1 de agosto de 2014

Fish. Bianca Bagnarelli (Nobrow)

Sem precisarmos de fazer uma colheita pelas mais diversas culturas ou recorrer a dicionários especializados, a mais simples leitura deste pequeno livro fará entender que os peixes previstos no seu título estarão presentes não apenas na sua qualidade tangível animal mas igualmente por assumirem um papel simbólico. Talvez o de criaturas que permitem uma consciência e até mesmo algum possível diálogo entre dois espaços incompatíveis naturalmente, mas que também se revestem de significados mais culturais, como acima de tudo aquele que separa o reino dos vivos e o dos mortos. (Mais) 

Apesar de uma longa descrição do livro acessível no site da editora nos ofertar toda uma série de informações específicas do enquadramento geográfico e temporal da história, a verdade é que Fish dispensa de as explicitar na sua matéria expressiva, para mergulhar (o trocadilho não é inocente) de imediato no cerne da sua atenção, que são as complexas e não-ditas emoções do adolescente Milo. Estamos a viver no Verão imediatamente seguinte àquele em que os pais de Milo morreram num acidente de viação, e acabaram por cair ao mar. Vivendo com os seus avós na costa, dizer que as relações entre Milo e o mar e aquilo que ele dá são complexas é pouco. E as consequências disso são sentidas a todos os níveis, como as relações com os primos, por exemplo. Ou o profundo questionamento existencial a que se entrega. E no dia em que uma outra pessoa acaba por se afogar, todas as sensações que haviam estado presas até ao momento sobem em catadupa.

Milo é uma personagem que eleva a melancolia a um exercício permanente. Todos os objectos e situações com que se depara no seu dia-a-dia são imediatamente escalpelizadas através do seu olhar mórbido e fatalista. Em vários momentos da narrativa, mesmo, é-nos dado acesso não tanto a “visões” ou “alucinações”, mas a traduções visuais das sensações dele, e que transformam o mundo em seu torno. A tal passagem entre o mundo terreno, dos vivos, do quotidiano, e o do mar, ou subterrâneo, onde vive a morte, as impressões profundas do interior do corpo, as emoções informes, até mesmo os medos e apreensões. Apesar das outras personagens entenderem tratar-se de superficiais desenganos, coisas de miúdo, manias de adolescente, o facto do meganarrador visual nos permitir esse acesso abre pelo menos dúvidas nessas asserções “da normalidade”, e sublinham a possibilidade de ver o mundo para além dela. Fish revela o mundo da vigília mas também aquele que está sob a superfície do que é transmissível pela lógica e comunicação humana, revelando outras formas de percepção e pensamento.

Em pouco mais de uma vintena de páginas, a maior parte das quais optando por um número muito reduzido de vinhetas, por vezes mesmo duas ou splash pages, a velocidade e concentração da narrativa é elevadíssima. Mas se a diegese é célere, os leitores são convidados a ponderar cada um desses quadros e frases de modo calmo, como se de epigramas se tratasse, quase. No final, não há propriamente uma redenção, ou uma crise resolvida, ou um arco narrativo fechado, mas há pelo menos uma breve entrega a uma emoção diferente, que passará decerto por um “final feliz”. É de facto muito marcante como a autora consegue, através de uma pequena colecção de sensações e impressões, adensar uma história que, do ponto de vista dos “factos”, é extremamente simples. Daí a ideia de um “mergulho”...

Este livrinho faz parte de uma colecção da Nobrow, num pequeno formato de caderno agrafado com uma capa de maior gramagem, com badanas, e a qual serve de laboratório para novos autores experimentarem um trabalho a solo. De certa forma, não é nada diferente de tantas experiências ao longo da história da banda desenhada, desde o pequeno encarte na belga Spirou às páginas a preto-e-branco da portuguesa Tintin. Uma oportunidade de cotejar novos autores em espaços consolidados por nomes ou trabalhos mais conhecidos. A maior parte dos autores desta colecção já havia publicado na revista homónima, mas aqui permite-se-lhes um maior fôlego, como foi já o caso de Obsolete de Mikkel Sommer e The New Ghost de Rob Hunter, que partilham com Bagnarelli toda uma série de características já expectáveis nesta família. Há uma maior força na prestação gráfica, na forma elegante como se gere uma paleta cromática rica mas limitada (e que se reforça pela qualidade do papel e da impressão que não torna as cores berrantes), e nas opções composicionais, do que propriamente na complexidade diegéticas, psicológica ou cultural das narrativas, quase reduzindo as razões literárias a desculpas para os floreados estéticos. A contaminação por elementos mais típicos dos livros ilustrados infantis também se faz sentir, como é óbvio.

A figuração de Bagnarelli encontra-se numa espécie de ponto de encontro entre algumas tendências modernas de um cartooning simplificado (de que a imensa escola Adventure Time é uma significativa fábrica) e acabamentos mais naturalistas. A expressividade estreita das personagens, todavia, poderá estar a servir muito correctamente a atitude displicente, blasé e “whatever” dos adolescentes, do que a indicar as capacidades da autora, mas apenas a comparação com outros trabalhos o poderá confirmar. E o uso de texturas trabalhadas (quer dos padrões naturais, quer daqueles criados por mão humana, quer ainda das sombras e movimento das águas), em perspectivas quase ortogonais, inscreve essas personagens mais moldáveis num mundo assertivo, contra as quais elas se movem. Todos estes traços levam então àquela integração no que chamámos de “floreados”, mas tendo em conta, porém, o nível desse floreado, atingindo uma beleza cuidada e pormenorizada, há um grande prazer óptico e táctil em percorrer esta pequena mas febril catarse do jovem Milo. 
Nota final: agradecimentos a APMR, pelas correcções das gralhas.

Sem comentários: