Agora
que a Lodaçal Comix parece ter confirmado a sua
descontinuidade, Rudolfo inflecte os seus esforços editoriais ao
serviço do seu próprio trabalho. O autor tem-se desdobrado em
vários campos, mesmo se nos atermos somente à banda desenhada,
alguns dos quais em colaborações com outros argumentistas, outros
dando continuidade a projectos seus anteriormente começados e, como
este em particular, dando início a um novo trajecto. (Mais)
Molly
pretende ser uma revista bimestral, e segue algumas estratégias
económicas (por subscrição) que lhe garantem a subsistência.
Apenas o tempo o dirá se se aguentará face à fome de variedade do
próprio autor. São várias as peças aqui apresentadas, que podem,
ou devem, ser lidas singularmente. No entanto, elas também
contribuem para uma imagem geral ou um propósito mais ou menos
coerente (como o são os vários objectos arrastados por um mesmo
ciclone).
A
história mais interessante, a nosso ver, é a primeira (após uma
espécie de prólogo ou editorial desenhado), intitulada “Eu não
estou fixe (eu prometo)”. Em apenas quatro páginas, numa história
possivelmente autobiográfica, o autor mostra um retrato do seu
quotidiano, no que tem de obsessivo e mundano, particular e banal,
patético e significativo. Paradoxos que, de resto, são a
conta-corrente da esmagadora maioria das vidas. Estas páginas
apresentam uma estrutura bastante curiosa. Uma grelha de seis
vinhetas, cada uma das quais devem ser lidas menos em sequência
directa entre si do que estabelecendo intervalos de tempo
diferenciados, e que vão sendo revisitados. As constantes incluem um
diálogo num programa de chat no computador enquanto vê pornografia,
um outro por sms, ainda um terceiro por telefone, e um retrato do
autor-protagonista num enraivecimento incremental que o aparenta a um
tresloucado violento. Além disso, também vemos uma cena em que come
um cachorro-quente e uma cerveja, desenha (supostamente o próprio
fanzine que temos nas mãos) e um estranho monstro, coberto de olhos,
descendo uma escada.
Poderemos
ler esse monstro como uma metáfora (óbvia, então) do seu Id,
descendo às catacumbas dos prazeres e sensações mais baixos? Ou
simplesmente como o seu cérebro afundando-se na escuridão e
finalidade de todas as suas conversas e acções? Haverá aqui um
estranho retrato de uma depressão, ou sem se se tão dramático, um
desencantamento com as actividades de todos os dias? Será catártica
esta curtíssima banda desenhada? A verdade é que possivelmente se
poderá interpretá-la de outros modos alternativos, mas o seu tom
não é celebratório, mas antes confrontacional em relação a todas
as coisas que cita e mostra. Resta indicar ainda que esta história é
também aquela que foi apresentada em Treviso, na antologia
Quadradinhos, produzida no quadro da presença portuguesa
daquele festival italiano, e de que falaremos em breve.
Depois
seguem-se mini-histórias ou mini-sequências, desenhos soltos,
pequenos cartoons e anedotas, todas elas num humor mais ou
menos duvidoso e escatológico, e prenhe de referências de um
universo coeso que compreende a cultura japonesa (jogos de vídeo, o
Pikachu no seu avatar autoral, de Rudolfo, do Musclechoo,
emoticons e onomatopeias dessa língua/cultura, o filme recentemente
(re-)descoberto pelo Ocidente, House, de Ohbayashi,) do Porto
(desde gunas aos seus transportes, passando pela cena musical que
Rudolfo igualmente habita e incomoda) e outras (os Nirvana, P. K.
Dick).
Até
certo ponto, existe aqui uma brava, salutar e assumida dose de
indulgência, e não tanto uma procura por narrativas mais alargadas,
que tornassem totalmente inéditos os gestos do autor. Porém, há
uma dimensão de irrisão e de verrinoso que não se pode negar, a
primeira virada contra si mesmo, evidentemente, e a segunda dirigida
de forma global, ainda que vaga, a todo um conjunto de realidades
culturais. Não é fácil identificarmos se essas culturas citadas
devem ser vistas como plenamente integradas ou se antes antagónicas
do autor/protagonista, mas estamos em crer que será algo a meio
disso. Como se o autor tivesse que, ao mesmo tempo de confessa as
suas admirações, as demolisse para garantir que não existem
quaisquer vacas sagradas.
Como
dissemos, o autor tem também feito outros projectos, alguns dos
quais já publicados e disponíveis. Indiquemos o primeiro: Negative
Dad, uma série escrita por Nathan Williams e Matt Barajas, já
publicou (em 2013) o seu primeiro número, pela Weed Demon Inc. A
história em si tem lugar numa escola secundária dos Estados Unidos,
na qual os dois protagonistas adolescentes vivem num ambiente que é
tanto devedor dos The Simpsons como de Charles Burns, dos
X-Files e de, mais uma vez, uma imensa sopa da cultura popular, que
inclui algumas referências obscuras (há ali um poster dos Marquis
de Sade?). Algumas dessas referências visuais poderão ter sido
fruto do trabalho e input de Rudolfo, mas a esmagadora nascerá da
obrigatoriedade da intriga.
A
violência (típica?) das escolas e das cliques locais, e uma
estranha tentativa de suicído (?) de um outro colega espoleta um
mecanismo entre as várias personagens, que uma breve e algo forçada
exposição (mas que acaba por funcionar, de caricata que é, uma vez
que é cumprida por Jerry Seinfeld e Kramer!) torna claro: o pai dos
adolescentes vive num “mundo negativo” e o seu salvamento pode
decidir o idêntico resgate da Terra, de uma potencial ameaça
misteriosa, o que envolve o governo, extraterrestres e a lei local.
Tudo isto orbgará a que o mecanismo torne complicada a geometria
relacional entre as personagens,
O
trabalho de Rudolfo aqui ganha uma dimensão muito mais sólida e
caprichada do que no seu trabalho pessoal, na medida em que as
figuras – mesmo que ainda seguindo formas monstruosas, desvios
escabrosos e doentios, e piadas marchetadas – são mais sólidas, o
trabalho de tramas e pormenores mais sustentado, a composição mais
segura. Numa leitura micro-estrutural, nalguns casos até parecemos
estar a ver laivos de um Geoff Darrow. A maior parte das personagens
é desenhada com uma estilização já reconhecível do pulso do
artista, mas a forma como ele representa as personagens baseadas em
actores conhecidos demonstra também outras suas capacidades, mais
realistas e consequentes em termos anatómicos clássicos, o que
contribui sobremaneira para os registos contraditórios (mas
funcionais) no interior desta história.
Em
três diferentes gestos, o autor demonstra como pode fazer desdobrar
o seu traço e esforços em mais do que uma direcção e em vários
registos. Resta ver a continuidade de cada projecto, e como eles se
desenvolverão.
Nota
final: agradecimentos ao autor, pelas reservas.
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