Não se trata, Av.
Paulista, tanto de um projecto de relação entre a arquitectura
e a banda desenhada em que a disciplinarização da primeira inflicta
processos estruturais da primeira, ou se procure na linguagem formal
da segunda formas de erigir uma cidade, à escala humana ou outra.
Não estamos aqui na fundação de uma nova cidade fictícia (à la
Dominion City, de Seth), nem um entendimento da vida humana como
factor enclausurado na vida de uma cidade (à la Chris Ware), nem uma
pesquisa de questões arquitectónicas em torno de micro-ficções (à
la Jiminez Lai). Trata-se mesmo de um retrato, quase pessoal, quase
passional, de uma veia que atravessa uma cidade e, conforme a
perspectiva, a corta, a coze, a sangra, a alimenta. (Mais)
Luis Gê é um dos grandes
nomes da HQ brasileira, ainda que seja, regra geral, um desconhecido
em Portugal. Com vários livros no currículo, alguns dos quais
reunindo trabalhos de cartoon e observações
sociais,(Quadrinhos em Fúria), outros reunindo histórias
curtas, sobretudo publicadas na revista Circo (que
com a Animal, a
Chiclete com Banana, Geraldão,
e outras, fizeram a geração punk
dos anos 1980-90 da HQ), de que o autor era um dos editores,
adaptações literárias, ilustrações, etc., e tendo experimentado
todas as formas e linguagens possíveis, Av. Paulista é uma
espécie de retorno e recuperação.
“Recuperação” pois o
livro na verdade não é totalmente inédito, ainda que a sua
circulação tenha sido limitada. Criada para ser serializada na
revista Goodyear, no início dos anos 1990, o convite
estendido ao autor vinha fazer convergir algumas das suas
preocupações pessoais e criativas: a sua formação profissional em
arquitectura, uma natural tendência para o estudo da vida da cidade
de São Paulo, e uma apetência pelo estudo e pesquisa da linguagem
de banda desenhada (que o autor chegou a estudar em Londres, por
exemplo, de forma activa). O seu entusiasmo, pesquisa e rigor levaram
a que um assunto que se adivinhara inicialmente para uma espécie de
breve dossier se transformasse num número especial da revista. Mas
apesar da notícia dada no prefácio novo do autor (o livro ainda
contém suplementos em torno do tema), de que teria havido cerca de
30 mil pedidos para receber a revista, a verdade é que ela acabou
por ter uma distribuição limitada e privada, tornando-se esta nova
edição, com algumas alterações a nível das atribuições de
autoria, reescrita e redistribuição dos textos nas páginas, já
para não falar do seu título, agora tomando a ideia original do
autor, em vez de um Fragmentos Completos decidido pelo comité
original.
“Retorno” pois este
livro possivelmente marcará o regresso de Luiz Gê às lides das
histórias em quadrinhos, da qual andava arredado há alguns anos
(fenómeno similar àquele de Penim Loureiro, de que falaremos em
breve, mesmo esquecendo a coincidência de serem ambos formados em
arquitectura e terem na cidade um espaço privilegiado de
topicalidade).
A avenida principal da
cidade de São Paulo surge aqui como um espaço verdadeiramente
dinâmico: não tanto pela inevitável atenção para com o dito
“progresso” histórico e os desenvolvimentos sociais e económicos
que terá testemunhado e testemunhará ainda, como na sua fabricação
enquanto espaço de performatividade de várias identidades. Não
apenas as dos paulistas, mas possivelmente as dos brasileiros em
geral e dos habitantes urbanos de quase todo o mundo desenvolvido. A
cidade específica, assim, pode ser vista como uma metonímia da
própria relação entre o cidadão e as metrópoles contemporâneas,
sobretudo aquelas que cavalgam a onda do tardo-capitalismo incessante
e devorador. Pois o livro de Luiz Gê não é somente, ou sequer, uma
apresentação. Ela é uma visão passional, como já o dissemos, o
que não abdica de forma alguma de um posicionamento crítico e um
incitamento ao rigor do pensamento e da acção políticos.
Ainda que haja aqui uma
dimensão pedagógica envolvida, Luiz Gê impede que essa se torna a
linha de força do seu projecto, e permite que haja uma dimensão de
realismo mágico, se assim o quiserem chamar, a informar as suas
pesquisas visuais, de modo a que o livro se torne, acima de tudo, um
veículo de expressão artística, mesmo que entrosada num discurso
histórico, político e crítico. Simplesmente não obedece a
fórmulas de organização da informação pronta-a-citar. Bem pelo
contrário, a obra exige algum esforço de concentração e até
mesmo de interpretação, para que se compreendam as diferentes
linhas que concorrem na sua complexa textura.
