De quando em vez surgem livros que aparentam em todos os
aspectos serem livros infantis, não o sendo, ou enveredam por pequenos caminhos
que parecem afastar-se desse território mais ou menos normalizado. Todavia,
isso não impede que ele não seja sequestrado para esse tipo e leitura. (Mais)
Este é um álbum sem texto, de uma história linear,
desenhada pelo artista Dieter Van der Ougstraete, que assina como “Vdo”, o qual
pode ser integrado em toda uma tendência contemporânea de pintura, de grandes
dimensões e a óleo, isto é, com os instrumentos clássicos e tradicionais da
pintura académica, mas empregando assuntos e abordagens derivados da cultura
popular, sem quaisquer entraves das origens desses objectos referenciais. É mesmo
esse cruzamento, talvez não assim tão inesperado, que compõe as forças da sua
abordagem. Neste aspecto, Vdo tem grandes afinidades com um artista como Georg “Atak”
Barber.
Se bem que existam histórias paralelas, em banda desenhada,
com as mesmas personagens, até mesmo ao ponto de as lermos como versões
paralelas, este livro pode ser lido de modo isolado. E, acima de tudo, na
verdade, ele é quase mais um exercício de criação de imagens do que uma
tentativa em narrar uma história.
Da narrativa, há pouco a dizer. Um pequeno boneco de neve,
náufrago não se sabe bem de onde, dá à costa de uma ilha tropical, e
atravessa-lhe as paisagens, cruzando-se com as mais diversas personagens,
adversas ou excessivamente amistosas, todas elas empecilhos ao seu regresso. A
travessia dessas paisagens não é mais que uma desculpa para o autor se
abandonar à criação de cenas pejadas de personagens, muitas das quais
decalcadas, ou homenageando, outras tantas famosas de desenhos animados ou
banda desenhada (Beavis & Butthead, a abelha Maia, Petzi, os Estrumpfes,
etc.), mas que nunca se consolidam propriamente numa geometria actancial que
leve a pensar numa intriga propriamente dita. Os mecanismos são de uma
causalidade imediata, e apenas mecanismos para o avanço do protagonista.
Abstraindo-nos do facto do autor ser belga, flamengo, não
nos deixa de surpreender porém que algumas das composições, sobretudo as duplas
páginas, recordem gravuras específicas debuxadas por P. Brughel (“Grandes
peixes que comem pequenos peixes” e “Cozinha gorda”, para ser preciso). O autor
segue um esquema cromático vividíssimo, que tem causas técnicas que lhe
pertencem, possivelmente por empregar tintas acrílicas, ou pelo menos uma
complexa e múltipla aplicação de tons e cores fortes, mas que não deixam também
de recordar – não as cores submissas e subtis, atmosféricas, daquele mestre da
pintura mundial – a glória da ilustração infantil do século XIX que era
proposta através da cromolitografia. Num pequeno texto sobre livros infantis,
que coleccionava, Walter Benjamin tece uma pequena oposição entre a fantasia e a
“energia criativa”, reservando o génio da primeira aos livros coloridos das Märchen. De certa maneira, aquilo que Benjamin parece
dizer é que os livros infantis deste tipo, ou desta natureza, não participariam
do mesmo tipo de intensidade estética do que, seja, a literatura ou a música,
sobretudo aquelas obras que tentam ou conseguem expandir os próprios modos de
linguagem nos quais trabalham. Mas o que se pretende apontar é tão-simplesmente
uma estruturação diferente dos elementos conducentes a esse prazer final da
leitura. E a fantasia não pode ser descurada de forma alguma como um dos pontos
de acesso aos grandes estímulos mútuos da imaginação.
E a relação entre fantasia e imaginação é aqui tentada
através de metamorfoses individuais de certas personagens, as mudanças
constantes de espaços que poderíamos chamar de “ecossistemas”, cada um com
especificidades próprias, e várias cenas violentas (combates, aprisionamentos,
salvamentos, uns comendo-se aos outros, etc.) que são também sinal de outras
transformações mais radicais. Os corpos de todas as personagens vivem assim no
extremo da sua maleabilidade e finitude física, tornando mais premente o seu trânsito
e relações.
O autor utiliza várias técnicas de composição das imagens,
ocupando ora spreads, ora imagens de
página inteira, ora organizando esta em várias vinhetas, mais próximas de
estruturas típicas da banda desenhada ou imagens mais isoladas e flutuando em
fundos de grandes expansões brancas. Sempre destacando-se a abordagem material
pictórica para dar viva a estas criaturas gráficas e poderosamente icónicas. Fuga
terrífica, aventuras macabras e final feliz. Nada mais necessário.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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