A
banda desenhada actual, em termos globais, atravessa uma fase de
contaminação constante que atravessa géneros, idiomas, geografias,
estilos e mesmo condições editoriais de uma forma mais ou menos
original na sua história. É evidente que não se pode afirmar que
os vários pólos de produção tiveram desenvolvimentos estanques em
relação uns aos outros, que as “linguagens” (no sentido
aventado por Neil Cohn) não tiveram pontos de convergência e
influência mútua, que cada território se consolidou de forma
totalmente independente. No entanto, até certo ponto pode dizer-se
que a banda desenhada seguiu graus de singularidade, sobretudo
nacional, que não têm par nas artes mais internacionalizadas do
cinema, da literatura, das artes plásticas ou mesmo da fotografia e
do vídeo. Não deixa de ser curioso, logo, sermos testemunhas de
cruzamentos mais evidentes. (Mais)
Para
todos os efeitos, Choc é um livro que se inscreveria
totalmente num campo a que poderíamos chamar, sem tergiversações,
“franco-belga”. Afinal, ele recupera uma personagem famosa de uma
das séries que faz de elemento perene da dita “escola de
Marcinelle”, Tif et Tondu, faz parte também de uma das
séries que sobrevive no modelo editorial de pré-publicação em
revista (o Journal de Spirou), vem reforçar uma espécie de
reemergência da História e da Memória nesta banda desenhada (que
usualmente vivia delas desprovida), e está nas mãos dos seus
herdeiros “directos”: o escritor, e também artista, Colman, é
um detentor de um estilo perfeitamente na linha “clássica” de um
Franquin, e o artista Maltaite é filho de Will, o artista original
desta personagem, Monsieur Choc.
Comecemos
pela ideia do “franco-belga”. Mais do que um compósito entre as
produções de banda desenhada dos dois países, que nos pode surgir
agora como um bloco homogéneo, a verdade é que numa primeira fase,
nem sequer fazia sentido pela quase ausência ou insuficiência da
produção francesa, e numa segunda fase, por essas duas produções
serem, no fundo, opostas. Esta oposição é, ou foi, a um só
tempo, artificial e correcta. Artificial, pois não foi jamais
uma oposição clara e impermeável a toda a espécie de cruzamentos
e trânsitos expectáveis, mas também correcta por, ao se
estudar cada fase, ou dimensões de todo um complexo fenómeno
social, existirão aspectos que surgirão como diferentes, se não
mesmo como antagónicos. Se a expressão geral “banda desenhada
franco-belga” é uma espécie de aberração histórica, como
António Dias de Deus, e outros, insistem, alertando para a
necessidade de ter um foco mais “micro”, por outro lado existe a
tendência de criar estruturas conceptuais “macro”, e que levam a
essas ideias. Como escreve o historiador Philippe Capart, esta
oposição será criada em base de “um discurso esteta sobre 'a
linha clara' e 'o estilo Atome' tal como numa literatura romântica
sobre o combate entre a revista Tintin e a revista Spirou,
até ao ponto de lhes opor as ideologias políticas” (La Crypte
Tonique no. 6: Qui mène la danse? C'estWalthéry!). Presumimos
que uma pedra de toque dessa segunda literatura seja Le duel
Tintin-Spirou, de Hugues Dayez, ao qual voltaremos.
Regressando,
contudo, à nossa frase inicial, aquilo que se verifica em Choc.
Les fantômes de Knightgrave, mas igualmente noutros projectos
(sendo talvez o de Spirou o que estará no centro), é uma
influência gritante da banda desenhada contemporânea
norte-americana, menos pela via do visual e compositivo, do que por
uma certa sofisticação nas estruturas narrativas e na pesquisa por
uma psicologia e moral das personagens. Com a excepção de Spirou,
que foi passando de mão em mão, como víramos, quase todas as
personagens da banda desenhada franco-belga pertenciam aos seus
autores, mas recentemente temos visto uma tendência em abrir o leque
para garante da sobrevivência delas: Blake & Mortimer, Astérix,
Marsupilami, a hipótese Tintin, remetida para o futuro e, aqui, o
vilão de Tif et Tondu. Ficará para outra ocasião as
diferenças – de contexto de produção, de estratégia comercial
e, mais importante, em termos de resultados estéticos – entre
todas essas séries. Todas elas, porém, parecem influenciadas, em
parte pelo menos, de estratégias narrativas fomentadas noutras
paragens.
De
certo modo, aquilo que ocorre em Choc é algo como a fórmula
“Year One” que seria seguida no mainstream americano.
Fundado pelo ainda hoje magnífico Batman: Year One, de Frank
Miller e David Mazzucchelli (a nosso ver superior a The Dark
Knight Returns), rapidamente seria adoptado em círculos cada vez
maiores: os títulos associados a Batman, depois na DC, depois a
Marvel (sobretudo as séries das cores de Leob e Sale), e mais
recentemente outras personagens (na Dynamite: The Shadow,
Green Hornet, etc.). Segundo a ideia de “prequela” - que
tanto pode ser vista como um desenvolvimento tardio de certas sagas
cinematográficas, como algo com raízes mais vetustas em certos
textos literários – Choc foca a vida deste vilão antes de
se tornar o antagonista implacável que viria a ocupar um lugar de
destaque na série-mãe original. Mas o “tom” deste livro destoa
gritantemente com essa mesma série, pelo seu ambiente mais matizado,
sombrio, e até sóbrio, que nada ou pouco tem a ver com a “aventura
adolescente” dos dois heróis de Will.
Na
economia da Dupuis, como já dissemos, as histórias passavam de mãos
em mãos, e não há praticamente nenhuma história em que,
independentemente da assinatura destacada (Franquin em Spirou,
Modeste et Pompon, Peyo nos Estrumpfes, etc.), em que
não haja ajuda dos colegas nos argumentos, cenários, viaturas, já
para não falar das artes-finais e cores, evidentemente. Tif et
Tondu haviam começado ainda na primeira fase da revista, e
também atravessaram várias vidas (tendo começado, por exemplo,
apenas com Tif, ainda nas mãos do seu autor original, e olvidável,
Fernand Dineur, e depois mais tarde encontrando companhia no barbudo
Tondu, que mais não é que uma variação da outra personagem, mas
peludo), lançando-se depois em todas as aventuras formulaicas
expectáveis, já nas mãos do desenhador Willy Maltaite, ou Will, e
de vários escritores, entre os quais Bermar, ou Henri Gillain, o
irmão de Jijé, de quem Will foi aprendiz e protégé. É na
década de 1950 que, com a entrada de Maurice Rosy, a série muda de
figura. Rosy, que já havia trabalhado com Jijé e Franquin (é dele
o argumento de O ditador e o cogumelo, por exemplo), faz com
que as duas personagens entrem no domínio do policial, ainda que com
muitos contornos de fantasia, e é na (sua) primeira história, Tif
et Tondu contre la main blanche, de 1953 (ainda na revista, em
1956 em álbum) que surge a personagem que viria a ser o inimigo
principal da dupla: Monsieur Choc [ver imagem acima]. É na entrevista a Will (no livro
de Dayez, Le duel, citado acima), que entendemos ser de Rosy a
responsabilidade quase exclusiva da criação desta personagem, que,
para os leitores da série, inclusive o que escreve estas linhas, era
bem mais interessante que as personagens principais.
Famosamente,
numa entrevista Alfred Hitchcock afirmou o seguinte: “Antes os
vilões tinham um bigode e davam pontapés no cão. Agora, o público
é mais sofisticado, e não quer levar com vilões com a cara
iluminada de verde. Querem um ser humano vulgar com falhas” (há
mesmo um livro dedicado a este tema no realizador: Hitchock's
Villains,
de E. San Juan e J. McDevitt). Talvez seja esta a origem de uma “lei”
atribuída a Hitchcock que é bastas vezes citada, mas que não
saberemos identificar com exactidão: “quanto melhor o vilão,
melhor o filme”. Isto é verdade, e o campo cinematográfico, assim
como o literário, vivem numa ordem de sofisticação e complexidade
de que a banda desenhada só mais recentemente se aproximou. E é no
campo da cultura popular que esse axioma funciona na perfeição,
estamos em crer. Como já havíamos debatido a propósito de
Hellblazer,
na óptica infantil Star
Wars
só era mais interessante devido a Darth Vader e a série de animação
He-man
valia pela presença de Skeletor. Talvez Darth Vader, Skeletor e Choc
não sejam propriamente “seres humanos vulgares”, e talvez as
falhas deles sejam bem diferentes, mas são extremamente eficazes no
prazer emotivo e intelectual que estimulam, no interior das suas
ficções respectivas. Choc talvez seja o mais humano deles todos, e
aquele que revelará, quem sabe, mais falhas. Um outro modelo será,
sem dúvida, o de The
Killing Joke. Talvez,
como tantas das acções de Moore, seja esse o
modelo desta tendência em vasculhar as motivações, biográficas e
psicológicas, dos vilões, permitindo-lhes alguma simpatia no seio
da mais abjecta das violências.
