Imaginemos
a cena. Um pequeno restaurante, numa rua principal de uma cidade de
alguma dimensão, tem mesas distribuídas no seu espaço, algumas
perto das montras, outras dispostas perto das paredes, um balcão
corrido. As pessoas entram, sentam-se, escolhem o prato de uma
ementa, encomendam, comem e pagam. Mas conforme a cor de pele, pode
ou não ser autorizado a sentar-se ao balcão, ou tem de ser dirigido
a um canto especial. O mesmo ocorria com lugares nos autocarros, se
não mesmo no tipo de autocarros, das casas de banho em estações de
serviço, ou nas escolhas e possibilidades de inscrição em escolas,
bibliotecas, jornais, já para não falar sequer no direito à
directa representação eleitoral ou outros assuntos ainda mais
prementes (habitação, empregabilidade, etc.). (Mais)
Algumas
pessoas poderão não ter compreendido porque é que tantas pessoas
choravam no dia da tomada de posse como presidente dos Estados Unidos
de Barack Obama. Independentemente de se desconfiar das políticas
externas dos E.U.A., e de outros assuntos, não se pode compreender a
história recente daquele país se não se compreende a vitória
magnífica que significou essa eleição para uma larga parte da
população dos Estados Unidos da América. Essa vitória é, até
certo ponto, a chegada de uma longa caminhada dos negros
norte-americanos. De uma marcha militante e, como se dizia nos anos
1970, engajada. Este livro versa os primeiros passos dessa marcha a
partir da perspectiva pessoal de um dos seus intervenientes.
Em
termos estruturais e de produção, March
poder-se-á irmanar a títulos tais como La guerre d’Alan,
de Guibert e Cope, ou American Widow, de
Torres e Choi, se bem que as estratégias sejam muito diferentes
entre si. Num dos casos, temos uma mulher que decide construir uma
autobiografia em banda desenhada (Torres) e procura uma artista
(Choi) que dê corpo visual à sua voz; noutro temos um artista
(Guibert) que resolve transformar o relato de um amigo (Cope) numa
obra pessoal mas que não deixa de emprestar corpo a uma outra voz
pessoal. March,
por seu lado, faz inflectir um trabalho profissional, as funções de
assessoria de Andrew Aydin, que encontra num artista, Nate Powell, um
veículo exemplar para moldar um novo caminho para a vida, já
anteriormente exposta sob outras formas, de um homem vivido e seu
patrão, John Lewis, membro do Congresso e um dos “Big Six”.
O
título, reduzido a uma palavra, serve para emparelhar todas as
manifestações (“marches”) do final da década de 1950 e
princípio da de 1960, que marcaram o movimento dos direitos civis,
mas também associá-las, de forma mais metafórica, à marcha de
toda uma vida, quer a de Lewis quer a de outros que com ele
partilharam a missão, sofrimento e vitórias, àquela mesmo em que
nos podemos juntar pelo acto de leitura. Essa função simbólica
surge de forma dramática e espectacular na dupla
página
de título, em que a perna do R se estende numa diagonal onde se
encontra a luz de um glorioso sol matinal e o pináculo do monumento
a Washington. De uma vista elevada e exterior ao monumento a Lincoln,
vemos uma outra diagonal que acompanha o espelho de água até ao
monumento, criando-se uma estrutura convergente entre todos estes
símbolos da nação americana e das suas conquistas políticas.
Importa menos o pormenor de cada um deles, e as possíveis
imperfeições que poderão representar, do que a promessa de
encontro entre essas promessas e esforços. A vida e trabalho de John
Lewis são em si mesmas testemunho dessa possibilidade. E é esse o
papel de March,
uma trilogia biográfica escrita em conjunto com Andrew Aydin, que
trabalha como assessor de comunicação de Lewis, e Nate Powell, um
artista de banda desenhada em claríssima ascensão, e de quem
havíamos falado brevemente quando do seu primeiro livro, PleaseRelease,
ainda trabalhando nos ecos da autobiografia slacker
dos anos 1990, e que teve o seu momento de maior glória com o
excelente Swallow
Me Whole,
e tendo já encetado esta temática em The
Silence of Our Friends,
com Mark Long e Jim Demonakos.