Quando falávamos “à
escala humana”, é óbvio que qualquer cidade o é, a partir da
perspectiva de um ser humano (com a excepção de Albert Speer,
talvez), mas o foco pode ser sempre deslocado de uma qualquer forma.
No caso de Av. Paulista é precisamente à escala, como
dizê-lo?, geológica? Espacial? Do sítio? Independentemente da
existência de personagens humanas, históricas e fictícias, que nos
ajudam a controlar a informação sobre a progressiva transformação
do espaço natural em sendeiro de tropeiros, este em avenida e
calçada, rua de habitações, e sucessivas incrementações até a
um futuro próximo. E além dele, mesmo, fechando-se num ciclo muito
curioso, que tanto deve a Arthur C. Clarke como à estratégia
narrativa do ourobouros, em que o início é similar ao final.
Essas fases de emergência e transformação correspondem à
realidade histórica, e existem muitos “factos” arrolados ao
longo do livro, mas eles não são propriamente apresentados num
registo naturalista: bem pelo contrário, o autor deixa que um certo
grau de fantasia visual se imiscua nessa transmissão da história,
ou que certas linguagens estilísticas da época retratada tintem a
sequência, como é o caso, gritante, dos anos 1920, com a aceleração
dos transportes (aviões, eléctricos e automóveis) a obrigar a uma
composição mimando as composições futuristas, e os contornos de
linha branca aumentando a qualidade fugaz desse mesmo episódio.
A mistura do humor e de
uma visão histórica, que já eram características de muito do seu
trabalho, continuam aqui presentes, se bem que numa tonalidade mais
tranquila, menos excessiva. Com alguma gravidade, até, sobretudo nos
trechos em que há uma exposição dos factos. A profusão textual,
de um narrador externo, de citações, de uma linguagem quase
administrativa, que por vezes convida a um desaceleramento da leitura
global, e a momentos de interrupção das “acções”, aumenta o
grau de informação, mas que rapidamente se transforma numa espécie
de arma de arremesso para a crítica dos sacrifícios do passado –
o património humano, social e cultural desaparecido, uma certa
convivência transversal evaporada, etc. - e igualmente elementos
para uma possível apresentação de soluções, que poderão ser
vistas como utópicas. Mas se as soluções não conterem uma
dimensão utópica, serão respostas sequer? Nesse aspecto em
especial, Av. Paulista poderá fazer recordar os leitores da curta
história de Robert Crumb, “A Short History of America”, a qual
atravessa o passado de uma só rua, desde os momentos
pré-colonialistas até à total decadência e ocupação dos nossos
dias, mas logo depois também, numa segunda versão aumentada,
apresentando vários futuros alternativos. Também Av. Paulista
o apresenta, possivelmente havendo alguma influência directa, ou
possivelmente pois ambos os autores beberiam de fontes idênticas em
termos de desejo de regresso a um tempo mais simples (esse também um
“passado utópico”, claro está).
O desenho de Gê é de uma
estilização quase extrema, usando um desenho a linha grossa que
fecha os contornos de todos os objectos que delineia. Não há tanto
espaço para pesquisas de tramas ou sombras, se bem que não abdique
totalmente dessas técnicas. No caso específico desde livro, a cor
tem uma dimensão particular, uma vez que muitas das linhas são em
cores vivas e não a negro, o que lhe dá uma dimensão algo
intangível, mágica, sobretudo quando a matéria narrativa se presta
a isso, como no caso dos episódios da mistura de tradições dos
anos 1910, a velocidade dos anos 1920, já citado, ou do futuro
longínquo e já-mágico. Essa estilização, porém, nunca
significou um espartilho para o autor, que explora vários registos
numa mesma página: várias personagens poderão estar representadas
de acordo com princípios bem distintos, e que tanto poderá ajudar a
sublinhar uma personalidade gráfica diferente como cumprirem um
papel qualquer necessário à estratégia da história. Seja como
for, traz um efeito não homogéneo, mas próximo do que uma crítica
já chamou de “caleidoscópico”, o que faria particular sentido
na diligências de cor a que o autor se abandona nestas páginas.
Biografia de uma avenida
em particular, mas também da personalidade de uma cidade, do sistema
económico-social de um país, das escolhas filosóficas que são
veiculadas à flor do chão, Av. Paulista é igualmente um
hino de amor do autor pela sua cidade, em que talvez nutra uma
esperança em a recuperar para uma escala mais humana. É também,
como vimos, um eco do domínio do autor por esta outra sua disciplina
de expressão. Recuperando uma “curiosidade bibliográfica” de um
dos maiores autores, Av. Paulista também poderá vir a ser
agora um título obrigatório na consideração da maioridade das HQs
do Brasil.
Nota final: agradecimentos
à editora, pela oferta do livro.
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