Mas,
em contraste, tal como o abismo de Choc não é tremendo, tampouco é
a persona
que ele adoptará, em
termos de consequências psicológicas para ele mesmo.
Já que em termos de violência é possível que venhamos a
compreender ao fim de toda esta saga um posicionamento
sócio-económico mais decisivo do que em Moore e Bolland.
Pois
de facto, qual é a melhor via para a construção do vilão? É a da
motivação.
A explicação da razão, se ela existir, da emergência de um vilão.
E as razões estarão aqui, neste livro, sem dúvida, de modo
distinto: a devastação da guerra, as desigualdades sócio-económicas
e as desconfianças das classes, preconceitos e desconfianças
raciais entre as culturas, uma certa impotência dos desfavorecidos
face à prepotência dos privilegiados, e um nível mais raso entre
ciúmes, amizade, laços de família e perseverança. Tudo isto,
porém, vai sendo acumulado no cadinho do peito de Choc num só
sentimento, talvez básico, mas eficaz para a construção da ficção
e fortíssimo na sua cor e contornos: a vingança. Ainda que este
seja apenas o primeiro volume de três planeados, vemos aqui desde
logo exercida parte dessa vingança sobre as personagens que
infligiram dor em Choc no passado – que se serve fria e a longo
prazo, como reza a lei -, mas também as recompensas daquelas que, de
uma forma ou outra, lhe foram benfazejas (o que não deixa de ser um
outro tipo de vingança, social e/ou económica, dirigida a entidades
mais abstractas).
Com
vista a essa construção paulatina de emoções e motivações, a
estrutura temporal do livro não é linear, mas não é propriamente
muito complexa. Existindo um enquadramento no “presente” (que tem
lugar, seja como for, na década de 1950), seguem-se depois vários
níveis ou momentos no passado. Desde o encontro de coup de foudre
entre os pais de Choc no final da 1º Grande Guerra, a ida da mãe
para Londres, a fuga desta para o castelo de Knightgrave onde se
torna uma das empregadas domésticas, ao erro que lança o jovem Eden
– é esse o seu nome – numa casa de correcção e a fuga (o que
permite aos autores atravessarem toda uma série de temas e géneros
literários, cinematográficos ou tleevisivos mais ou menos
consolidados e culturalmente específicos, desde o manor house
mystery, o period drama, a boarding school story, e
um retrato da estratificação social, económica e política da
Inglaterra das décadas entre as guerras, etc.). Estes vários
momentos são revisitados fora de ordem, espoletados pela compra do
castelo de Knightgrave por Choc em 1955, que ao passear por aquelas
paisagens e corredores vai-se recordando do que experienciou em
criança e o que escutou da mãe. Os autores espalham esses passados
de forma mesclada com um novo ataque no presente por Choc e que lhe
vai construindo a aura de criminoso potente e implacável, de maneira
a três tempos poderem estar, numa mesma página, presentes (o
trocadilho não é inocente). Por vezes, numa mesma vinheta, o Choc
actual passeia-se numa cena no passado. Todavia, é preciso ter
atenção que é muito claro que esta perspectiva do passado é
focalizada por Choc, e não por um meganarrador externo. Se no início
é o movimento de Choc, a sua travessia pelos espaços que o faz
recuar para o passado nesses mesmos espaços – que tem algo da
memória involuntária de Proust -, o leitor fará as inferências
necessárias entre as pausas de Choc, que correspondem às da acção
no “presente”, ou as rememorações por outras personagens, etc.,
para entender de que forma é que os vários pretéritos se tecem na
mente do protagonista. Tendo acesso também, num momento, a uma cena
de sonho, onde estão inscritos os ingredientes da sua persona
criminosa futura, entenderemos portanto que o livro em si vogará
entre uma matéria totalmente desenrolada no interior da mente de
Choc como no acesso “mágico” do narrador externo.
