Safe Place é um
projecto curioso na medida em que parece ser construído a partir de uma ideia
modular. Ele pode ser lido como um projecto isolado, mas potencia-se igualmente
como episódio de algo maior, que poderá ou não vir a ser desdobrado. Além disso,
como todas as obras de autores que se vão formando de modo decisivo e certeiro,
ela também pode ser lida em conjunção com os trabalhos anteriores do autor. (Mais)
Bem vistas
as coisas - se exceptuarmos O impaciente inglês,
parte da saga de Super Pig, e o qual é um projecto cuja responsabilidade autoral
e de moldação pende mais para o seu escritor, Mário Freitas - André Pereira tem
procurado criar narrativas, quer a solo quer em colaborações (com João Machado),
onde há uma estranha tensão em criar um típico dinamismo de conflito para
depois o negar e procurar um foco e interesse noutros factores.
Muitos
manuais de escrita criativa insistem que uma qualquer narrativa (fílmica, as
mais das vezes, mas transpondo-se para os campos da banda desenhada, televisão,
jogos de computador, e também a literatura), para se tornar verdadeiramente
interessante, ou mesmo sendo-lhe um elemento “essencial”, deve ser o conflito
entre duas personagens (ou forças que ajam como tal). Isto é um disparate,
obviamente, uma vez que pretende reduzir todo e qualquer acto criativo a
meia-dúzia de fórmulas (por vezes fazendo intervir a “viagem do herói” de
Joseph Campbell, onde o exercício comparatista é levado ao seu extremo redutor,
se não mesmo perigosamente racista). Ele pode ou poe não ser necessário, e
tanto se podem criar narrativas interessantes, brilhantes ou más com ou sem ele.
Os vectores que contribuem para a qualidade de uma obra procedem de formas bem
diversas.
Safe Place
parece unir duas grandes linhas já presentes em títulos anteriores. Por um
lado, todo este imaginário que descende dos jogos de computador: as personagens
combatem contra criaturas que guardam um ponto de passagem, utilizam técnicas
de combate formuladas, colectam objectos mágicos que se vão acumulando num
tesouro, ou que se transformam através de funções, levando a upgrades das suas capacidades. Por outro,
estas mesmas personagens, um miúdo chamado Magus (e que parece ser uma mistura
de Magus e de um auto-retrato meio-velado do próprio autor) e uma rapariga
teriomórfica chamada Dragoon podem ser vistos como simples adolescentes sub-urbanos
a queimar tempo num passeio pelos baldios, a entabularem conversas vagas e que
roçam alguns típicos desejos de fuga e crescimento, acções mortas mas
confortáveis de uma burguesia suficiente. Se os primeiros elementos estavam
sobretudo presentes em Enjôo de invocação,
Megafauna/Inner Math e o mais recente
antologia QCDA # 1000 (que é
visualmente rico da parte de todos os autores, mas narrativamente menos acabado),
e se a melancolia quotidiana no “nada acontece” surgia em primeiro plano em 9:2:5,
eles encontravam-se todos em distribuições diferentes. Em Safe Place, estão como que num equilíbrio simétrico.
Na verdade,
poderíamos ler toda a “aventura” de duas maneiras, mas que a tornam totalmente
ilusória. As primeiras páginas fazem-nos pensar nos momentos em que muitos
miúdos, de várias gerações, tentam matar o tempo nos terrenos sub-urbanos,
aqueles cantinhos de estranha natureza desamparada por detrás das urbanizações
(e que pessoas que terão morado em subúrbios de Lisboa, ou outros, conhecerão
bem), mas que, com os seus estranhos objectos abandonados, estruturas
inacabadas, são pasto para jogos de fantasia. O regresso de Dragoon a casa da
mãe, onde se sucedem com simplicidade um duche, uma sopa de espinafres e ver
televisão, desviam o cerne do conflito com as criaturas-cães para uma dimensão
lúdica. Mas há ainda a ideia do epílogo, desenhado pela convidada Paula
Almeida: duas páginas mostram um rapazinho a, aparentemente, acordar em frente
do computador, discutindo sobre a irmã que essa “estratégia” quase lhe fazia
perder o jogo, e depois mencionando um estranho sonho. A transição entre as últimas
páginas desenhadas por André Pereira, o balão isolado numa página negra
instando alguma das personagens a acordar (desenhado pelo próprio Pereira, mas
numa letra mais manual e livre do que aquela usada no resto das suas pranchas),
e depois as de Almeida, levam a ideia de uma fluida passagem, mas ainda assim a
uma passagem indubitável entre dois níveis de narrativa, em que a final
corresponderia à “realidade”, à narrativa que enquadraria e englobaria a
anterior, que lêramos. Ou seja, toda a aventura de Safe Place protagonizada por Dragoon e Magus são seria mais do que
sonho ou um jogo. Ou, quem sabe, algo entre isso, que a tecnologia futura
poderá vir a proporcionar (a irmã do rapaz que acorda fala de “transe”).
