Carroll
tem criado variadíssimos trabalhos curtos, como parte até mesmo da
sua aprendizagem enquanto autora de banda desenhada, que notavelmente
nasce do seu interesse pela ilustração, quase sempre associada a
determinados tipos de literatura (de contornos mais ou menos
genéricos e populares) ou de uma cultura, inclusive visual, coerente
em relação ao seu imaginário. Os contos reunidos neste volume,
apesar de no sub-título apenas se apresentarem como “histórias”,
estão na verdade acorrentados a alguns conceitos, e vivem num
intervalo de estruturas e elementos que os colocariam no seguimento
das tradicionais Märchen,
fairy
tales
ou “contos de fada” e os de terror. Na verdade, poderíamos mesmo
dizer que se concentram no “lado negro” dos contos tradicionais,
nas suas soluções sangrentas e implacáveis, que foram sendo
paulatinamente apagados à medida que eles foram sendo reescritos
para as sucessivas sociedades burguesas que os foram adoptando como
parte do seu discurso de educação e controlo social.
Uma
das maneiras que estas histórias se associam a essa tradição
narrativa, oral e/ou literária, é pela matéria verbal. O inglês
de Carroll (a autora é canadiana) é extremamente simples, no
sentido de usar frases curtas e directas, num daqueles tons
“universais” de contos de fadas (igualmente imitado por outros
autores de algum sucesso contemporâneo, estando Neil Gaiman na linha
da frente). No entanto, nada dessa simplicidade determina uma falta
de complexidade noutros aspectos. Kafka era também um autor que
usava um alemão seco, por assim dizer, para que os factos ficcionais
funcionassem da forma mais objectiva possível. É precisamente isso
o que ocorre nestes cinco contos. “Objectivo” no sentido de
concreto, palpável, atingível. Não estamos no território do
fantástico propriamente dito, uma vez que os eventos retratados têm
mesmo lugar nestes pequenos universos. O que é surpreendente é a
forma como as criaturas ou a atmosfera do maravilhoso, neste caso
criaturas e atmosferas de horror, se imiscuem, ora de forma
subreptícia ora súbita, no que pareciam mundos idílicos, e a forma
incontestável e irrecuperável com que as protagonistas nelas
tombam.
Alguns
leitores, inclusive Craig Thompson (num dos blurbs
da contra-capa), cita Gorey como uma das referências visuais. Não é
mal-visto, no sentido em que ambos, Gorey e Carroll, parecem querer
criar sempre histórias num passado mais ou menos identificável em
termos de imaginário (já que pouco importa a correcção
histórica). Os dois autores, também, parecem ter preferência por
um inglês aparentemente vitoriano mas para perscrutar aspectos
negros da literatura infantil que terá nascido nessa época (mas não
se reduzia, de forma alguma, a contos delicodoces e ingénuos). Assim
como uma apetência por mundos sociais relativamente privilegiados
ou, quando o não são, reduzidos a uma ideia romântica. Para depois
trincá-los melhor nas mandíbulas do nocturno.
No
entanto, em termos estritamente visuais, não podíamos estar mais
afastados de Gorey. Onde este autor usa personagens fixas em poses
rígidas, quase caricaturando um estilo de teatro antigo, Carroll
opta por uma fluidez total das suas esguias figuras. Onde Gorey
preenchia toda e qualquer área das suas páginas com trabalhos de
apertadas e obsessivas tramas, Carroll têm uma apetência maior por
cores nítidas e planas, ou zonas indistintas cobertas de negro ou de
branco, com poucas vinhetas por página, por vezes mesmo usando uma
dramática dupla página, espalhando o texto, expressivo e
caligrafado, através das imagens. E o uso da cor, de texturas e
transparências feéricas contribuem sobremaneira para a
personalidade de cada uma das pequenas narrativas. Mais,
a autora usa padrões, fusões entre planos, jogos visuais
metafóricos, e usos estratégicos dos vários níveis de composição
para garantir uma diversidade de efeitos.
O
estilo da autora, em termos gerais, inscreve-se numa família cada
vez mais alargada de artistas jovens que nascem numa cultura onde a
ilustração livre é cultivada não apenas em contextos escolares e
educativos, ou mesmo profissionais, mas no seio de uma cultura
concentrada e comunitária, através de plataformas digitais (tumblr,
flickr, blogs, etc.), onde se flexionam os músculos do desenho e do
diálogo possível entre indivíduos e a cultura popular através de
“fanart”, “submissions”, etc. Se por um lado isso é um
convite a toda a liberdade e idiossincrasias e traços individuais na
arte criada, ao mesmo tempo isso leva muitas vezes a ferramentas
idênticas ou a características comuns: uma certa forma de usar a
cor de modo diverso e brilhante, uma estilização barroca e
geométrica, uma escolha por um conjunto de temas mais ou menos
expectáveis e conhecidos, uma balanço entre o cool,
o cute
e o hipster.
Nada disso, porém, é ou garante ou obstáculo a outras qualidades
que depois se possam eventualmente conquistar com o trabalho
efectuado. Carroll é um desses casos que tem tanto de oportunidade
ganha como de trabalho feito. As histórias escritas por ela não
deixam de mostrar alguma sombra de contemporaneidade, sobretudo o
facto de todas as protagonistas – pois com a excepção de uma
história, todas as personagens principais são mulheres ou raparigas
– acabarem por tomar iniciativa, e revelarem alguma independência,
mesmo que isso não signifique a sua absolvição ou salvamento de um
fim cruel. O que, aliás, é quase exigido neste género. Carroll
providencia-nos menos com versões modernas de contos de fadas,
versões contemporâneas irónicas ou pós-modernas, do que com
contos morais e de admoestação que atravessaram o filtro do
fantástico à la EC
Comics
ou The
Twilight Zone.
Das
cinco histórias, apenas uma está ainda disponível no seu site
(“His Face All Red”), e a comparação entre a disposição das
vinhetas aí e no livro demonstrará a diferença espacial possível,
mas também o baixo grau de significação que ambas têm no cômputo
da diegese. Isto é, não estamos propriamente a falar de uma autora
que tire partido das questões de composição para fortalecer as
capacidades expressivas e/ou narratológicas da banda desenhada que
pretende tecer. “The Prince & The Sea” é uma das histórias
que tira partido dos formatos da rede, mas não é compilado nesta
antologia.
Through
the Woods apresenta uma literal mão-cheia de contos que sublinham os
contornos assustadores dos contos de fadas, desprovidos de qualquer
moral ou valor pedagógico, a não sei que se pretenda simplesmente
alertar o último perigo que nos espreita a vida, como o lobo diz no
epílogo à colecção. Podem tanto servir de uma espécie de
correcção à nostalgia protegida como de novos contos para crianças
actuais dispostas a que não se lhes ampare totalmente o caminho por
ilusões ou falsas promessas de que tudo acabará bem. Não, nada
nunca acaba bem. Por isso há que levar a vida a bom termo. E se a
vida pode ser entendida metaforicamente como um caminho pelo meio da
floresta, este livro seria um bom conselho.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. (imagens colhidas na internet)
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