação formal. Bem pelo contrário, o seu
uso de personagens recorrentes, de anedotas prenhes de um humor por
vezes obsceno, outras chocante, a sua criação de diálogos cheios
de ironia, o modo como espelha aspectos da sua cultura actual, etc.,
demonstram como o grau de “legibilidade” que o preocupa passa
pela tessitura de histórias relativamente simples. Mas o prazer da
sua degustação atravessa outros canais também.
Nessa
rede de intertextualidades, não é apenas Hergé que está no âmago
das reinvenções de Swarte. Poder-se-á identificar também Disney,
e os irmãos Fleischer, como uma miríade de outras referências mais
ou menos directas, mais ou menos obscuras, de todo um campo da
cultura popular, compreendendo-se a banda desenhada, a animação e
outras áreas. E que tem repercussões a nível de representação
político, já que o seu protagonista favorito, Jopo de Pojo, é uma
espécie de mescla de Tintin e de típica caricatura de um negro
circa anos 1920, à la Fleisher e outros, e não faltam
referências aos estereótipos raciais que foram empregues por muitos
dos autores “citados” ou “apropriados”, com grande destaque
para Hergé.
De
certa forma, e empregando uma outra ideia de Ware do prólogo,
poderíamos encontrar nessa reapropriação e repurposing de
um estilo determinado a novos “conteúdos”, ou géneros
narrativos, atitudes, direcções, um eco do que havia sucedido em
relação ao estilo “Disney” ou infanto-juvenil norte-americano
conhecido como “big foot” por Robert Crumb, Gilbert Shelton, Jay
Lynch e art spiegelman. É como se se tratasse de uma obsessão dos
artistas em reempregar aquela banda desenhada que mais os haveria
marcado na infância e numa primeira aprendizagem da arte da banda
desenhada – levando a uma quase imperativa mimese – mas
transformando-a num veículo que se adaptasse a um posicionamento
expressivo e, por isso, também político, social, etc. mais
coadunado aos tempos (então) presentes, às pulsões actuais da
maturidade (ou falta dela, já que se poderia descambar facilmente em
piadas fáceis em torno da violência, do sexo, de uma irreverência
óbvia) dos artistas. Mas esta seria apenas uma aproximação
superficial dos dois territórios distintos, já que os
desenvolvimentos são bem diferentes, como ainda Ware demonstra, num
maior rigor artístico da parte do autor europeu, em que menos do que
se entregar a exercícios de ensimesmamento, cria ficções passíveis
de reflectir um certo estado da sua sociedade, ainda que distorcido.
Swarte
foi também um grande precursor de meta-banda desenhada, criando não
apenas esses jogos de referências visuais intertextuais que nos
convidam a associá-lo a outras obras, como também a metáforas
visuais, ilusões (a que o seu colega Ever Meulen daria continuidade
de forma mais intensa), e histórias que se inscreveriam tanto bem na
Oubapo (ele tem mesmo uma “tradução” dos Exercises de style,
de Quenau, como Matt Maddren) como numa família de autores como
Marc-Antoine Mathieu (uma história com a personagen Anton Massakar,
por exemplo, explica como funciona a quadricromia, que Mathieu
exploraria mais tarde com J.C. Acquefaques, em La qu...).
Esta
é, então, uma antologia obrigatória, num momento em que o autor
parece ter abandonado a banda desenhada de vez (continua a trabalhar,
mas em design, regressando à sua formação de design industrial –
neste aspecto é muito parecido com Javier Mariscal - e para os mais
díspares produtos: selos, óculos, bolos e edifícios). A conter
numa prateleira que se preze de dar atenção à banda desenhada
global. As histórias não estão organizadas cronologicamente, mas
tampouco de acordo com as personagens recorrentes ou temas. Isto
leva, todavia, a uma fluidez da diversidade do seu trabalho que nos
obriga a procurar outro tipo de associações organizativas, livres e
abertas. Um aspecto menos conseguido é não conter o livro um
aparato crítico mais decidido. Uma nota no final arrola as várias
publicações em que elas surgiram, e o índice indica as datas, mas
a sua articulação poderia ser mais completa, de maneira a que o seu
uso bibliográfico fosse mais científico.
Nota
final: agradecimentos a J.B., pela oferta do livro.
Sem comentários:
Enviar um comentário