Conforme
será de esperar neste tipo de projectos, sendo a “função
comunicacional” particularmente vincada – num sentido de haver um
propósito explícito de se tecer uma mensagem, um conteúdo
politicamente significante, o que é drasticamente diferente de um
modo de expressão que possa ser visto como metatextual ou
investigativo -, o artista procura empregar todas as estratégias
visuais possíveis para a veiculação mais clara possível do
impacto que este ou aquele evento terão tido na vida de Lewis, ou
então a incutir nesses episódios uma eficaz capacidade de
dramatizar e transmitir uma emoção junto ao leitor. A variedade de
composições é evidente, desde a mais isolada das vinhetas no
centro de uma página em branco (de forma a salientar o isolamento
numa viagem) às páginas mais prenhes em termos de informação, de
splash
pages a
construções com vinhetas incrustadas. Panoramas e paisagens,
grandes planos sobre os rostos das personagens e cortes de pormenor,
fundos negros e outros “sangrando”, há um pouco de tudo, mas não
se trata nem de um uso excessivo, nem de um virtuosismo gratuito. Bem
pelo contrário, a leitura pausada e ritmada da narração na
primeira pessoa de Lewis, presente em flutuantes mas sólidas frases
sobre as cenas, vão acompanhando essas imagens de uma forma quase
inconsútil, criando uma fluidez rara. A figuração do artista, que
tem traços suficientemente idiossincráticos para reconhecermos a
sua assinatura mas um grau de naturalismo que nos leva a compreender
as opções e a relação acessível com a realidade, é um outro
factor de fluidez.
Essa
fluidez tem também momentos de “textura”, ou de “volume”,
por assim dizer, sempre que as cenas passam a ser desenroladas num
“presente da acção”, com as personagens movendo-se e falando,
ganhando menos distância na narração que as tornara pretéritas. E
como convém a uma espécie de confirmação da verdade, de
historicização do testemunho do protagonista e narrador, há muitos
casos de representação de documentos, traduzidos pelo punho de
Powell: parangonas e notícias de jornal, capas de revistas e
documentos dactilografados, e até mesmo peças radiofónicas. Se no
caso de outros autores a presença de documentos reais, fotografados
e “colados” à banda desenhada (o caso charneira de Maus)
leva a que alguns autores falem de “memórias impossíveis de
assimilar” (cf. as lições de Marianne Hirsh, Ann Cvetkovich e
Gabrielle Schwab), e que pode mesmo ocorrer em casos onde há uma
“tradução mediática” (o exemplo usual é Fun
Home, de
Bechdel), neste caso em particular encontraremos antes uma
celebração, e uma procura por uma assimilação, ou melhor dizendo,
integração, material e memorial que é positiva.
John
Lewis viria a ser o mais jovem orador da famosa marcha sobre
Washington a 27 de Agosto de 1963, em que Martin Luther King Jr.,
indubitavelmente o mais famoso orador do encontro e manifestação
política, fez o seu discurso “Tenho um sonho” (o conjunto de
oradores seria conhecido por “Big Six”). É possível que
revisitemos esse evento num dos volumes futuros, sendo Lewis, afinal,
o único sobrevivente desses oradores.
O
livro abre com a marcha sobre a ponte de Edmund Pettus, a 7 de Março
de 1965, também conhecida como “Bloody Sunday”, pelos activistas
terem sido atacados pelas forças policiais e federais. Como parte de
todo o movimento americano dos direitos civis, que vieram pôr cobro
às leis discriminatórias em vigor em muitos dos estados com base na
“diferença racial”, esta foi apenas a primeira de três marchas,
mas a mais sangrenta, e que se integra numa brutalmente complexa
cadeia de eventos, acções, contra-acções, crimes e conquistas
legais e sociais cujas consequências ainda são sentidas hoje.
Poderemos dizer que, de um ponto de vista, a herança destas acções
é positiva em termos de progressivas aberturas e possibilidades da
comunidade negra, ou afro-americana, e em relação às quais muitas
pessoas considerariam a eleição de Barack Obama como um corolário.
