Sem
precisarmos de fazer uma colheita pelas mais diversas culturas ou
recorrer a dicionários especializados, a mais simples leitura deste
pequeno livro fará entender que os peixes previstos no seu título
estarão presentes não apenas na sua qualidade tangível animal mas
igualmente por assumirem um papel simbólico. Talvez o de criaturas
que permitem uma consciência e até mesmo algum possível diálogo
entre dois espaços incompatíveis naturalmente, mas que também se
revestem de significados mais culturais, como acima de tudo aquele
que separa o reino dos vivos e o dos mortos. (Mais)
Apesar
de uma longa descrição do livro acessível no site da editora nos
ofertar toda uma série de informações específicas do
enquadramento geográfico e temporal da história, a verdade é que
Fish dispensa de as explicitar na sua matéria expressiva,
para mergulhar (o trocadilho não é inocente) de imediato no cerne
da sua atenção, que são as complexas e não-ditas emoções do
adolescente Milo. Estamos a viver no Verão imediatamente seguinte
àquele em que os pais de Milo morreram num acidente de viação, e
acabaram por cair ao mar. Vivendo com os seus avós na costa, dizer
que as relações entre Milo e o mar e aquilo que ele dá são
complexas é pouco. E as consequências disso são sentidas a todos
os níveis, como as relações com os primos, por exemplo. Ou o
profundo questionamento existencial a que se entrega. E no dia em que
uma outra pessoa acaba por se afogar, todas as sensações que haviam
estado presas até ao momento sobem em catadupa.
Milo
é uma personagem que eleva a melancolia a um exercício permanente.
Todos os objectos e situações com que se depara no seu dia-a-dia
são imediatamente escalpelizadas através do seu olhar mórbido e
fatalista. Em vários momentos da narrativa, mesmo, é-nos dado
acesso não tanto a “visões” ou “alucinações”, mas a
traduções visuais das sensações dele, e que transformam o mundo
em seu torno. A tal passagem entre o mundo terreno, dos vivos, do
quotidiano, e o do mar, ou subterrâneo, onde vive a morte, as
impressões profundas do interior do corpo, as emoções informes,
até mesmo os medos e apreensões. Apesar das outras personagens
entenderem tratar-se de superficiais desenganos, coisas de miúdo,
manias de adolescente, o facto do meganarrador visual nos permitir
esse acesso abre pelo menos dúvidas nessas asserções “da
normalidade”, e sublinham a possibilidade de ver o mundo para além
dela. Fish revela o mundo da vigília mas também aquele que
está sob a superfície do que é transmissível pela lógica e
comunicação humana, revelando outras formas de percepção e
pensamento.
Em
pouco mais de uma vintena de páginas, a maior parte das quais
optando por um número muito reduzido de vinhetas, por vezes mesmo
duas ou splash pages, a velocidade e concentração da
narrativa é elevadíssima. Mas se a diegese é célere, os leitores
são convidados a ponderar cada um desses quadros e frases de modo
calmo, como se de epigramas se tratasse, quase. No final, não há
propriamente uma redenção, ou uma crise resolvida, ou um arco
narrativo fechado, mas há pelo menos uma breve entrega a uma emoção
diferente, que passará decerto por um “final feliz”. É de facto
muito marcante como a autora consegue, através de uma pequena
colecção de sensações e impressões, adensar uma história que,
do ponto de vista dos “factos”, é extremamente simples. Daí a
ideia de um “mergulho”...
Este
livrinho faz parte de uma colecção da Nobrow, num pequeno formato
de caderno agrafado com uma capa de maior gramagem, com badanas, e a
qual serve de laboratório para novos autores experimentarem um
trabalho a solo. De certa forma, não é nada diferente de tantas
experiências ao longo da história da banda desenhada, desde o
pequeno encarte na belga Spirou às páginas a preto-e-branco
da portuguesa Tintin. Uma oportunidade de cotejar novos
autores em espaços consolidados por nomes ou trabalhos mais
conhecidos. A maior parte dos autores desta colecção já havia
publicado na revista homónima, mas aqui permite-se-lhes um maior
fôlego, como foi já o caso de Obsolete de Mikkel Sommer e
The New Ghost de Rob Hunter, que partilham com Bagnarelli toda
uma série de características já expectáveis nesta família. Há
uma maior força na prestação gráfica, na forma elegante como se
gere uma paleta cromática rica mas limitada (e que se reforça pela
qualidade do papel e da impressão que não torna as cores
berrantes), e nas opções composicionais, do que propriamente na
complexidade diegéticas, psicológica ou cultural das narrativas,
quase reduzindo as razões literárias a desculpas para os floreados
estéticos. A contaminação por elementos mais típicos dos livros ilustrados infantis também se faz sentir, como é óbvio.
A
figuração de Bagnarelli encontra-se numa espécie de ponto de
encontro entre algumas tendências modernas de um cartooning
simplificado (de que a imensa escola Adventure Time é uma
significativa fábrica) e acabamentos mais naturalistas. A
expressividade estreita das personagens, todavia, poderá estar a
servir muito correctamente a atitude displicente, blasé e
“whatever” dos adolescentes, do que a indicar as capacidades da
autora, mas apenas a comparação com outros trabalhos o poderá
confirmar. E o uso de texturas trabalhadas (quer dos padrões
naturais, quer daqueles criados por mão humana, quer ainda das
sombras e movimento das águas), em perspectivas quase ortogonais,
inscreve essas personagens mais moldáveis num mundo assertivo,
contra as quais elas se movem. Todos estes traços levam então
àquela integração no que chamámos de “floreados”, mas tendo
em conta, porém, o nível desse floreado, atingindo uma beleza
cuidada e pormenorizada, há um grande prazer óptico e táctil em
percorrer esta pequena mas febril catarse do jovem Milo.
Nota final: agradecimentos a APMR, pelas correcções das gralhas.
Nota final: agradecimentos a APMR, pelas correcções das gralhas.
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