Todavia,
a pergunta que restaria seria, em que medida é que decidirmo-nos em que níveis as
narrativas se encontram alteram a fruição do texto? Em pouco, seguramente, uma
vez que Safe Place tem menos a ver
com uma narrativa fechada e explícita do que com as sensações e emoções “fracas”
das personagens. Por “fracas” entendemos o modo como o autor evita, mais uma
vez, construir a sua narrativa em torno de emoções bombásticas, da raiva à
paixão, terror ou paranóia, inveja ou depressão, preferindo antes uma espécie
de derrotismo melancólico de uma certa juventude, naquele momento entre o fim
da infância e o princípio da idade adulta, que havíamos discutido também com Le muret. Por isso temos um grande
número de vinhetas, ou mesmo sequências curtas, que se centram em pequenos gestos,
momentos em silêncio, ou a deambulação mais ou menos sem rumo dos
protagonistas.
É muito
interessante que, ao contrário de Impaciente,
André Pereira abandone grande parte das experimentações e pirotecnias neste
livro. Inexoravelmente, o autor segue uma grelha regularíssima de 4 por 3
vinhetas, o que não o impede de fundir um bom número delas para dar a entender
uma perspectiva mais alargada dos espaços (se bem que empregue igualmente a
estratégia de mostrar uma paisagem ininterrupta por “de trás” dos filamentos
dividindo as vinhetas), ou para mostrar a sua dissolução (na cena final). A figuração,
com muitos planos gerais e americanos, e muito menos grandes planos, abdica
igualmente da representação dramática dos rostos em rictos ou vibrações
emocionais. Bem pelo contrário, com a excepção do momento do combate, Dragoon e
Magus parecem sobretudo impassíveis, ainda que não indiferentes. E o autor leva
a um outro nível, do que havia feito até à altura, do seu domínio da linha,
manual mas mais segura, das breves tramas para sombra e volume, e de um uso
parcimonioso e elegante de tramas. Quanto a Paula Almeida, de quem havíamos
falado a propósito de Zona Nippon 1, são
apenas quatro páginas aqui presentes, duas das quais retratos a cores (dos tais
protagonistas do epílogo, os “jogadores-sonhadores”), mas que demonstram que o
seu estilo anterior se tem moldado de encontro a uma família alargada em que se
encontram artistas tais como DeForge ou Negron (podemos falar de uma escola “post-Cartoon
Network” ou “pró-Adventure Time”?).
uma plasticidade rápida, sumária, mas sólida.
Em
alguns aspectos, será mesmo na análise formal que se encontrarão alguns elementos
(nunca finais) que nos permitem compreender porque é que faz sentido falar-se
de banda desenhada “alternativa” e “de género” mesmo no nosso território. Mas ainda
mais surpreendente é que é André Pereira, em particular, um dos autores que,
neste momento, se encontra de modo confortável a passear-se por “ambos” campos.
E a própria aliança da Kingpin Books, chancela de presença significativa, e o
Clube do Inferno, plataforma zinística, autoral e de propósitos de pesquisa,
faz titubear de forma salutar essas divisões (que fazem, ainda assim, em termos
analíticos, sentido).
Um dos
aspectos curiosos trazidos a lume através de entrevistas ao autor, por exemplo,
é a dimensão aparentemente autobiográfica da obra. O autor insiste mesmo numa
série de aspectos que associam episódios da sua vida, uma espécie de nicho de
conforto e segurança encontrado numa série de jogos de computador, sobretudo Final Fantasy, às escolhas
narratológicas de Safe Place. Mas existem
aqui duas linhas, portanto, que não perseguiremos. Por um lado, é precisamente
essa dimensão autobiográfica. Toda e qualquer obra artística nasce sempre da
manipulação de elementos que têm a ver com a materialidade e a especificidade
mediática da arte escolhida, mas na qual há uma quota-parte de intervenção do
inconsciente. Porém, se abrirmos as portas para interpretações autobiográficas,
ou mesmo biografistas, de uma obra qualquer, estende-se o perigoso caminho de
atravessarmos uma linha de abuso nessa mesma interpretação, que bastas vezes
tem ocorrido (pense-se na relação de Tisseron sobre a obra de Hergé, ou em
qualquer daqueles textos de encómio de um autor em que a relação de amizade com
o articulista ganha destaque coo argumento de autoridade). E, se estivermos de
acordo com o edifício freudiano, há que compreender a radicalidade do inconsciente,
precisamente fora do alcance de qualquer interpretação final e absoluta. Por outro lado, seria certamente producente
analisar ponto a ponto quais elementos se têm transporto desse universo de
referências dos jogos de computador para a obra de André Pereira (não apenas Safe Place, claro), e compreender em que
medida é que as suas funções originais são transformadas nas suas histórias,
mas para isso é necessário uma maior cultura dessa mesma realidade, que não
temos.
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