Agora que o breve Verão é apenas uma pequena memória
enterrada em dias cinzentos, de poucas abertas, regressar a um livro que o
acompanhou de forma discreta e tranquila mas decisiva é necessário. Shaun Tan
regressa, no nosso círculo de traduções, com um novo livro que explora os
espaços não-ditos mas compreendidos epidermicamente na pele. (Mais)
Como havíamos dito em relação a This One Summer, das Tamaki, há todo um intervalo na maior parte
dos crescimentos dos jovens no mundo ocidental em que o Verão é um momento particular
de desabrochamentos específicos. As vidas quase se medem por Verões. Cada Verão
traz uma nova camada de maturidade, compreensões mas, por isso mesmo, assinalam
também pontos de passagem por mundos novos e realidades que até ali ou estavam
totalmente oclusas ou pareciam inalcançáveis. Mas nessa passagem de um ponto ao
outro, há um intervalo menor, quase indetectável, ligeiramente acima da
percepção, onde se fica num inseguro território de ambiguidades e incertezas
que se alastram para toda a existência (mesmo que apenas do momento). É nesse
intervalo que podem surgir pequenas ajudas, como aquelas espraiadas pelas Regras de Verão.
Poderíamos querer “traduzir” estas regras para realidades
concretas do comportamento das crianças. Poderíamos também metaforizar toda
essa relação e compreender nelas apenas as bases que levam os adultos a
responderem “porque sim” a todas as ordens, regras e disposições que os mais
novos devem obedecer mesmo quando (ainda) não as compreendem. Poderíamos também
fazer de surdos e apelidar de absurdas estas prescrições e votar o livro ao
esquecimento. Como já é costume de Shaun Tan, os protagonistas habitam um mundo em que as separações de determinadas
categorias não existem de forma nítida: formas animais e mecânicas, biológicas
e inorgânicas, sencientes e inertes. Mas também aquilo que separa o lógico do
fantástico, o realista do maravilhoso, se esboroa a cada página.
O livro, ou melhor, a “faixa textual”, é contada a partir
da perspectiva de um irmão mais novo, que a introduz como se num balanço após o
facto (“Foi isto que aprendi no verão passado”). Mas não podemos dizer que em
termos visuais ele ganhe qualquer tipo de preponderância, tirando uma cena ou
outra. O livro é afinal também sobre os elos que unem os irmãos, ou que os
podem unir. Não se trata de nenhuma moralidade, mas de um retrato de uma
cumplicidade que pode existir, e que aqui ganha contornos de uma aventura
desequilibrada. Por vezes parece que o irmão mais velho lança o pequeno em
perigos desnecessários, por outro parece ser uma forma de levar a que ele ganhe
alguma autonomia face a essas mesmas situações. Mas a presença de ambos de fio
a pavio, e o modo contínuo como o mais velho protege o mais pequeno (mesmo
quando isso não parece acontecer) demonstra como ambos têm o seu papel na
geometria da tentativa de controlo que exercem sobre o seu mundo, por mais
estranho que ele surja. A ausência de figuras parentais aumenta o grau de
fantasia, é certo, mas ao mesmo tempo confirma uma linguagem paralela ao nosso
mundo social normalizado, e onde os irmãos estabelecem protocolos à margem do
controlo dos pais.
Cada frase apresenta uma única regra – “Nunca comas a
última azeitona numa festa”, “Nunca deixes uma meia vermelha pendurada na corda
da roupa”, “Nunca te atrases para um desfile” – mas as imagens revelam de forma
literal essas mesmas circunstâncias, e quase todas mostram o imediato falhanço
em as cumprir. Algumas delas parecem pertencer ao mundo do senso comum, da
verdadeira segurança das nossas vidas: “Nunca dês as tuas chaves a um estranho”
ou “Nunca te esqueças da palavra-chave”, mas no primeiro caso a consequência é
ser-se substituído nos prazeres caseiros por um gigantesco homem-gato e na
segunda ver-se vedada a entrada num jardim de árvores brilhantes. Outras estão
próximas da arbitrariedade de quem comanda a razão da força: “Nunca discutas
com um árbitro”, “nunca percas uma luta”, sobretudo por quem as institui possuir
o poder decisório e judicial. Apesar do irmão mais velho apresentar muitas
vezes expressões de frustração, irritação e ira, quase todas as regras afinal
parecem ser apenas ditadas para serem quebradas, estando nessa passagem de um
limite a verdadeira lição e experiência. Talvez mesmo afinal elas não tenham
existido sequer como prescrições anteriores
às acções, mas tão-somente explicações posteriores
das consequências.
O texto em si parece conter em si ecos bíblicos. Os 13
primeiros preceitos são apresentados na negativa (“Nunca faças x”), e depois de
um intervalo onde se estabelece uma acção consequente, elas retornam de um modo
positivo (“Faz x”), duas vezes. A última regra, de certa forma, é um corolário
de todas as outras, encerrando-as no seu espaço próprio, assinalando a sua
importância e natureza apartada (o que é corroborado pela imagem). Bem vistas
as coisas há uma narrativa clara que subsume as cenas “fantásticas” a uma
normalidade criativa dos dois irmãos. Mas essa subsunção retiraria a magia
dessas experiências, isto é, quase as negaria como tal, e é precisamente esse
pecado que Tan quer evitar ao dar-lhes presença actual nas imagens. As crianças
não “fingem ser uma coisa”, elas são-nos efectivamente nesse momento, e levam
muito a sério essa performance de
identidade. Ela constitui-as. O Verão é, mais do que um tempo, um espaço
privilegiado e sensível a esses papéis.
Se existem elementos reconhecíveis na materialidade das
imagens em Shaun Tan, há também uma densidade em Regras que não estava presente nos livros anteriores. O uso da
palavra “pintura” no caso das suas ilustrações não apenas carrega o seu
significado técnico como igualmente uma certa responsabilidade cultural e
potencialidade de interpretações. Sublinhada de forma patente pelo uso
sistemático entre páginas duplas ou ilustrações de página inteira, sempre imensas,
e cujas imagens sangram para além dos limites das folhas. Há uma significativa
abertura das possibilidades de leituras paralelas, conforme o grau de
legibilidade que se devotam as imagens – uma concentração nas acções centrais,
ou um acompanhamento da ave preta singular que atravessa a história, ou uma
exploração dos vários planos que compõem cada paisagem, nela mesma retratando
uma compreensão social do mundo real em que habitamos -, e tampouco se pode
descurar uma leitura detalhada formal, que preste atenção à textura, aos jogos
cromáticos, à densidade das sombras, e à forma como a luz é inscrita.
Em relação à primeira, os rastos de óleos sobrepostos que
compõem camadas de tinta recordam os excessos de van Gogh, e até certo ponto,
também a luminosidade dos seus quadros do sul de França, ou as naturezas mortas
pós-Cézanne. Algumas das cenas no livro têm horizontes distantes, mesmo quando
se tratam de interiores, recordando algum tipo de monumentalidade de um Moreau,
ou os ambientes feéricos dos quadros bíblicos de um John Martin ou David
Roberts. Uma vez que em termos de representação o autor opta sempre por
superfícies muito texturadas (pêlos, madeiras várias, ferro, solos secos, prédios
velhos, biomas expandindo, céus carregados, fumos), jamais existem superfícies sem
gradientes ou ruído e intervenções de cores complementares ou interrupções de
luz. O autor usa essa mesma abordagem para “contaminar” as páginas de texto,
desprovidas de imagens representativa mas não de traços de lápis, de cera,
pastéis, papéis coloridos e amachucados. Essa constante torna o surgimento de
um céu magnificamente azul, atravessado por uma miríade do que parecem ser organismos
marinhos bioluminescentes, uma excepção brilhante.
Mas, como sempre, os livros de Tan são excepções.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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