De outro ponto de vista, porém, as conquistas ainda não foram
totais, e há até mesmo sinais de perdas dessas conquistas, quer por
tragédias a nível nacional, como o que se passou em Nova Orleães
sob o furacão Katrina, quer por casos pontuais (como os vários
assassinatos de jovens negros às mãos de forças policiais e de
segurança, que estalaram mais uma vez os problemas do “profiling”
e das respostas de força excessiva). Mas acima de tudo, não se pode
negar que em alguns aspectos sócio-legais se mantêm; apesar das
ditas “leis de Jim Crow” terem sido declaradas
anticonstitucionais, muitos dos mecanismos existentes para
supostamente travar actos criminosos acabam por criar uma cultura de
crime, e particularmente afectando populações menos protegidas, das
quais fazem parte substancialmente muitas comunidades negras (como os
dos crimes chamados de “felony” e as consequências na maioria
dos estados: um excelente livro sobre este assunto é o da activista
Michelle Alexander,
The New Jim Crow: Mass Incarceration in the Age of Colorblindness).
O
livro lida com o racismo gritante e explícito que fazia parte da
cultura quotidiana d(e parte d)os Estados Unidos da época, mas
jamais se perscruta a situação actual. Apesar dos vários
“intervalos” na narrativa pretérita, mostrando um Lewis
atarefado no dia da tomada de posse de Obama – e apontando desde
logo para aquela ideia de corolário da “marcha” -, e que serve
de mecanismo de enquadramento dos episódios da sua vida, este
primeiro volume de três centra-se na infância de Lewis, e nos seus
primeiros contactos com uma vida de consciência da luta política
necessária, e as primeiras acções. Por isso, apenas no fim desta
saga é que podemos tentar compreender se a narrativa é criada de
uma forma teleologicamente dirigida para uma espécie de hagiografia
simplista, em que a eleição de um presidente negro (de mãe branca)
é sinal de um selo nas lutas, ou se antes se apresentará um
discurso matizado que dá conta das efectivas transformações
positivas de uma sociedade mas não se deslumbra e esquece dos
esforços que há ainda por fazer (e que poderão servir, sem dúvida,
de modelo ainda a muitos outros países nas conquistas a fazer, quer
se considere estar “à frente” ou não).
Em
termos de banda desenhada, nomeadamente norte-americana, existe toda
uma tradição de associar esta arte à divulgação das ideias
preconizadas por estas personagens históricas, de testemunhos dos
sofrimentos de décadas senão séculos de existência naquele país,
da solidariedade possível com outras frentes de batalha, e mais
especificamente das biografias das personagens principais. Se se pode
olhar para a questão da “representação” somente – que é
importante, mas vasculhará toda a história das caricaturas
redutoras raciais, desde Sambo
a Milton Caniff, Will Eisner aos Transformers
-, será mais curioso compreender como é que esta forma foi empregue
pelas próprias comunidades para transmitir uma experiência mas
também providenciar instrumentos para dar voz a quem não a tinha,
instrumentos de batalha para quem a não imaginava poder levar a
cabo, e elementos para combater toda uma cultura, vista como
“tradicional”. Aqui poder-se-ia falar desde autores como Jackie
Ormes e Kyle Baker, passando por projectos editoriais desde a revista
All-Negro
Comics à
Milestone, ou projectos autorais como X
de Sue Coe ou King
de Ho Che Anderson. A banda desenhada foi usada como veículo quase
imediato, se tomarmos em conta o livro Martin
Luther King and the Montgomery Story,
publicado imediatamente em 1957. Trata-se de uma publicação citada
no interior deste mesmo livro, uma produção da Fellowship of
Reconciliation, ou F.O.R., que ensinava uma entrega à não-violência
como resposta à opressão em curso, com a qual Lewis veio a
envolver-se, pela pessoa de Jim Lawson. Uma leitura sobre este tema é
o volume académico Black
Comics: Politics of race and Representation
(Bloombury 2013), que demonstrará perfeitamente que o projecto de
Lewis, Aydin e Powell não está, de forma alguma, sozinho.
Aliando
uma sensibilidade treinada no círculo da banda desenhada alternativa
a uma “mão” solta no seu trabalho a pincel, que revela um
talento virtuoso pictoral nada normativo, Powell agrega uma
expressividade emocional a opções mais gráficas de metáforas
visuais eficientes. Excelente instrumento para a voz pessoal de
Lewis, cria-se assim um livro apropriado a toda uma série de
leituras, que não serão contraditórias entre si, mas
complementando-se num imenso gesto dirigido aos mais diversos dos
leitores.
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