Isto
fortalece a construção psicológica da personagem, para mais tendo
em conta que, pelo menos na fase adulta, jamais temos acesso ao seu
rosto, e o elmo medieval impedir que possamos ver as suas emoções
no rosto. Maltaite tira porém partido, de uma forma extremamente
competente, toda a possibilidade de transmissão de moções através
da posição do corpo ou a justaposição das personagens em temos
diferentes. É como se entendêssemos a dor ou melancolia que Choc
sente em ser assaltado por estas memórias. Só na leitura de todo o
texto, completo, entenderemos até que ponto é que os autores
conseguirão construir um arco elegante entre a ficção popular –
não deixa de haver aqui um forte factor de nostalgia a alimentar o
âmago do projecto, e a estrutura da intriga – e uma exploração
possível nesse género dos mecanismos da memória e da identidade
criada por ela – usualmente matéria de outro tipo de abordagens.
Mas estamos em crer que este será um excelente exemplo de banda
desenhada mainstream.
Regressando
à série original, acrescentemos que nos anos 1960 Maurice Tillieux
(autor de Gil Jourdan), traria elementos ainda mais realistas, e Choc não teria aí lugar (além de que a detenção dos direitos de autor sobre a personagem seriam de Rosy, não de Will e da editora).
Contudo, a verdade é que o estilo visual de Will sempre a colocou
numa espécie de segunda divisão da escola dita “de Marcinelle”
ou “Atome”. De uma forma particular, este estúdio ou casa, a
Dupuis, procurava fomentar de facto uma ideia de escola, de estilo
interno à casa, uma lógica pouco preocupada com originalidade e
singularidade de visões plásticas, mas uma identidade colectiva,
“de marca”. Capart, no livro já citado, é demolidor quando diz
que “o desenho ameaça esclerosar-se: a banda desenhada toma a
banda desenhada como o seu mundo de referência”, para depois mais
à frente falar de uma “polícia tipográfica”. No fundo, Will
não viria ocupar um lugar particularmente de destaque, apesar de
existirem fãs que defenderiam o contrário (tal como defenderão as
mediocridades de Ric Hochet, Michel Vaillant, ou Todd
McFarlane), e não fosse a nostalgia – que opera neste título,
claro está – possivelmente permaneceria num limbo histórico.
Muitas
das regras deste território clássico estão asseguradas pelo traço
de Maltaite-filho, sobretudo a nível do desenho dos objectos, onde
os cenários, os edifícios e as viaturas – em relação a estas,
há sempre um lado de fethichismo presente, numa linha contínua
desde Hergé-Jacobs, passando por Franquin-Jidéhem, etc. - são o
mais realistas possíveis, e a figuração humana obedece a escolhas
mais estilizadas, num ponto de equilíbrio entre o desenho anatómico
e feições arredondadas. Em termos de composição, estamos na
esfera da mais pura legibilidade, em que jamais se procuram arranjos
radicais, mas antes elegantes e respeitando o propósito narrativo
pretendido, num uso “retórico”, sem se colocar de lado uma
vinheta mais espectacular ou colocada de forma a funcionar para além
da mera representação. Além disso, a presença quase constante de
uma pega (pega-rabuda, parece) em todos esses tempos, e verdadeira
pontuação onomatopeica do seu crocito, cria um efeito muito claro
de tressage, ou entrançamento (cf. Th. Groensteen), que traz
coerência e finalidade a toda a história.
No
fundo, o que vemos a ocorrer neste livro é uma espécie de
“relançamento” de uma série anódina, inócua, que apenas
alimentará os sonhos de leitores nostálgicos, em contornos mais
maduros, tal como, é possível discuti-lo, Alan Moore havia começado
com Marvelman/Miracleman, no início dos anos 1980, reforçando
a ideia das influências em trânsito com que começámos (o facto de
ser uma série britânica, sem se saber que papel teria na banda
desenhada norte-americana, é quase um acidente de percurso). Resta
ver até que ponto é que esta experiência é única, ou capaz de
vir a ocupar um lugar de viragem em futuros desenvolvimentos.
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